por João Bénard da Costa
Regressado ao México, depois da apoteose europeia que constituíu a estreia de Los Olvidados, em 1951, Buñuel já vinha com outro capital de confiança e de prestígio. Em Agosto, iniciou as filmagens de Subida al Cielo, produzido por um velho amigo e companheiro de Madrid, o poeta espanhol Manuel Altolaguirre, como ele membro da "geração de 27", como ele exilado no México. Era casado com uma cubana riquíssima (da família Gómez Mena, uma das mais conhecidas da América, que hospedou, entre outras cabeças coroadas, Afonso XIII de Espanha) e que se associou à produçao. A ideia era do próprio Altolaguirre, inspirado numa viagem de autocarro que ele mesmo e a mulher tinham feito no México e onde lhes aconteceram coisas parecidas com as que o filme narra. Deram a Buñuel total liberdade (o que até então não lhe sucedera no México) mas, ao contrário do que a fortuna de Maria Luisa Altolaguirre podia fazer supor, muito poucos meios. A ponto de Buñuel não ter podido filmar o final da história (ficamos sem saber qual dos irmãos ganhou a herança) e da gerente da produção ter ficado num hotel de Acapulco, como "refém", à espera que alguém pagasse a conta.
Mas, para lá dessas vicissitudes, que tanto se sentem no filme (a pobreza das "maquetes", o décor de papelão). Buñuel tinha outro fôlego e reencontrava-se plenamente com o surrealismo que tivera que atenuar nos filmes que costumava classificar como "alimentares" e que agora pôde libertar "à rédea solta". Em Cannes, em 1952, o filme valeu-lhe segundo prémio sucessivo (desta vez, o da crítica internacional), em Paris, o de "melhor filme de vanguarda", além dum "Ariel" (ou seja, a versão mexicana do Oscar) como melhor realizador. O filme teve imediata distribuição internacional (em Portugal não passou, porque o proibiram) e críticas entusiásticas das principais revistas europeias. "Com esta obra-prima, Buñuel fez subir a Sétima Arte ao Sétimo Céu. Canonizem-no", escrevia-se na revista Positif em 1953 (nº4). E Claude Mauriac escrevia que Subida al Cielo estava para a obra de Buñuel como The Lady From Shanghai para a de Welles: a mesma desenvoltura, o mesmo ímpeto criador.
E sem dúvida se pode dizer que Subida al Cielo é um dos pontos culminantes da fase mexicana da obra de Buñuel e talvez seja, em absoluto, um dos seus filmes mais delirantes e deslumbrantes. Se, a partir de Los Olvidados, Buñuel começou a recorrer a uma imagética análoga à das suas primeiras famosas obras (a sequência do sonho no filme referido ou a repetição da figura da mão entalada na porta, utilizada em Susana, como a fôra em Un Chien Andalou - lembram-se da mão coberta de formigas?), em Subida al Cielo essa recapitulação é ainda mais evidente: o caixão com a criança evoca-nos Las Hurdes; as metamorfoses da noiva e de Raquel (confundindo-se no sonho e na culpa do protagonista) trazem-nos as metamorfoses de Un Chien ou de L'Âge d'Or; as obsessões de sexualidade oral vêm directamente do célebre plano da estátua de L'Âge d'Or, etc., etc., etc. Para não falar do bestiário buñuelesco (carneiros, vacas, galinhas) com estas últimas já em citação implícita no plano em que o vendedor das ditas abre o livro com imagens dessas aves. Por outro lado, Subida al Cielo aponta inúmeras pistas da obra futura: o tema da viagem, a mãe no alto da coluna como Simão, o deserto, a mescla de política e erotismo (o personagem do candidato a deputado); a mistura de uma galeria de personagens ultra-inverosímil e ultra-insólita, no mesmo espaço fechado. Basta pensarmos numa das sequências mais famosas do filme: aquela em que a rapariga com um carro de bois consegue desatolar a camioneta, enquanto o tractor do candidato se afunda. Cerca de trinta anos antes, estamos já em Le Charme Discret de la Bourgeoisie. Porventura com mais pureza e mais liberdade imaginativa. Em relação ao filme citado, como às prestigiosas obras dos anos 60 e 70, é possível objectar com a carência de meios técnicos. O que é brilhante nesses filmes é aqui rudimentar e muita gente tropeça no papelão e na "maquete" do autocarro. Mas não querendo transformar defeitos em virtudes (o próprio Buñuel lamentou não ter os recursos que ele próprio vira em Hollywood), essa mesma pobreza de meios acentua o onirismo do filme, tornando tudo mais inverosímil e mais delirante. A propósito de Los Olvidados, notei como a mulher, o sexo e a culpa eram os três temas dominantes de Buñuel. A propósito de vários outros filmes, tenho notado como a frustração é sempre a sua imagem suprema.
Pego nestas duas pistas para o pouco espaço que me resta.
A mulher é mãe, a legítima e a amante. Mais do que qualquer outra obra essas três imagens se confundem aqui. Para executar a última vontade da mãe moribunda, o protagonista renuncia à noite de núpcias na ilha paradisíaca das imagens iniciais e aventura-se na fabulosa viagem, sem ter consumado o casamento. Abandonando a mulher, encontra Raquel, a mulher-amante, imagem da sedução, tal como em tantos outros filmes, e nomeadamente em Susana, desta vez encarnada na espantosa Lilia Prado. A sua virtude e a sua fidelidade (à mãe e à mulher) resistem quanto podem. Mas no sonho já tudo se confunde: as ofertas de Raquel transformam-se nas oferendas nupciais, os frutos nas imagens do sexo, o fio passado de boca em boca no cordão umbilical que a mãe lhe estende do alto da coluna. E o banho, em que antes Raquel o tentara seduzir, volve-se na posse aquática, com Raquel vestida de noiva, sucessivamente com a aparência da mulher e a sua propria. Essa sequência de sonho da noiva empapada, com a sua carga animalística (e a espantosa banda musical) é um dos pontos culminantes da obra de Buñuel, na fusão de todos os arquétipos femininos. É a seguir que o chauffeur adormece e Oliverio conduz a camioneta, assumindo-se como condutor, até que um novo encontro com a imagem materna (a inenarrável sequência da festa em casa da mãe de Silvestre) o leva à decisão de prosseguir a viagem sozinho, na companhia de Lilia Prado. E no lugar chamado "Subida al Cielo" (dando o título ao filme e dando-lhe, também, a sua metáfora mais poderosa) perfaz-se a posse de Oliverio por Raquel, desvirginização do protagonista, sua primeira noite de núpcias. A seguir, a imagem de Raquel desfaz-se ("Lo que queria, já lo tuvo") e, dessa noite prodigiosa, fica só a culpa e a ligação de Raquel com o candidato a deputado. Regressado a casa, Oliverio encontra a mãe morta e essa morte, velada pela mulher que ficara à espera dele, parece-lhe o castigo da sua culpa. Se a mãe não o esperou, como lhe prometera, foi porque ele comeu do fruto proibido (qualquer coisa do mito bíblico perpassa na história de Oliverio e Raquel) e o personagem assume a sua expulsão do paraíso. Só que as expulsões em Buñuel não são definitivas: o artifício do advogado permite-lhe a impressão digital salvadora do testamento. É a marca do corpo da mãe (mesmo quando morto) que assegura a continuidade da primogenitura. Mesmo quando o primogénito foi, simultâneamente, Abel e Caim.
Não me posso deter nas inúmeras pontuações de sexo e morte que atravessam o filme. Limito-me a sublinhar que a mesma miúda que permitiu à camioneta sair do atoleiro é a que, no final, aparece morta, devido à picada duma víbora. O incrível plano da entrada do caixão no autocarro e, sobretudo, aquele outro, sublime, em que outra criança o abre para ver o rosto da morta ("pariece que está dormindo. Que lástima que la traga la tierra") é a ilustração suprema dessa obsessão e das tantas metamorfoses do filme. Por outro lado, tudo se frustra em Subida al Cielo: frustrada a noite de núpcias, frustrada a viagem do protagonista "em tempo útil", frustrada a carnal "subida al cielo" (Raquel contenta-se com a breve posse), frustrado o expediente mais ou menos legal do advogado. Como se frustram e são frustrados todos os outros companheiros de viagem: desde o candidato a deputado (a lapidar sequência da sua recepção-enxovalho) ao vendedor de galinhas; desde o chauffeur a Raquel; desde D. Nemésio (que ensinava boas maneiras à "voyeurista" criança) ao assombroso coxo, ultra-buñueliano personagem, com a perna de pau presa na lama.
E o resto é tudo. Ou seja, o tema da viagem, com os sucessivos impedimentos à sua constituição, fundindo no surreal, os velhos contos das princesas e dragões, das crianças perdidas na floresta e das intermináveis aventuras de amor e morte, duas ou a mesma face duma única imagem impossível: a da subida ao céu que não existe.
in AS FOLHAS DA CINEMATECA - Luís Buñuel
Mas, para lá dessas vicissitudes, que tanto se sentem no filme (a pobreza das "maquetes", o décor de papelão). Buñuel tinha outro fôlego e reencontrava-se plenamente com o surrealismo que tivera que atenuar nos filmes que costumava classificar como "alimentares" e que agora pôde libertar "à rédea solta". Em Cannes, em 1952, o filme valeu-lhe segundo prémio sucessivo (desta vez, o da crítica internacional), em Paris, o de "melhor filme de vanguarda", além dum "Ariel" (ou seja, a versão mexicana do Oscar) como melhor realizador. O filme teve imediata distribuição internacional (em Portugal não passou, porque o proibiram) e críticas entusiásticas das principais revistas europeias. "Com esta obra-prima, Buñuel fez subir a Sétima Arte ao Sétimo Céu. Canonizem-no", escrevia-se na revista Positif em 1953 (nº4). E Claude Mauriac escrevia que Subida al Cielo estava para a obra de Buñuel como The Lady From Shanghai para a de Welles: a mesma desenvoltura, o mesmo ímpeto criador.
E sem dúvida se pode dizer que Subida al Cielo é um dos pontos culminantes da fase mexicana da obra de Buñuel e talvez seja, em absoluto, um dos seus filmes mais delirantes e deslumbrantes. Se, a partir de Los Olvidados, Buñuel começou a recorrer a uma imagética análoga à das suas primeiras famosas obras (a sequência do sonho no filme referido ou a repetição da figura da mão entalada na porta, utilizada em Susana, como a fôra em Un Chien Andalou - lembram-se da mão coberta de formigas?), em Subida al Cielo essa recapitulação é ainda mais evidente: o caixão com a criança evoca-nos Las Hurdes; as metamorfoses da noiva e de Raquel (confundindo-se no sonho e na culpa do protagonista) trazem-nos as metamorfoses de Un Chien ou de L'Âge d'Or; as obsessões de sexualidade oral vêm directamente do célebre plano da estátua de L'Âge d'Or, etc., etc., etc. Para não falar do bestiário buñuelesco (carneiros, vacas, galinhas) com estas últimas já em citação implícita no plano em que o vendedor das ditas abre o livro com imagens dessas aves. Por outro lado, Subida al Cielo aponta inúmeras pistas da obra futura: o tema da viagem, a mãe no alto da coluna como Simão, o deserto, a mescla de política e erotismo (o personagem do candidato a deputado); a mistura de uma galeria de personagens ultra-inverosímil e ultra-insólita, no mesmo espaço fechado. Basta pensarmos numa das sequências mais famosas do filme: aquela em que a rapariga com um carro de bois consegue desatolar a camioneta, enquanto o tractor do candidato se afunda. Cerca de trinta anos antes, estamos já em Le Charme Discret de la Bourgeoisie. Porventura com mais pureza e mais liberdade imaginativa. Em relação ao filme citado, como às prestigiosas obras dos anos 60 e 70, é possível objectar com a carência de meios técnicos. O que é brilhante nesses filmes é aqui rudimentar e muita gente tropeça no papelão e na "maquete" do autocarro. Mas não querendo transformar defeitos em virtudes (o próprio Buñuel lamentou não ter os recursos que ele próprio vira em Hollywood), essa mesma pobreza de meios acentua o onirismo do filme, tornando tudo mais inverosímil e mais delirante. A propósito de Los Olvidados, notei como a mulher, o sexo e a culpa eram os três temas dominantes de Buñuel. A propósito de vários outros filmes, tenho notado como a frustração é sempre a sua imagem suprema.
Pego nestas duas pistas para o pouco espaço que me resta.
A mulher é mãe, a legítima e a amante. Mais do que qualquer outra obra essas três imagens se confundem aqui. Para executar a última vontade da mãe moribunda, o protagonista renuncia à noite de núpcias na ilha paradisíaca das imagens iniciais e aventura-se na fabulosa viagem, sem ter consumado o casamento. Abandonando a mulher, encontra Raquel, a mulher-amante, imagem da sedução, tal como em tantos outros filmes, e nomeadamente em Susana, desta vez encarnada na espantosa Lilia Prado. A sua virtude e a sua fidelidade (à mãe e à mulher) resistem quanto podem. Mas no sonho já tudo se confunde: as ofertas de Raquel transformam-se nas oferendas nupciais, os frutos nas imagens do sexo, o fio passado de boca em boca no cordão umbilical que a mãe lhe estende do alto da coluna. E o banho, em que antes Raquel o tentara seduzir, volve-se na posse aquática, com Raquel vestida de noiva, sucessivamente com a aparência da mulher e a sua propria. Essa sequência de sonho da noiva empapada, com a sua carga animalística (e a espantosa banda musical) é um dos pontos culminantes da obra de Buñuel, na fusão de todos os arquétipos femininos. É a seguir que o chauffeur adormece e Oliverio conduz a camioneta, assumindo-se como condutor, até que um novo encontro com a imagem materna (a inenarrável sequência da festa em casa da mãe de Silvestre) o leva à decisão de prosseguir a viagem sozinho, na companhia de Lilia Prado. E no lugar chamado "Subida al Cielo" (dando o título ao filme e dando-lhe, também, a sua metáfora mais poderosa) perfaz-se a posse de Oliverio por Raquel, desvirginização do protagonista, sua primeira noite de núpcias. A seguir, a imagem de Raquel desfaz-se ("Lo que queria, já lo tuvo") e, dessa noite prodigiosa, fica só a culpa e a ligação de Raquel com o candidato a deputado. Regressado a casa, Oliverio encontra a mãe morta e essa morte, velada pela mulher que ficara à espera dele, parece-lhe o castigo da sua culpa. Se a mãe não o esperou, como lhe prometera, foi porque ele comeu do fruto proibido (qualquer coisa do mito bíblico perpassa na história de Oliverio e Raquel) e o personagem assume a sua expulsão do paraíso. Só que as expulsões em Buñuel não são definitivas: o artifício do advogado permite-lhe a impressão digital salvadora do testamento. É a marca do corpo da mãe (mesmo quando morto) que assegura a continuidade da primogenitura. Mesmo quando o primogénito foi, simultâneamente, Abel e Caim.
Não me posso deter nas inúmeras pontuações de sexo e morte que atravessam o filme. Limito-me a sublinhar que a mesma miúda que permitiu à camioneta sair do atoleiro é a que, no final, aparece morta, devido à picada duma víbora. O incrível plano da entrada do caixão no autocarro e, sobretudo, aquele outro, sublime, em que outra criança o abre para ver o rosto da morta ("pariece que está dormindo. Que lástima que la traga la tierra") é a ilustração suprema dessa obsessão e das tantas metamorfoses do filme. Por outro lado, tudo se frustra em Subida al Cielo: frustrada a noite de núpcias, frustrada a viagem do protagonista "em tempo útil", frustrada a carnal "subida al cielo" (Raquel contenta-se com a breve posse), frustrado o expediente mais ou menos legal do advogado. Como se frustram e são frustrados todos os outros companheiros de viagem: desde o candidato a deputado (a lapidar sequência da sua recepção-enxovalho) ao vendedor de galinhas; desde o chauffeur a Raquel; desde D. Nemésio (que ensinava boas maneiras à "voyeurista" criança) ao assombroso coxo, ultra-buñueliano personagem, com a perna de pau presa na lama.
E o resto é tudo. Ou seja, o tema da viagem, com os sucessivos impedimentos à sua constituição, fundindo no surreal, os velhos contos das princesas e dragões, das crianças perdidas na floresta e das intermináveis aventuras de amor e morte, duas ou a mesma face duma única imagem impossível: a da subida ao céu que não existe.
in AS FOLHAS DA CINEMATECA - Luís Buñuel
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