segunda-feira, 2 de dezembro de 2024
RODANDO O PEQUENO GRANDE HOMEM
O sétimo filme de Arthur Penn, com estreia prevista para o Inverno de 1970, é O Pequeno Grande Homem, a partir de um romance de Thomas Berger.[1] O argumento é de Calder Willingham, o director de fotografia é Harry Stradling Jr., e as estrelas são Dustin Hoffman, Faye Dunaway, Richard Boone, e Martin Balsam. O filme é em Panavision, uma grande produção financiada pela CBS, e provavelmente vai ter cerca de duas horas e quarenta minutos de duração—o filme mais longo e mais caro de Penn até à data.[2] A rodagem terminou no Inverno de 1969, e no momento da redacção, Penn e a indispensável Dede Allen estão a “extrair” o filme da “matéria-prima básica” (a sua própria descrição do processo de montagem).[3]
O romance de Berger é sobre um rapaz branco chamado Jack Crabb (Hoffman) criado durante cinco anos pelos Cheyennes (com os quais ganha o nome de Pequeno Grande Homem), depois empurrado pelas circunstâncias para a frente e para trás entre os Cheyennes e os brancos. Crabb, que afirma ser o único sobrevivente branco da Última Investida de Custer em Little Big Horn, conta a estória em pessoa em reminiscências divagantes, aos 111 anos de idade (no filme isto é actualizado para 121). A sua narrativa forma um romance picaresco e livremente episódico de mais de quatrocentas páginas, caracterizado por um humor brutal e irónico, abrangendo a maioria das figuras semi-históricas, semi-lendárias do Oeste—Custer, Wyatt Earp, Kit Carson, Wild Bill Hickok, Calamity Jane, Buffalo Bill—bem como inúmeras personagens fictícias, tanto índias como brancas. Ao longo da narrativa, Crabb adquire duas esposas, uma branca (uma rapariga sueca chamada Olga), outra Cheyenne (Sunshine[4]). O feito mais interessante do livro, através da alternância de Crabb entre o mundo dos brancos e o dos índios, é o desenvolvimento no interior de uma única consciência de uma perspectiva dupla—o mundo branco visto através de olhos índios e o índio de brancos. Isto pode ser difícil de realizar em termos cinemáticos, talvez, embora tanto Penn como o seu produtor, Stuart Millar, esperem que algo disso emirja.
O guião de Calder Willingham parece um admirável qua argumento: livre e esquelético, proporcionando uma estrutura firme e diálogos fortes mas sem pretensões de auto-suficiência, deixando o essencial da criação de cada cena ao realizador. É um feito notável de compressão e reorganização. Das figuras semi-históricas, todas foram eliminadas menos Custer e Hickok; noutras partes, embora o ritmo alternante da narrativa se tenha mantido, a sua estrutura foi apertada pela imbricação de certas personagens para que ressurja no filme uma personagem anterior, enquanto que no romance aparece uma inteiramente nova. Por exemplo, em vez da sobrinha de Crabb, Amelia, que ele resgata de um bordel no último terço do romance, o filme traz de volta a Sra. Pendrake (Dunaway), a "mãe" branca de Crabb por adopção que revela muito rapidamente desígnios eróticos em relação a ele. Esta substituição, que aparentemente tem o consentimento entusiástico de Berger, proporciona um desenvolvimento bastante lógico para a Sra. Pendrake das primeiras cenas. O papel de Faye Dunaway permanece ainda assim relativamente reduzido: é o filme do Pequeno Grande Homem, e Hoffman aparece em todas as cenas.
Outra mudança, embora menos chamativa no imediato, parece ainda mais importante. No romance de Berger, o Pequeno Grande Homem mantém-se até ao fim uma figura essencialmente passiva: mesmo quando é sacudido para a actividade deliberada, como o é pelo sequestro da sua esposa sueca por índios, ele não consegue sustentar o seu propósito. No guião, ele desenvolve gradualmente um comprometimento emocional forte à causa índia e no final é uma figura bem mais consciente e positiva do que alguma vez se tornará no livro, embora, sendo este um filme de Penn, ele afecte o desfecho dos acontecimentos apenas de forma confusa e irónica. A mudança torna-se perceptível primeiro na atitude do protagonista para com a caça ao búfalo: no livro ele junta-se ao massacre dos búfalos pela pele um tanto sem consciência; no guião é convidado e recusa, reconhecendo a dependência dos índios nas manadas de búfalos pela carne. O guião constrói um protesto apaixonado àquilo que foi feito aos índios. Pode-se criticar isso por tornar explícito aquilo que no romance é expresso de forma muito oblíqua, através da ironia. No entanto, acho que irá emergir de forma lógica do filme. Onde se pode acusar o guião é na suavização parcial do carácter dos Cheyenne, embora mais por omissão do que por verdadeira distorção. É muito a crédito de Berger que ele ganhe a nossa simpatia pelos índios sem nos poupar a qualquer um dos aspectos do seu comportamento que provavelmente chocarão a sensibilidade branca: depois das batalhas, por exemplo, as mulheres Cheyenne—esposas e mães gentis e ternas, talvez, nas suas vidas de todos os dias—saem com facas para mutilar os corpos dos soldados mortos. Detalhes como estes têm representação escassa no guião. A idealização “romântica” dos índios é um corolário perfeitamente lógico das atitudes sociais de The Chase e Bonnie e Clyde, mas a validade de qualquer idealização é enfraquecida por uma relutância em enfrentar as realidades mais duras e mais inquietantes do que quer que se esteja a idealizar.
O filme foi rodado em Hollywood e em exteriores no Montana e Alberta. A convite de Penn, passei quatro dias em Calgary, a assistir à rodagem. O local de filmagens era a quarenta milhas de Calgary no sopé das primeiras encostas das Rockies, onde se tinham montado cerca de cinquenta tendas no interior da curva de um rio. A equipa tinha vindo para filmar cenas da vida numa aldeia índia, culminando no massacre no rio Washita quando Custer chacinou uma comunidade Cheyenne inteira—homens, mulheres, crianças, e até os póneis. Mas Penn tinha vindo ao Canadá pela neve, e quando eu cheguei não havia sinal dela: erva verde, sol brilhante, água efervescente, as Rockies claramente visíveis à distância, e toda a gente a olhar em redor de forma ansiosa atrás de sinais de nuvens carregadas. Penn, então, estava a rodar uma das últimas cenas do filme, em que Old Lodge Skins[5], o "pai" Cheyenne de Jack Crabb, interpretado por um chefe índio com setenta anos (Chefe Dan George) se prepara para morrer. Ele emerge, cego e envelhecido, da tenda e pede a Jack, que está coxo devido a feridas recebidas em Little Big Horn, para o conduzir pela montanha acima. Sente que não só a própria vida como o modo de vida do seu povo, os “Seres Humanos” (o nome dos Cheyenne para si próprios), e mesmo a própria raça estão a chegar ao fim. “Oh, vão levar tempo, mas os brancos vão eliminar os Seres Humanos, meu filho. . . Isto era um lugar perfeito até chegarem os homens brancos. Havia búfalo e caça por todo o lado. Os pastos eram verdes, a água doce e o céu azul.” Era a introdução ideal para o filme, um momento de uma intensidade pirandelliana extraordinária, as falas ditas pelo velho índio, a fazer-se de cego, contra um fundo de prados tão verdes como se poderia desejar e sob um céu azul na mesma medida, para as câmara apontadas para ele pelos americanos brancos sob a direcção de um americano branco.
Caiu neve zelosamente aquela noite toda, e na manhã seguinte o local de filmagens estava transformado. As cores brilhantes tinham todas desaparecido. Sob um denso céu cinzento do qual continuava a cair neve intensamente, o rio corria de forma sombria por um mundo branco contra o qual se apoiavam as tendas pardas cobertas de neve e abetos negros. Dean Tavoularis, director de arte em O Pequeno Grande Homem (e antes em Bonnie e Clyde) disse-me: “As coisas índias podem parecer muito circenses e com ares de Dia das Bruxas. Nos tentámos atenuar as cores todas e harmonizá-las com o solo.” Eu vi Penn a rodar vários planos panorâmicos e de acompanhamento pela aldeia, com acções entrelaçadas bastante complexas—índios envolvidos em diversas actividades—em primeiro plano, a meia distância e em plano geral. Um plano de panorâmica, por exemplo, tem jovens índios a pescar no rio num plano geral distanciado; um índio a cavalo começa na margem do rio, serpenteia pela aldeia em plano geral médio, deslocando-se para fora e mais tarde de novo para dentro da imagem; emana fumo das aberturas das tendas; as crianças brincam e perseguem-se umas às outras na neve; um cavalo arrasta um carregamento de lenha em corrediças de madeira; a câmara apanha o cavaleiro outra vez enquanto ele cavalga para a direita. Os figurantes (todos índios norte-americanos) estão embrulhados em cobertores coloridos com o que parecem corantes naturais: marron baço, rosa sujo, azul intenso—as únicas cores além dos cinzentos, dos pretos e dos castanhos. A coloração moderada e o sentido de movimento constante no ambiente—os detalhes cuidadosamente organizados da vida índia—devem conceder às cenas na neve uma poesia visual comedida.
Arthur Penn está o mais afastado possível da imagem estereotipada do realizador de cinema: o ditador vociferante colado com firmeza à cadeira do realizador e berrando ordens por um megafone. Levaria provavelmente algum tempo para um observador inexperiente decidir quem era o realizador no plateau de O Pequeno Grande Homem. Mas embora ele seja tão sossegado e não intrusivo (ouvi-o levantar a voz talvez duas ou três vezes em quatro dias, para pedir silêncio), cedo se percebe que Penn é omnipresente. Havia alturas em que ele estava ao meu lado, e depois, quando eu me virava, ele tinha desaparecido, e conseguia finalmente distingui-lo outra vez numa parte distante qualquer do plateau a reorganizar um detalhe com um técnico ou um actor. Penn não domina; ele permeia: discutindo e ensaiando com os actores; verificando a imagem pelo visor; reorganizando detalhes de maquilhagem, roupa e adereços; e discutindo pontos de movimento de pano de fundo que envolvem figurantes inexperientes com o seu assistente de realização, não se achando acima de dar uma mão para ajudar a deslocar uma tenda alguns metros. Acima de tudo, vemo-lo a ouvir e passamos a apreciar mais plenamente a natureza colaborativa da sua arte. Ele ouve sugestões de qualquer pessoa mas especialmente dos seus actores. No entanto, sente-se também que as verdadeiras decisões são sempre de Penn, que ele torna suas as sugestões dos outros adoptando-as e assimilando-as na sua própria noção de como o plano em questão deve ser.
Penn consegue desempenhos tão maravilhosamente vivos dos seus actores porque os respeita. É provável que exista uma relação estreita entre o tratamento de um realizador para com os seus actores e a sua atitude para com as personagens que os actores estão a criar. Desta forma o apregoado controlo total de Josef von Sternberg sobre todos os gestos e expressões dos seus intérpretes está intimamente ligado ao sentido de fatalidade nos seus filmes. A qualidade das personagens de Penn, mesmo as muito secundárias (há cerca de dez bons exemplos só em Alice’s Restaurant), como pessoas que vivem e reagem espontaneamente, relaciona-se com o seu amor pelas contribuições espontâneas dos seus actores, a sua predilecção por encorajar a reacção não ensaiada. Dean Tavoularis tinha vindo para O Pequeno Grande Homem directamente de Zabriskie Point (1970). Naturalmente, como director de arte ele tinha achado mais gratificante trabalhar para Antonioni: foi-lhe dado muito mais que fazer. Mas falou de Penn com grande respeito e expressou bastante bem a diferença fundamental entre as abordagens dos dois realizadores: “O Arthur está bastante empenhado em conseguir aquele momento de verdade entre dois actores a percorrer uma cena. É muito interessante vê-lo a trabalhar, enquanto ele passa a cena em revista uma e outra vez até isso acontecer.” Para Antonioni, por sua vez, o director de arte é provavelmente um colaborador mais importante que os actores: ele “trata os seus actores como parte do todo visual—não há nenhuma da pesquisa por que o Arthur passa para fazer acontecer isso entre os actores.” Penn gosta de trabalhar com actores inteligentes que querem contribuir de forma activa para o filme, e eles gostam de trabalhar com ele. Ele falou de Marlon Brando, por exemplo, com o maior dos carinhos e dos entusiasmos. Brando tem a reputação de ser “difícil” com os realizadores, mas não houve claramente dificuldade alguma durante a filmagem de The Chase (com uma excepção bastante extraordinária: Brando não queria que Calder espancasse o assassino de Bubber Reeves—o momento para o qual todo o filme se direcciona). Mas actores como Brando e Dustin Hoffman são mais inteligentes e sensíveis, têm maior integridade artística, do que alguns dos realizadores para quem trabalham. Se Hoffman protestou, durante as filmagens de The Graduate (1967), que Mike Nichols estava a sacrificar a motivação e a realidade humana em prol de efeitos “giros” e fúteis, alguém pode negar que a vitória de Nichols no filme finalizado prova que o protesto é totalmente justificado?
Em O Pequeno Grande Homem, Penn está a trabalhar dentro da tradição clássica de Hollywood a partir de um guião que não é seu: uma oportunidade admirável para observar a contribuição que um realizador pode dar durante a rodagem. Eu vi Penn a trabalhar na cena em que a mulher índia do Pequeno Grande Homem, Sunshine (Amy Eccles), apresenta as suas três irmãs, todas enviuvadas pelos brancos, com o objectivo de fazer com que o marido as aceite como mulheres adicionais. No guião, a cena decorre como se segue:
EXTERIOR—TENDA DE JACK—SUNSHINE E JACK—DIASUNSHINE (sente a barriga inchada): O teu novo filho hoje está a dar pontapés com muita força. Acho que quer sair e ver o pai dele.JACK: Diz-lhe para esperar até eu acabar o jantar.SUNSHINE: Eu digo-lhe, mas acho que não vai esperar muito mais. (fala para o bebé, seriamente) Fica aí, não saias até o teu pai comer. (de forma um pouco maliciosa) Ainda bem que tenho um marido forte e corajoso que traz tanta caça e comida para casa.JACK (alegremente): Mmmm-hmmm...SUNSHINE: O meu marido forte traz muito mais do que precisamos.JACK (sonolento): Ummm-mmm, cala-te, mulher. Estou a meditar.SUNSHINE (silenciosa por um momento, mas tem obviamente qualquer coisa importante para dizer): Há muitos Seres Humanos aqui, muitos bandos de muitos sítios. Mas é triste . . . muitos maridos foram eliminados pelo homem branco.JACK (com um ligeiro aborrecimento): O chocalho da tua língua incomoda-me, mulher.SUNSHINE: É triste porque muitas mulheres dormem sozinhas e choram.JACK (não propriamente indelicado, calmo e objectivo): Agora faz silêncio, ou bato-te.SUNSHINE (faz uma pausa): Sim, mas acho que as minhas irmãs estão aqui.JACK (abre os olhos): As tuas quê?SUNSHINE (humildemente): As minhas irmãs. Digging Bear[6], Little Elk [7], e Corn Woman[8]. Acho que estão aqui.JACK: Como assim, achas que estão aqui?!SUNSHINE (muito humildemente): Acredito que estão. Tu trazes muito mais comida do que precisamos. (Jack fica a olhar em consternação e Sunshine inclina a cabeça, a fungar) É muito triste. Elas não têm marido, e choram.JACK: Isso é uma pena! . . . Lamento.SUNSHINE: Digging Bear teve um bebé e perdeu-o, e a Corn Woman também. A pobre Little Elk nunca teve bebé nenhum.JACK: Está bem, que queres que eu faça em relação a isso?SUNSHINE (sorri): Eu sabia que ias entender.
Não há detalhamento deste diálogo em grandes planos, planos de conjunto, etc., nenhuma indicação de posições ou ângulos de câmara. Penn rodou-o intacto um grande número de vezes utilizando cerca de quatro posições de câmara diferentes (e lentes diferentes) para que a cena fosse coberta em planos de conjunto médios de diferentes ângulos, em grande plano de Hoffman, e em grande plano de Amy Eccles (a rapariga chinesa que interpreta Sunshine). Ao todo, os actores percorreram a cena pelo menos umas doze vezes, não contando os ensaios. Este método de rodagem—que não é incomum no essencial mas é levado ao extremo por Penn—tem vantagens sob vários pontos de vista. Permite aos actores desenvolver os seus próprios desempenhos, descobrindo novas possibilidades de expressão e embelezamento; quando estão envolvidos intérpretes novos ou inexperientes (há muitos em O Pequeno Grande Homem), a repetição à frente das câmaras é mesmo a melhor forma de os ajudar a ganhar a confiança necessária para construir as suas caracterizações. Existe o perigo complementar de tédio para o intérprete experiente, mas como Penn me sugeriu, mesmo o tédio pode por vezes instigar os actores a impulsos repentinos, novos e espontâneos. A duração da tomada permite aos intérpretes sentir a continuidade da cena, sem ter os seus desempenhos fragmentados mais do que é necessário em grandes planos e planos médios predeterminados, etc. Para Penn e Dede Allen, quando montam o filme, o método proporciona uma enorme gama de escolhas: mesmo as tomadas falhadas podem fornecer fragmentos expressivos que podem ser utilizados. Começa-se a apreciar como é que a riqueza e a densidade concentrada de efeito em tantas cenas dos filmes de Penn são alcançadas. Todo este método de rodagem e montagem relaciona-se de forma muito interessante com os temas e as atitudes de Penn, a visão da vida que os seus filmes expressam. O comportamento dos seus protagonistas é sempre instintivo e empírico, na pior das hipóteses um desorientamento cego, na melhor (Annie Sullivan) um tacteamento criativo por expressão e controlo. Estão sempre demasiado envolvidos na luta da existência para a conseguirem dominar e ordenar externamente; em vez disso, perseguem os seus impulsos internos para aquilo que querem, mal sabendo o que é de antemão. A principal diferença entre os esforços deles e os de Penn é que os dele normalmente são bem sucedidos.
Só se fizeram alterações mínimas ao diálogo de Calder Willingham à medida que a cena entre Jack e Sunshine se desenvolvia: por exemplo, Hoffman, a repetir os nomes das irmãs em incredulidade cómica. A única mudança de maior ao guião foi a decisão de Penn de rodar a cena na neve. Houve muita discussão no local de filmagens sobre a probabilidade dos índios cozinharem e comerem fora da tenda com neve a cair realmente. Eu acho que a licença, se é que o é, será justificada pelos resultados: vai intensificar o sentido da indianidade de Jack nesta fase da sua vida, a sua adaptação a uma existência dura e estóica. A comédia de superfície da cena vai ser contraposta pelo cenário dos ermos nevados desolados. Penn introduziu algum detalhe de pano de fundo dentro da cena—uma família índia exaurida a reunir-se na sua fogueira de cozinha em plano geral, velho estóico e crianças—que deve realçar este efeito. Ne decurso da rodagem, começaram-se a acumular pequenos toques do tipo que, aparentemente insignificante individualmente, concedem à cena carácter e particularidade. Em vez de ter Sunshine simplesmente a preparar o jantar, Penn pô-la a servi-lo e Jack a comê-lo: “Cala-te, mulher, estou a meditar” tornou-se no mais prosaico e prático “Cala-te, mulher, estou a digerir.” Caracteristicamente, Penn tinha rejeitado colheres índias autênticas em detrimento do efeito mais directamente físico de dedos embebidos em molho quente. Enquanto as tomadas se sucediam, o “estufado de búfalo” tornou-se mais quente e mais quente sobre o fogo; por fim Hoffman recorreu ao expediente de largar massas de neve para a comida para a arrefecer. Finalmente, Penn fez Amy Eccles raspar as sobras de volta para a panela com os dedos. E assim a cena começou a adquirir uma contiguidade física altamente característica juntamente com o seu tom de humor complexo e melancolia inquieta.
No entanto Penn sente de forma muito intensa as limitações de trabalhar dentro da tradição clássica de Hollywood, mesmo ao ponto de negar a possibilidade de fazer de O Pequeno Grande Homem um filme verdadeiramente pessoal. Assistir à rodagem em Calgary torna fácil para mim entender a sua posição sem concordar necessariamente com ela. Vale ainda mais a pena provar esse argumento uma vez que, neste caso, não estão em causa as habituais tensões—domínio pelo produtor, interferência do estúdio—que se podem imaginar como ameaças para o trabalho dos realizadores de Hollywood. O produtor, Stuart Millar, um homem de charme e inteligência, é um amigo pessoal de Penn e obviamente que confia nele em absoluto. Millar, que está envolvido pessoalmente no projecto desde muito cedo, visita o plateau diariamente, mostrando o mais vivo interesse na rodagem, dando palmadinhas nas costas das pessoas de forma metafórica (e discretamente), mas sem nunca interferir. Há principalmente duas coisas que preocupam Penn—em conversa ele reverte para elas repetidamente: o grande peso da maquinaria, literal e metafórica, envolvida numa grande produção, e—por mais curioso que ao princípio possa parecer—o mero profissionalismo dos técnicos, peritos que têm as suas próprias formas altamente desenvolvidas mas ortodoxas e “anónimas” de fazer as coisas e ficam ressentidos se lhes pedem para as fazer de outra maneira. Qualquer coisa de pessoal e pouco ortodoxa que Penn desejasse fazer teria de ser aplicada contra bastante oposição, talvez uma parte pronunciada para quatro partes não pronunciadas. Percebe-se porque é que só um certo tipo de sensibilidade pode florescer na configuração tradicional de Hollywood: uma sensibilidade que, em primeiro lugar, se pode exprimir adequadamente a si própria em formas tradicionais e por meios tradicionais (o tipo de profissionalismo que Penn considera um obstáculo adequa-se obviamente a Hawks, por exemplo, perfeitamente) e que, em segundo lugar, está também isolada dentro de uma certa firmeza profissional. Não sonharia em descrever Ford, Hitchcock e Hawks como insensíveis, mas também não usaria a palavra “sensibilidade” para eles bem da mesma forma que o faria para Penn. Para um homem da sua sensibilidade, são os intangíveis que realmente contam: a sensação de estar rodeado por uma grande pressão de vontades não necessariamente hostis mas com um interesse puramente profissional e não criativo no seu trabalho. Perguntei a Harry Stradling o que é que achava de trabalhar para Penn. Ele disse que gostava bastante—Penn não pede muitos travellings. Stradling é um dos grandes operadores de câmara profissionais de Hollywood—o próprio Penn falou dele com respeito—mas para ele, como para o resto da equipa de mais de 150, O Pequeno Grande Homem é claramente apenas mais um trabalho, para ser executado com a maior eficiência possível e o mínimo envolvimento pessoal.
Portanto o filme não surgirá como a afirmação pessoal directa que Penn gostaria de estar a fazer. No entanto parece-me que pode bem ser um trabalho mais pessoal do que ele imagina, envolvido como está em executar o guião de outro homem e frustrado pelo sentimento de limitações e obstáculos no caminho da expressão pessoal directa. Quando se considera as várias etapas na criação do filme, Penn é visto como o único factor constante. Escolha do tema: o romance de Berger pode não ter sido uma escolha inteiramente livre da forma como foram os temas de Mickey One e Alice’s Restaurant, mas nenhum deles foi de forma alguma imposto a Penn, e ele interessa-se há muito no projecto de fazer um filme sobre os índios e o seu destino. Para além disso, a figura central do romance revela algumas claras afinidades com os protagonistas de Penn. Perto do final do livro Jack diz a Old Lodge Skins (as falas não são utilizadas no argumento): “Avô, poucas pessoas têm a sua grande sabedoria. O resto de nós é muitas vezes apanhado em situações em que tudo o que conseguimos fazer é sobreviver, quanto mais compreendê-las. É assim comigo, Pequeno Grande Homem.” Se Billy Bonney tivesse sido mais articulado, podia ter dito o mesmo ao Sr. Tunstall, e (com uma condição semelhante) as palavras poderiam ter sido ecoadas por Mickey, por Bubber Reeves, por Bonnie e Clyde, por Alice, Ray e Shelly. Preparação do guião: Penn deixou claro que o argumento é do próprio Calder Willingham—ele contribuiu menos para o diálogo do que é habitual nos seus filmes. No entanto o guião brotou de consultas entre Willingham e Penn durante um período de anos. Rodagem: Penn, por mais restrições que possa sentir à sua liberdade, demonstrou-me de forma muito convincente que a sua influência permeia tudo. Montagem: Penn está a retomar o seu diálogo “frequentemente inflamado, mas sempre carinhoso” com Dede Allen. Há mais do que um tipo de filme de autor.
As rushes de O Pequeno Grande Homem pareciam muito promissoras e geralmente muito típicas de Penn na sua vivacidade; algumas das tomadas longas eram tão belas que dei por mim a lamentar que fossem provavelmente fragmentadas na montagem, até começar a sentir, à medida que as tomadas se sucediam no ecrã, o impacto, a riqueza e a complexidade que a selecção e a montagem iriam dar. A escolha aparentemente simples entre tomadas alternativas de um posicionamento de câmara idêntico deve apresentar frequentemente grandes problemas. Vi as rushes de uma cena em que Jack e a sua esposa sueca Olga (outra estreante promissora, Kelly Jean Peters) assistem enquanto o recheio da sua casa é vendido em hasta pública, com Olga a chorar histericamente. Numa tomada anterior, e só numa, o vento soprou o cabelo de Olga para a frente da sua cara, dando-lhe uma aparência mais vulnerável; noutros aspectos a tomada era inferior a outras posteriores. Quais são as considerações que guiam as escolhas de um realizador? Eu fiquei ainda mais impressionado com as possibilidades que a montagem proporciona para controlar e mudar a ênfase emocional de uma dada cena, para aumentar ou diminuir a sua complexidade. Em plano médio, Olga parecia predominantemente uma criação cómica, com o histerismo a raiar a caricatura; em grande plano, encostada ao peito de Jack, embora não houvesse mudança detectável no desempenho em si, ela parecia genuinamente patética e perdida.
A julgar pela força daquilo que eu vi, espero por O Pequeno Grande Homem com altas expectativas. Se o filme tem um defeito, penso que possa estar na concretização das personagens índias. Assim sendo, será um caso de um honroso quase-falhanço e não um desastre. Tomou-se um grande cuidado em relação aos detalhes da vida índia: Penn pareceu-me estar a capturar maravilhosamente todas as suas feições exteriores, a sua fisicalidade, a sua dureza, e a evitar com sucesso o meramente pitoresco. Foi agradável descobrir que certas personagens e pormenores do romance que parecem necessariamente estranhos ou alienígenas foram mantidos, notavelmente o “Contrário,” Younger Bear[9], um Cheyenne que foi eleito para fazer tudo ao contrário excepto lutar. Vi as rushes de uma cena em que, ao ir para o banho, ele se “lava” a si próprio com poeira e depois se “seca” no rio. Alguns dos figurantes índios mais velhos conseguiram lembrar-se de alguns “Contrários” da sua infância. Também há o heemaneh, ou índio homossexual, Little Horse[10], que se veste como uma mulher e ao qual se atribui um lugar honrado na sociedade Cheyenne. Na maior parte das adaptações de Hollywood, estas seriam as primeiras personagens a ser eliminadas. Mais uma vez, foi feita uma reflexão cuidadosa na escolha dos papéis dos índios: Old Lodge Skins, a esposa, Little Horse, duas das irmãs de Sunshine, são todos interpretados por índios autênticos. Quando se demonstrou impossível encontrar um índio adequado para um papel, Penn e Millar pegaram numa dica do final do romance de Berger, em que o envelhecido Pequeno Grande Homem, num lar de idosos, se queixa de westerns televisivos em que os índios são interpretados por italianos ou russos, e acrescenta: “Se as gentes do espectáculo acabam de ficar sem índios verdadeiros, deviam contratar orientais para interpretar esses papéis; porque há uma grande semelhança entre eles os dois, sendo primos afastados. Olhe para eles sem preconceito e vai ver o que eu quero dizer.” Mas para um artista, o cuidado e o pensamento não são substituto nenhum para a percepção intuitiva: por mais pesquisa que faça, por mais pormenores que trabalhe, continua a haver o problema de “concretizar” personagens que são o produto de uma cultura que não é a dele, que pensam e sentem com diferenças subtis. Inevitavelmente, as personagens Cheyenne falam inglês, mas para um realizador tão físico como Penn, a forma como uma personagem fala é inseparável da forma como se move, os gestos que faz, de todo esse sentido de vida interior que as personagens de Penn comunicam. O problema começa por ser verbal e rapidamente se transforma em muito mais. Assisti às rushes de uma cena perto do final do filme em que Younger Bear (um actor latino-americano espirituoso e intenso chamado Cal Bellini), a quem Jack tinha salvado uma vez a vida, diz a Jack, depois de o salvar do massacre de Little Big Horn, que estão quites por fim, e da próxima vez que se encontrarem, “posso-te matar sem me tornar má pessoa.” Houve muitas tomadas, e a disparidade entre elas era visivelmente maior do que em qualquer das outras rushes que eu vi, como se Penn e Bellini estivessem a tentar todas as execuções possíveis das falas numa tentativa algo desesperada para encontrar a certa. Podemos estar seguros de que Penn não nos vai dar “peles-vermelhas” estereotipados de Hollywood; resta saber se as suas personagens índias vão alcançar a mesma particularidade vivente que nos habituámos a esperar nos seus filmes.
[1] O Pequeno Grande Homem foi lançado nos Estados Unidos a 23 de Dezembro de 1970. (Nota dos editores)
[2] A duração real é de 139 minutos. Richard Boone não aparece no filme. (N. d. e.)
[3] Vejam-se os comentários de Penn no início da entrevista “Arthur
Penn in Canada.” (N. d. e.)
[4] Raio de Sol. [Nota do tradutor]
[5] Peles de Antigas Pousadas. [N. d. t.]
[6] Ursa Que Cava. [N. d. t.]
[7] Pequena Cerva. [N. d. t.]
[8] Mulher de Milho. [N. d. t.]
[9] Urso Mais Novo. [N. d. t..]
[10] Cavalo Pequeno. [N. d. t.]
in «Arthur Penn», de Robin Wood, Praeger Film Library, Nova Iorque, 1969; republicado in «Arthur Penn - New Edition», de Robin Wood (com Richard Lippe; editado por Barry Keith Grant), Wayne State University Press, Detroit, 2014.
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