sábado, 23 de agosto de 2025

OS VERDES ANOS (1963)


Durante os anos 60, depois de estudar no Institut d’Hautes Études Cinematographiques (IDHEC) e servir de assistente de realização estagiário de Jean Renoir em Le caporal épinglé e de Manoel de Oliveira em Acto da Primavera e A Caça, Paulo Soares da Rocha conseguiu realizar o seu primeiro filme graças aos profissionais que António da Cunha Telles reuniu e formou no rescaldo da sua primeira produção, Vacances portugaises de Pierre Kast, que trouxe a Portugal actores como Catherine Deneuve, Jean-Pierre Aumont e Barbara Laage, bem como o mítico director de fotografia Raoul Coutard, que por essa altura já tinha trabalhado com Pierre Schoendoerffer, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Demy e Jean Rouch. 
 
Cunha Telles também estudou no IDHEC, onde conheceu Paulo Rocha e Alfredo Tropa, que viria a realizar o programa de televisão “O Povo que Canta”, com Michel Giacometti, e Pedro Só nos anos setenta. Saído dos Açores para Lisboa para estudar Medicina, Telles acaba por candidatar-se a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e vai para Paris estudar cinema. De regresso a Portugal, dirige um jornal de actualidades e assume funções nos Serviços de Cinema da Direcção-Geral do Ensino Primário, orientando cursos de cinema na Mocidade Portuguesa e realizando pequenos trabalhos encomendados. “O triste cinema que ainda existia,” disse ele mais tarde à Antena 2, “sem graça, sem piada, sem ideias, cinzentão, não queria que nós aparecêssemos, fechou-nos completamente as portas. (...) A minha primeira ideia era ter sido segundo assistente de um dos realizadores da época, para ver como funcionava. Isso foi-nos proibido. Aproximámo-nos entre nós e começámos a fazer filmes com equipas que inventámos.”[1] 
 
É assim que surgem Os Verdes Anos, numa atitude construtiva de mudar o panorama das coisas e de dar o melhor de si, e com os outros, para o fazer. Talvez seja isso que explique, também, a relação duma geração inteira com o próprio cinema. Como em Itália, com o neo-realismo, como em França, com a Nouvelle Vague, como em Inglaterra, com o Free Cinema, como no Brasil, com o Cinema Novo, como na Alemanha, com o Neuer Deutscher Film – e o facto dos movimentos terem nomes é apenas uma convenção –, houve um grupo de jovens que tomou o mundo de assalto e reclamou uma parte para si através do cinema, e o cinema passou a representar essa geração através deles. “(…) Descobriram-se novos autores,” disse Paulo Rocha a Roberto Turigliatto[2], “novos caminhos para percorrer. Pode-se dizer que grande parte do que acontece em Portugal de há trinta anos para cá deriva desta fractura, da brecha que então se abriu. De repente tornou-se possível ser culto, vanguardista na arte e politicamente engajado.

“A dada altura os meus estudos universitários em Lisboa não andavam muito bem, e comecei a produzir uma quantidade excessiva de histórias. Escrevia quatro páginas, às vezes mais, lembro-me de ter feito uma lista, tinha cerca de 50 histórias, e cada uma tinha precisado de uma semana para se organizar na minha cabeça. Corpos, personagens, incidentes. Também tive sempre a mania de caminhar a pé, fosse na cidade, ouvindo as pessoas, fosse em lugares um pouco mais mágicos e misteriosos, na montanha, no campo... Por exemplo, Os Verdes Anos nasceu do facto de duas vezes por semana eu passar três horas a andar sem destino pelos arredores de Lisboa, naquelas zonas rurais que foram sendo «apropriadas» a pouco e pouco, onde se estabeleciam aqueles que não conseguiam encontrar um quarto na cidade. Ainda se viam os restos de um mundo secular vagamente idílico e de repente mudava tudo... Era atraído por estes lugares como que por um mistério, era qualquer coisa de obsessivo, acabei a ir lá duas vezes por semana. 
 
Os Verdes Anos nasceu também de uma notícia num jornal, o crime cometido por um sapateiro. Por acaso aquele crime tinha acontecido a uns cem metros da casa onde vivia em Lisboa, no cruzamento da Avenida de Roma com a Avenida dos Estados Unidos.” 
 
Este filme de Paulo Rocha, além de ser importante e de marcar um antes e um depois na forma como vemos e fazemos cinema em Portugal, é também um trabalho muitíssimo bem fabricado, desde os diálogos escritos por Nuno Bragança ou improvisados por Isabel Ruth, à belíssima música de Carlos Paredes que adapta o Summertime de George Gershwin, passando pela forma como tudo nos é dado a ver, ouvir e sentir e que é o que envolve o trabalho de um realizador, e que é o que pode ser o cinema: mapear e sintetizar a ideia duma cidade com poucas imagens, relacionar esses espaços e essas imagens com o que sentem as personagens em dado momento, documentar idas e vindas do trabalho e um modo de viver e de sobreviver que já foi o nosso, recortar imagens com o próprio cenário e criar assim novas imagens, ocultar o que pode ser intuído e mostrar apenas o que pode ser revelado, ou demonstrado. Se se diz que uma imagem vale mil palavras, porque é que quase nunca pensamos e discutimos o cinema em termos de imagens e sucessões de imagens? O que é um plano. O que se vê num plano. Uma imagem que fica e nunca se perde, décadas passadas… a dança dos jovens apaixonados e da câmara naquele salão nobre, enquadrando e percorrendo primeiro os candelabros e o tecto, depois as silhuetas de Isabel Ruth e Rui Gomes… ou Ilda e Júlio… nos “nossos verdes anos.”

[1] in «Morreu produtor e realizador António da Cunha Telles, nome maior do Cinema Novo português», Observador, 24 de Novembro de 2022.
[2] in «Paulo Rocha», org. Roberto Turigliatto, Lindau, 1995.

Folha de sala escrita para a exibição do filme numa escola secundária em Braga, no âmbito das actividades do Lucky Star - Cineclube de Braga nas escolas da cidade.

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