terça-feira, 31 de julho de 2018

O LOBO DO MAR


por João Bénard da Costa

1 Entre a tarde em que me caiu o último dente de leite e a manhã em que me levantei com vontade de experimentar que tal me ficava a pêra (estou-me a referir a vinte e cinco anos da minha vida, pouco mais ou menos) dizia-se que Lisboa no Verão era melhor que Baden-Baden. Talvez o fosse. Não só pelas muitas e boas razões que levaram o autor da frase a inventá-la, como pelos muitos e bons filmes que, todos esses anos, eram cadencialmente repostos na época estival. Se não fosse ela - se não fossem elas - nunca teria visto tantos filmes da minha vida, que se estrearam quando eu ainda não tinha vida, ou ainda não ia ao cinema. Mas voltavam, voltavam, nas noites quentes dos verões antigos.

Ao cheiro das primeiras pipocas tão bom uso se perdeu. Quem teve a grande desgraça de nascer depois da revolução, já só soube do que se passava apenas pelos filmes dos tempos da sua idade. Criou-se a fatídica distinção, que só ao cinema se aplica, entre "filmes antigos" (coisas da Gulbenkian, da Cinemateca, ou das noites na televisão) e "cinema", já desactualizado, já esquecido, um ano depois de alabardadas estreias. Lisboa deixou de ser Baden-Baden e passou a ser, cinematograficamente, Texasville depois do Last Picture Show.

Não há mal que sempre dure. Nos anos 90, graças sejam dadas ao Paulo Branco, recomeçaram, de Inverno e de Verão, reposições de antanho, ao princípio recebidas com enorme friagem (quem só comeu "pizzas" dificilmente se tenta com lagostas) pouco a pouco justamente saboreadas. Começam-se a ver os frutos. A boa pedra nunca resiste à persistência das águas.

Porém, o que nunca se tinha visto, desde os idos anos 60, foi o que esta semana se viu. A reposição de um filme que, pelo menos há cinquenta anos, não passava em telas nossas. Incluindo - com enorme vergonha o digo - nas da Cinemateca. Estreou-se no Politeama, quando Filipe La Féria nem nascido era, a 2 de Novembro de 1944, mais de três anos depois da estreia mundial, o que, como já explicarei, não sucedeu por acaso. Enquanto a cópia durou (1949? 1950?) andou por aí, no que nesses anos se chamavam "reprises". Depois, sumiu. Refiro-me a The Sea Wolf, realizado para a Warner Brothers por Michael Curtiz (1941), com argumento de Robert Rossen, fotografia de Sol Polito, música de Erich Korngold e com Edward G. Robinson, John Garfield, Ida lupino, Alexander Knox, Gene Lockhart e Barry Fitzgerald nos papéis principais.

Quem português vivo o viu, ou tem mais de 65 anos e começou novíssimo a ir ao cinema (meu caso) ou o entreviu na televisão ou em vídeo ou fora de Portugal o viu. Quarta hipótese não há. A "história" alguns mais a devem conhecer. Ou do célebre romance de Jack London que lhe serviu de base, ou das dez outras versões que, entre 1913 e 1993, directamente ou indirectamente se basearam no clássico de London. Quem eventualmente as conheça - sobretudo quem guarde na memória o "lobo" de Charles Bronson em 1993 - também nunca viu nada. The Sea Wolf, filme, só há este e mais nenhum. E até o cinzento Maltin vos dirá que o "deranged Wolf" de Bronson "make one appreciate the Edward G. Robinson version even more".

A coragem de Paulo Branco, neste caso, foi a de apostar num filme que nenhum senhor crítico conhece de parte alguma, ou em parte alguma foi alguma vez contado em português. Ao que ele me disse - e acredito - escolheu-o por gosto pessoal, com as memórias de um desconhecido que viveu comovido os domingos de Paris. É para estas coisas que vale a pena ter poder e ter dinheiro, ou ter, de um ou de outro, a ilusória aparência. Pelo menos durante uma ou duas semanas, podemos sonhar que vivemos noutra cidade e noutro país. Paris, São Petersburgo, o mundo.

Longo foi o preâmbulo, mas de mal agradecidos está o inferno cheio.

2 Não pensei que a palavra - inferno - viesse tão cedo ao meu encontro. Já aconteceu e não me desdigo, mas antes de me aproximar dela, vou aqui - aos meus olhos - dar uma volta. Já venho.

Miudíssimo era quando vi o lobo, numa cópia que já devia estar em estilhas. A única sequência de que me lembrava como se fosse hoje é aquela em que Cooky (Barry Fitzgerald) é atirado ao mar, depois de denunciado por Wolf Larsen como bufo reles. A criatura, com os risinhos sinistros e a dengosa concupiscência, mereceu bem o mergulho. "No sad songs for him." Mas enquanto esbraceja para voltar ao barco, vemos, atrás dele, um dos dois triângulos mais inconfundíveis do mundo. No caso não é esse, sumarento e musgoso, mas o que um século de cinema nos ensinou a associar ao terrível nome de tubarão. É mesmo um, e dos grandes, que vem no encalce de Cooky. Os justiceiros não queriam tanto. Atiram-lhe uma corda e começam-no a puxar. Dois planos da cabeça do cozinheiro, dois planos do triângulo mais perto dele. Ainda o conseguem içar, mas do que lhe aconteceu sabemos pelo seco comentário de Wolf: "Better tie up what's left of his leg before he bleeds to death." Van Weyden (Alexander Knox) olha horrorizado e o plano funde com um outro em que vemos só as sombras dos marinheiros, cantando "Whiskey Johnny".

Gostava que me explicassem porque é que só essa cena retive e só nela reconheci em The Sea Wolf do King, da Atalanta e de 2000, o The Sea Wolf do Chiado-Terrasse, da SIF e de 1948.

3 Quanto ao resto, como não gostar, nos dias de ontem como nos dias de hoje?

Está lá quase tudo do que gosto.

Gosto de nevoeiro, que me lembra tanta coisa e me faz ter uma espécie de medo de tudo o que eu já esqueci (isto é doutro filme, mas, como rima, consinto).

Gosto de escunas e esquifes, como gosto de todas as palavras começadas por es: escarpa, escuro, esfinge, esmeralda, esfera, estremenha, estorninho.

Gosto de fantasmas e, ainda mais, de fantasmas que andam perdidos nos mares e são navios deles, como "The Ghost", a escuna de Wolf.

Gosto de lobos, que me lembram florestas macias e neves áridas, capuchinhos vermelhos e brancas patas de cabrinhas, metidas por frinchas onde mais nada se vê delas.

Gosto de Milton e do Paradise Lost, de todos os paraísos o melhor (Dante que me perdoe, que eu não sei o que digo).

Gosto dos livros que em criança li e levei para a cama comigo, de luz escondida debaixo dos lençóis, para que o quarto cheirasse a escuro e não suspeitassem que os lia.

Gosto dos filmes que ficam sempre indefinidos, cruzamentos de muitos géneros. The Sea Wolf é um filme do mar, mas é afastadíssimo parente dos filmes de piratas de que tanto gosto e pouco tem que ver (só uns restos de "décor") com The Sea Hawk que Michael Curtiz também realizou, mas um ano antes. The Sea Wolf é um filme de acção (a publicidade da época contava 17 lutas, com natural exagero) mas é também um filme intimista, de espaços e corpos cerrados. The Sea Wolf é um filme político (a parábola proposta tem no nazismo um destinatário óbvio, tão óbvio que só por essa razão demorou três anos a chegar a Portugal) mas é um filme metafísico e Curtiz (como Jack London) não esconde o seu fascínio pelo Mal. The Sea Wolf é um "film noir" ("a quasi-romantic narrative accentuated by a dark and sinister atmosphere", como notaram os teóricos do género) mas pouco o aproxima dos mestres do género, Lang, Brahm, Siodmak ou Ulmer. The Sea Wolf é um filme realista (dessa perspectiva, foi criticado pelas eminências do tempo) mas é um paradigma do "tardo-expressionismo" que invadiu o cinema americano nos "forties". The Sea Wolf está perto até dizer queima do ingénuo socialismo vitoriano de Jack London, mas é também um grande filme "reaccionário", com o credo da Warner numa ponta e o satanismo dos simbolistas na outra.

Gosto daqueles personagens todos, quer os que vêm de London, quer os que Rossen inventou. E gosto, tantíssimo, dos fabulosos actores que representam cada um deles, e sobretudo dos seus de que lá para cima falei.

4 Gosto de Barry Fitzgerald, que inicialmente se parece com ele próprio, "talking a little treason", como num filme de Ford, para, já sem perna, rastejar pelo convés, abjecto de medo e ódio, e, pela primeira vez, olhar Wolf Larsen nos olhos que só ele ainda sabe que já não olham. E primeiro em "close shot" e, depois, off, a mais horrível denúncia: "E's blind, I tell ye... the beggar's blind." "The beggar's", na boca dele, referindo-se a Wolf Larsen!

Gosto de Gene Lockhart, irmão gémeo de tantos outros médicos bêbedos nada anónimos, até essa sequência sublime (uma das minhas favoritas) em que, do alto dos mastros, enquanto a câmara voa em campos-contra-campos e plongées-contra-plongées, com virtuosismos de Pehrlman, desafia Wolf e, indirectamente, desafia Van Weyden. "There is a price no man will pay for living?" Nunca estaremos certos se foi isso que o fez saltar, ou se foi o medo do autoprotagonismo. Mas, quando se atirou, deu a primeira vitória ao escritor e a primeira derrota ao capitão.

Gosto de Ida Lupino, geminada a Garfield pela transfusão entre "jailbirds". Os códigos disfarçaram-lhe, mais do que no livro, a antiga profissão? É certo. Mas os muitos grandes planos dela no final, quando já está apaixonada por Garfield, são visualmente físicos e dolentamente eróticos. O personagem vai-se. Ou vem-se.

Gosto de Alexander Knox (primeiro papel em Hollywood). Gosto de lhe chamar Van Der Weyden, porque se o nome "even sounds like a preacher's name", também se parece com o doador do Juízo Final de Beaune. Curtiz, ao inventar Garfield (personagem inexistente no livro), roubou-lhe boa parte do protagonismo que tem no romance. Mas a sequência no camarote do capitão e a sequência da morte são as mais poderosas do filme. E, se o personagem ilustra o tema do sacrificado sublime, tão caro ao Hollywood dos "forties", prenunciando o Paul Henreid de Casablanca do mesmo Curtiz, morre com um "truque" e só vence graças a esse truque, dando razão "in extremis" ao inimigo.

Gosto de John Garfield, inventado da cabeça aos pés para ser o "herói positivo" em história tão tortuosa. Único personagem presente do princípio ao fim, é o único que não tem psicologia mas apenas tensão. E nela, magnífico é, rebelde com causa, no primeiro dos seus grandes papéis do género, tão, tão bonito, tão, tão rapaz da rua.

Por Edward G. Robinson, já não é só amor, é paixão. Herdeiro do Capitão Nemo, do Capitão Ahab de Moby Dick e sobrinho do Lúcifer de Milton, tem a grandeza e a beleza do príncipe das luzes infernais, rei das névoas, por elas conduzido à cegueira fatal, como Tirésias ou como Édipo nas tragédias gregas. E, se livro e filme se escreveram e fizeram para ajustar contas com super-homens nietzchianos como ele, a suprema ambiguidade é o fascínio com que Rossen e Curtiz o olharam, fascínio que a composição de Robinson (o andar, o olhar, o dizer) levam ao superlativo absoluto mais complexo.

No livro, onde Van Weyden é o narrador, este nota no seu diário: "I must say I was fascinated by the perfect lines of Wolf Larsen's figure, and by what I may term the terrible beauty of it." E, mais adiante, sem ilusões sobre o "barbaric devil" fala de "all the softness and tenderness, almost womanly (sublinhado meu) of his face and form". Edward G. Robinson, seguramente um dos dois ou três maiores actores do século, deu-nos isso tudo.

5 Por isso, é lógico que acabe com a sequência do camarote, quando surpreende Van Weyden surpreendidíssimo com a biblioteca dele (Shakespeare, Tennyson, Poe, De Quincey, Cervantes, Milton e também Tyndel, Proctor, Spencer, Darwin e Nietzsche).

O Paradise Lost está sublinhado na passagem que começa "There at least / We shall be free" e termina na sua citação favorita: "Better to reign in Hell than serve in Heaven". Depois, Wolf interroga-se sobre se não teria sido melhor nunca ter lido livros, saúda o talento literário de Van Weyden e enfia-lhe um soco no estômago para o educar, quando o outro o trata por Larsen e não por Sir. E, a pouco e pouco, entra numa espécie de acordada "rêverie", em que desfila o seu passado. "Parece-me que se está a justificar", observa-lhe o escritor. "My strength justifies me, Mr. Van Weyden", corta cerce. E é única vez que chama Mr. ao seu eventual biógrafo.

Ainda nessa sequência diz que escolherá a própria morte como escolheu a vida. Até nisso não se enganou. Daí o júbilo final, quando percebe que não falhou o alvo. É a rima perfeita para o seu primeiro diálogo, quando lhe morre o imediato: "My mate is dead. You dirty, drunken sot... you died too easy". Pouco depois, aquele grande plano e o modo como pergunta Man? respondendo ao comentário de VanWeyden. "There's not a man any longer... that's just a lump of rum-soaked flesh".

À volta, as névoas, os mastros, o convés. Tudo o que vimos estilizado no genérico, tudo o que ouvimos na pasmosa partitura de Korngold. E o oceano, dito Pacífico, e que nunca vemos ou nunca vemos bem.

Quem foi que inventou a expressão "lobo do mar"? Para mim, depois deste filme, o homem chamou-se Michael Curtiz. Autor ou realizador desta prodigiosa variação sobre o Ricardo III de Shakespeare, sem coroa nem cavalo, mas reinando, absoluto, sobre névoas e escunas, levando consigo para o fundo dos mares a efémera vitória da moral do seu antagonista.

Ide, vede e ouvide a grande epopeia trágica de Wolf Larsen, elo essencial de uma cadeia enorme que finalmente nos ressurge dos abismos, como aqueles bronzes gregos que os pescadores de águas fundas confundiram com afogados ou fundiram com fantasmas.

in "Os filmes que nos vêem/os olhos que nos filmam", «O Independente», 18 de Agosto de 2000, pp. 67 e 68.

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