por Peter Bogdanovich
Na manhã seguinte à minha chegada (em companhia de Polly Platt) aos exteriores de Cheyenne Autumn em Monument Valley, o homem do departamento de publicidade veio ter connosco ao pequeno almoço para perguntar - parece que não tinha sido informado - qual era a minha tarefa. "John Ford", disse eu.
Empalideceu. "Oh, não."
"Sim", disse eu.
"Oh, não, não", disse ele outra vez e olhou à volta nervosamente como se quisesse assegurar-se que ninguém nos tinha ouvido. Perguntei-lhe qual era o problema e, tremendo, tentou explicar que Mr. Ford nunca concedia entrevistas, odiava jornalistas, fugia da publicidade, detestava falar dos seus filmes e era totalmente inacessível para todas as pessoas. Tive a nítida impressão que este tipo envelhecido e agora quase desvairado preferia que o chão o tragasse a arriscar-se mesmo em pensamento a mencionar a Mr. Ford que eu estava dentro de um raio de mil milhas.
Contra-ataquei dizendo que os patrões dele, a Warner Bros., acabara de pagar a nossa viagem de Nova Iorque para o Arizona e que estavam perfeitamente informados da minha tarefa quando arranjaram os bilhetes. (De facto, tinha sido necessário pressionar mais Harold para concordar com o artigo do que a Warner's; ele não se mostrara muito interessado, mas John Ford estava há anos entre os realizadores que eu mais gostava e estava ansioso por conhecê-lo e vê-lo trabalhar; por isso, depois de muita insistência da minha parte, Harold capitulou). Bem, disse o desgraçado homem das r.p., podíamos observá-lo de longe durante algum tempo, mas eu não podia falar a Mr. Ford ou mesmo deixar que ele me visse. Nessa altura, concordar com isso parecia a única forma de chegar a pôr o pé no plateau, por isso aceitei.
Durante dois dias, com o homem da publicidade sempre agarrado aos meus calcanhares, cumpri as regras que ele tinha imposto. Mr. Ford puxava frequentemente de um lenço e chupava-o, o que segundo me informou nervosamente o homem da publicidade era sinal de descontentamento ou irritação. Só algum tempo mais tarde descobri que isto era um disparate, visto que Mr. Ford, quando não está a fumar um cigarro ou a chupar num charuto, está sempre a chupar num lenço - não é um sinal de coisa nenhuma, excepto de provavelmente estar a tentar reduzir o consumo de tabaco.
Na primeira tarde de Domingo - o único dia em que não filmavam - encontrei por acaso Jack Garfein (o realizador) que estava ali de visita à então sua mulher, Carroll Baker; iam dar um passeio a cavalo. Garfein e eu tínhamos um amigo comum, Gene Archer, que estava nessa altura no New York Times, e servi-me disso como pretexto para me apresentar. Quando ele me perguntou que raio estava eu ali a fazer, disse-lhe.
"Jack Ford sabe que você está cá?", perguntou ele.
"Não, isso é que é o problema", e contei-lhe a situação.
"Oh, por amor de Deus", disse ele, "isso é ridículo. Ele há-de gostar imenso de o ver. Eu digo-lhe que está cá."
Cerca de quatro horas depois um jipe desceu ruidosamente a colina onde Ford e as estrelas estavam instalados (o resto da companhia ficava em baixo em reboques, num dos quais tínhamos sido instalados), e ouvi Ray Kellogg, o segundo assistente de realização, gritando muito alto qualquer coisa que acabei por descobrir ser uma aproximação imperfeita do meu nome. Fui a correr.
"É MacDonabitch?"
"Sim."
"O Velho quer que vá jantar com ele - por volta das seis. O.K.?"
"O.K.!"
Já estavam todos sentados quando cheguei, mas quem quer que fosse estava sentado à direita de Mr. Ford (eu estava demasiado excitado para me lembrar) foi mudado para outro lugar para que eu me sentasse lá. Fez-me um simpático cumprimento com a cabeça, pronunciou o meu nome correctamente e disse, "Sérvio?"
Disse que sim com o ar mais descuidado possível, mas estava impressionado. Durante toda a minha vida as pessoas tinham sempre partido do princípio que o nome era ou russo, ou polaco, ou checo, ou húngaro; às vezes adivinhavam que era jugoslavo, mas ninguém o tinha definido com tanta exactidão à primeira tentativa. Nesta altura o co-produtor do filme, um tal Bernard Smith (sobre quem direi em breve mais umas coisas), fez uma observação qualquer ao realizador relacionada com negócios. Ford olhou para ele em silêncio e com um ar carrancudo durante um bocado, depois voltou-se para mim: "Existe um palavra para o que ele acabou de dizer."
Inclinei-me para ele. "Sim?"
"Govno", disse Ford. Fiquei siderado. A palavra é o equivalente sérvio de "merda".
Na semana seguinte, Mr. Ford foi mais do que cooperativo para comigo no plateau; foi, no seu modo um pouco rude, notavelmente amigável. Era frequente estar frio nos exteriores e Polly começou a usar um cobertor índio enrolado à volta dela, levando Ford a chamar-lhe "Teepee-que-Anda". Eu andava com um chapéu de camurça de que ele manifestamente não gostava, por isso um dia gritou "Guarda-roupa" e mandou-os arranjarem-me um chapéu de cavalaria. Depois, ele próprio viu se me ficava bem, ajustando as abas à soldado de cavalaria até se sentir satisfeito com o resultado. "É melhor que aquela maldita coisa que você usava."
Ora, esta atenção que ele tão generosamente nos dispensava, não estava a agradar nada ao produtor, principalmente, calculo eu, porque tinham chegado aos exteriores um jornalista e um fotógrafo da Life, a quem Ford muito jovialmente ou ignorava ou insultava. Costumava referir-se ao jornalista como "aquele tipo da Vida, Morte e Fortuna." Finalmente, o produtor Smith (com quem tinha também cometido o erro táctico de não o entrevistar) deve ter decidido que se tinha de fazer qualquer coisa e, assim, fui informado, com muitas tremuras e gaguejos pelo homem da publicidade, que teríamos de partir - amanhã; o nosso atrelado, continuava a desculpa, era preciso para membros da companhia que estavam a chegar. Uma vez que dissera à Warner's que precisaria de pelo menos duas semanas para fazer um bom artigo, fiquei, e não pouco, aborrecido e perturbado por ser posto a andar passado pouco mais de uma semana. Perguntei se Mr. Ford estava informado deste pedido e recebi uma resposta evasiva que dava a entender que tinha sido Mr. Smith a dar a ordem. Finalmente tinha uma razão para falar com o produtor, o que fiz com fracos resultados. Ele explicou melifluamente o alegado problema de falta de espaço, metendo ao mesmo tempo várias insinuações sobre as suas "contribuições" para a produção.
Nessa tarde, quando Mr. Ford se dirigia para o jantar, disse-lhe que tínhamos de partir no dia seguinte e agradeci-lhe a paciência que revelara.
"Para onde é que vai?", perguntou ele. Expliquei-lhe os problemas de espaço de que tínhamos sido informados e que não queria abusar da hospitalidade dele ou fazer ondas. "Ora, venha daí, vamos comer", disse ele e assim fizemos. Pouco depois de nos termos sentado entrou o produtor. Ford chamou-o delicadamente. "Ouve, Bernie", disse ele num tom muito moderado, "dá o meu quarto aqui ao Bogdanovich que eu fico com outra pessoa qualquer lá em baixo."
O produtor ficou com uma cor esquisita. "Oh, não Jack, não podemos fazer isso."
"Não, não tem importância nenhuma", disse Ford ainda muito calmamente, "dá-lhes o meu quarto se não há lugar e eu fico com outra pessoa."
"Jack, não sejas - quer dizer, isso é ridículo - nós podemos arranjar outra solução qualquer."
"Ah, podem, Bernie? Achas que podes arranjar lugar para eles?"
"Claro, posso pois, Jack, não te preocupes com isso."
"Oh, obrigado, Bernie." O produtor começou a afastar-se aliviado. Ford gritou-lhe: "Mas, ouve, se houver qualquer problema, eles podem ficar com o meu quarto, já sabes." Smith, com um sorriso amarelo, acenou-lhe com a mão. A expressão de Ford tornou-se finalmente carrancuda e inclinou-se para mim. "Fique o tempo que quiser", disse ele.
Ao longo dos anos, desde que o artigo foi publicado, as minhas relações com Mr. Ford não foram sempre tão amigáveis ou tão fáceis; é impossível ser-se amigo ou admirador dele sem sofrer algumas picadas da língua mordaz do irlandês ou sofrer um to que daquilo que Cagney designava por "malícia". Mas ele é um dos grandes homens do cinema, e está entre as poucas pessoas realmente fascinantes que tenho conhecido. O artigo que se segue, o livro que acabei por escrever sobre ele (que se serviu de algum deste material) e o documentário de longa-metragem que realizei sobre a carreira dele, considerados separadamente, ou em conjunto, não conseguem sequer fazer justiça a quem ele é ou àquilo que ele conseguiu realizar.
Durante dois dias, com o homem da publicidade sempre agarrado aos meus calcanhares, cumpri as regras que ele tinha imposto. Mr. Ford puxava frequentemente de um lenço e chupava-o, o que segundo me informou nervosamente o homem da publicidade era sinal de descontentamento ou irritação. Só algum tempo mais tarde descobri que isto era um disparate, visto que Mr. Ford, quando não está a fumar um cigarro ou a chupar num charuto, está sempre a chupar num lenço - não é um sinal de coisa nenhuma, excepto de provavelmente estar a tentar reduzir o consumo de tabaco.
Na primeira tarde de Domingo - o único dia em que não filmavam - encontrei por acaso Jack Garfein (o realizador) que estava ali de visita à então sua mulher, Carroll Baker; iam dar um passeio a cavalo. Garfein e eu tínhamos um amigo comum, Gene Archer, que estava nessa altura no New York Times, e servi-me disso como pretexto para me apresentar. Quando ele me perguntou que raio estava eu ali a fazer, disse-lhe.
"Jack Ford sabe que você está cá?", perguntou ele.
"Não, isso é que é o problema", e contei-lhe a situação.
"Oh, por amor de Deus", disse ele, "isso é ridículo. Ele há-de gostar imenso de o ver. Eu digo-lhe que está cá."
Cerca de quatro horas depois um jipe desceu ruidosamente a colina onde Ford e as estrelas estavam instalados (o resto da companhia ficava em baixo em reboques, num dos quais tínhamos sido instalados), e ouvi Ray Kellogg, o segundo assistente de realização, gritando muito alto qualquer coisa que acabei por descobrir ser uma aproximação imperfeita do meu nome. Fui a correr.
"É MacDonabitch?"
"Sim."
"O Velho quer que vá jantar com ele - por volta das seis. O.K.?"
"O.K.!"
Já estavam todos sentados quando cheguei, mas quem quer que fosse estava sentado à direita de Mr. Ford (eu estava demasiado excitado para me lembrar) foi mudado para outro lugar para que eu me sentasse lá. Fez-me um simpático cumprimento com a cabeça, pronunciou o meu nome correctamente e disse, "Sérvio?"
Disse que sim com o ar mais descuidado possível, mas estava impressionado. Durante toda a minha vida as pessoas tinham sempre partido do princípio que o nome era ou russo, ou polaco, ou checo, ou húngaro; às vezes adivinhavam que era jugoslavo, mas ninguém o tinha definido com tanta exactidão à primeira tentativa. Nesta altura o co-produtor do filme, um tal Bernard Smith (sobre quem direi em breve mais umas coisas), fez uma observação qualquer ao realizador relacionada com negócios. Ford olhou para ele em silêncio e com um ar carrancudo durante um bocado, depois voltou-se para mim: "Existe um palavra para o que ele acabou de dizer."
Inclinei-me para ele. "Sim?"
"Govno", disse Ford. Fiquei siderado. A palavra é o equivalente sérvio de "merda".
Na semana seguinte, Mr. Ford foi mais do que cooperativo para comigo no plateau; foi, no seu modo um pouco rude, notavelmente amigável. Era frequente estar frio nos exteriores e Polly começou a usar um cobertor índio enrolado à volta dela, levando Ford a chamar-lhe "Teepee-que-Anda". Eu andava com um chapéu de camurça de que ele manifestamente não gostava, por isso um dia gritou "Guarda-roupa" e mandou-os arranjarem-me um chapéu de cavalaria. Depois, ele próprio viu se me ficava bem, ajustando as abas à soldado de cavalaria até se sentir satisfeito com o resultado. "É melhor que aquela maldita coisa que você usava."
Ora, esta atenção que ele tão generosamente nos dispensava, não estava a agradar nada ao produtor, principalmente, calculo eu, porque tinham chegado aos exteriores um jornalista e um fotógrafo da Life, a quem Ford muito jovialmente ou ignorava ou insultava. Costumava referir-se ao jornalista como "aquele tipo da Vida, Morte e Fortuna." Finalmente, o produtor Smith (com quem tinha também cometido o erro táctico de não o entrevistar) deve ter decidido que se tinha de fazer qualquer coisa e, assim, fui informado, com muitas tremuras e gaguejos pelo homem da publicidade, que teríamos de partir - amanhã; o nosso atrelado, continuava a desculpa, era preciso para membros da companhia que estavam a chegar. Uma vez que dissera à Warner's que precisaria de pelo menos duas semanas para fazer um bom artigo, fiquei, e não pouco, aborrecido e perturbado por ser posto a andar passado pouco mais de uma semana. Perguntei se Mr. Ford estava informado deste pedido e recebi uma resposta evasiva que dava a entender que tinha sido Mr. Smith a dar a ordem. Finalmente tinha uma razão para falar com o produtor, o que fiz com fracos resultados. Ele explicou melifluamente o alegado problema de falta de espaço, metendo ao mesmo tempo várias insinuações sobre as suas "contribuições" para a produção.
Nessa tarde, quando Mr. Ford se dirigia para o jantar, disse-lhe que tínhamos de partir no dia seguinte e agradeci-lhe a paciência que revelara.
"Para onde é que vai?", perguntou ele. Expliquei-lhe os problemas de espaço de que tínhamos sido informados e que não queria abusar da hospitalidade dele ou fazer ondas. "Ora, venha daí, vamos comer", disse ele e assim fizemos. Pouco depois de nos termos sentado entrou o produtor. Ford chamou-o delicadamente. "Ouve, Bernie", disse ele num tom muito moderado, "dá o meu quarto aqui ao Bogdanovich que eu fico com outra pessoa qualquer lá em baixo."
O produtor ficou com uma cor esquisita. "Oh, não Jack, não podemos fazer isso."
"Não, não tem importância nenhuma", disse Ford ainda muito calmamente, "dá-lhes o meu quarto se não há lugar e eu fico com outra pessoa."
"Jack, não sejas - quer dizer, isso é ridículo - nós podemos arranjar outra solução qualquer."
"Ah, podem, Bernie? Achas que podes arranjar lugar para eles?"
"Claro, posso pois, Jack, não te preocupes com isso."
"Oh, obrigado, Bernie." O produtor começou a afastar-se aliviado. Ford gritou-lhe: "Mas, ouve, se houver qualquer problema, eles podem ficar com o meu quarto, já sabes." Smith, com um sorriso amarelo, acenou-lhe com a mão. A expressão de Ford tornou-se finalmente carrancuda e inclinou-se para mim. "Fique o tempo que quiser", disse ele.
Ao longo dos anos, desde que o artigo foi publicado, as minhas relações com Mr. Ford não foram sempre tão amigáveis ou tão fáceis; é impossível ser-se amigo ou admirador dele sem sofrer algumas picadas da língua mordaz do irlandês ou sofrer um to que daquilo que Cagney designava por "malícia". Mas ele é um dos grandes homens do cinema, e está entre as poucas pessoas realmente fascinantes que tenho conhecido. O artigo que se segue, o livro que acabei por escrever sobre ele (que se serviu de algum deste material) e o documentário de longa-metragem que realizei sobre a carreira dele, considerados separadamente, ou em conjunto, não conseguem sequer fazer justiça a quem ele é ou àquilo que ele conseguiu realizar.
O OUTONO DE JOHN FORD
"DEVE ESTAR A APARECER NO CIMO DAQUELA ELEVAÇÃO DAQUI A SEGUNDOS", disse Danny Borzage olhando ansiosamente para a estrada. Borzage, um velho de barbas com um ar jovem que tocava acordeão, estava vestido com a farda azul e amarela de um soldado da Cavalaria dos E.U. de 1878. A canção que tocava era "Greensleeves." Passava um pouco das 8 e 30 da manhã em Monument Valley, o sol estava quente, o vento seco e fresco. "Toco sempre quando ele chega ao plateau", dizia Borzage. "Começo sempre com "Bringing in the Sheaves." Levantou de novo os olhos para a estrada. O resto da enorme companhia estava a preparar-se para as primeiras cenas do dia; alguns estavam ali, de pé, a ouvir o acordeão. "Em 1924, ele estava a fazer um filme chamado The Iron Horse", disse Borzage. "O meu irmão Frank estava a fazer um filme no mesmo sítio. Bem, já não sei como, conseguiram-me uma audição com ele. Nesse tempo, sabe, tinham sempre música ambiente no plateau para ajudar os actores. Bem, encontrei-me com ele e ele perguntou-me se sabia tocar 'My Buddy.' 'Sim, senhor, por acaso sei.' Mandou-me parar antes de eu ter acabado e fiquei um bocado nervoso, pensei que não conseguira o lugar." Borzage deu outra olhadela à estrada. "Depois perguntou-me como é que eu me chamava. 'É alguma coisa ao Frank Borzage?' E eu disse, 'Sim', bem e ele disse, 'Porque é que não disse logo?' E eu disse, 'Porque não quero o lugar por causa dele.' E ele disse 'Vá lá e diga ao Frank Borzage que o irmão tem um emprego.'" Borzage sorriu. "E desde aí tem-me dado sempre trabalho."
"Lá vem ele, Danny!", gritou alguém, e precisamente nessa altura, apareceu no cimo da estrada, uma carrinha station branca. Borzage levantou-se e dirigiu-se rapidamente para a berma da estrada. Quando a carrinha se começou a aproximar, começou a tocar "Bringing in the Sheaves" fazendo as notas crescer e cair dramaticamente. O carro parou lentamente a uma distância de nove metros do sítio onde Borzage estava a tocar. O silêncio caíra sobre a companhia.
John Ford estava sentado à frente, espreitando pela janela através de uns óculos de lentes grossas, o olho esquerdo coberto por uma pala prata. Trazia um velho chapéu de feltro de abas largas inclinado sobre o lado esquerdo da cara; na fita de cabedal do chapéu estava espetada uma pena cor-de-laranja. Chupava um pequeno charuto apagado. Borzage tocava "My Darling Clementine."
O aderecista aproximou-se e entregou-lhe uma chávena de café. O director de fotografia e o homem do guarda-roupa tinham saído do carro e estavam de pé junto da janela de Ford. O realizador beberricava o café olhando calmamente em redor. O filho, Patrick Ford, que dirigia a cavalaria, tinha-se juntado ao grupo da janela do carro, juntamente com Wingate Smith, cunhado de Ford e primeiro assistente de realização. Borzage tocava "She Wore a Yellow Ribbon" enquanto se desenrolava uma conversa em surdina junto da janela. Pouco depois o pequeno grupo separou-se, um a um, cumprindo instrucções. Alguém abriu a porta e o realizador saiu do carro. Ford ficou parado por uns momentos observando a cena, uma mão a segurar a chávena e a outra na parte de trás da anca. Era magro, uma figura quase frágil, mas quando se dirigia para a câmara o andar era desenvolto, balançando os braços, o corpo oscilando levemente de um lado para o outro. Borzage olhou para cima e sorriu-lhe envergonhadamente, dando alguns passos atrás.
Ford vestia um casaco desportivo castanho desbotado e umas calças largas de caqui. As pessoas afastavam-se do caminho quando ele se aproximava. Borzage tocava "We Shall Gather At the River." O realizador tinha uma cara dura de ianque, quase má, pequenos tufos de barba branca hirsuta nas faces chupadas. Os olhos eram de um azul pálido. Tinha um lenço cor-de-laranja atado ao pescoço e os atacadores dos sapatos de ténis azuis escuros estavam desapertados. Passou por um Navajo e fez com a mão direita um gesto meio aceno, meio saudação. "Yat'hey, Shi'kis", disse ele e o homem respondeu, "Yat'hei."
Recentemente, em Nova Iorque, James Stewart entregava-se a reminiscências sobre John Ford, tendo acabado de aparecer no papel de Wyatt Earp no último filme do realizador, Cheyenne Autumn.
"Gosto imenso dele. Isso... isso é a primeira coisa", começou ele. "E isso está, claro, misturado com respeito e... e..." Franziu os lábios e abanou a cabeça duas vezes. "Admiração." Stewart inclinou-se para a frente na cadeira. "Ele é... é um génio. A forma como trata um argumento. Fá-lo visualmente. Odeia conversa. Só gostava que houvesse mais gente como ele." Stewart franziu os lábios e abanou a cabeça. "Andam sempre a falar do grupo habitual de Ford, sabe... eu acho que é um raio de uma boa ideia! Gostava que todos fizessem o mesmo. As pessoas sabem trabalhar em conjunto. Não têm de... cada filme não tem de ser a primeira vez. E uma com uma data de realizadores... sabe... é uma pançada de riso no plateau e a gente diverte-se e... e depois vemos o filme e dizemos, 'Onde é que está?... Onde é que está o...' Mas Ford põe isso no écran. E é um verdadeiro chefe. Acho que é o melhor de todos." Abanou a cabeça com veemência.
"Subi ao escritório dele para falarmos do guarda-roupa", continuou Stewart. "Para o primeiro filme que fizemos, Two Rode Together. E, claro, ele não falou de vestuário nenhum!" O actor resmungou imitando Ford. "Falou da Marinha... e da guerra... depois um pouco da... Marinha e um pouco da... guerra... e da Marinha. E eu só conseguia ouvir uma palavra em cada dez. Eu já não ouço muito bem e ele resmungava e... aquele lenço em que está sempre a chupar... eu só abanava a cabeça." Stewart abriu e fechou levemente a boca como se estivesse a comer. "Depois, acabou por me perguntar o que é que eu achava que devia usar no filme." Fez uma pausa. "Pensei... e ele disse, 'Ora antes que diga alguma coisa, vou-lhe dizer o que vai usar!' E mandou sair o homem do guarda-roupa, voltou com um fato e aquele... aquele chapéu! Bem, a aba do chapéu era... tão grande como isto!" Indicou o tampo da mesa a que estávamos sentados. "Bem, pu-lo e... eu parecia... era uma coisa horrível. E ele perguntou-me o que e que eu achava!" Stewart limitou-se a olhar para o espelho. "'Bem, não sei'... Ele diz, 'Tem cláusula de Aprovação-de-Chapéu no seu contrato?' Eu disse, 'Não sei.' Então ele disse, 'Tragam o contrato'... E toda a gente foi procurar o contrato e não o encontraram porque eu não tinha nenhum!" Fez uma pausa. "Passado um bocado saí e trouxe o meu velho chapéu... o chapéu que tenho usado em todos os westerns... já velho quando o arranjei. E... pu-lo. Olhou para ele durante algum tempo e disse, 'Tem Aprovação-de-Chapéu'" Stewart riu-se. "No filme seguinte, disse-me, 'Ainda tem Aprovação-de-Chapéu', e nesse nem me deixou sequer usar chapéu!"
Stewart saiu por momentos da sala e voltou com um copo de água. "Fui muito cuidadoso com o que fazia em The Man Who Shot Liberty Valance", disse ele. "Além disso, estava sempre a embirrar com Duke Wayne. E estávamos a duas semanas do final das filmagens e nem um murmúrio... E um dia, estávamos a filmar a cena do funeral... o caixão ali e Wood Strode", explicou ele, referindo-se ao actor negro que entrou em vários filmes de Ford. "E Woody estava com a maquilhagem de velho e trazia um fato-macaco e um chapéu. Ford aproximou-se de mim e acenou com a cabeça para Woody. 'O que é que acha do fato de Woody?'" Stewart fez uma pausa. "Esperei e depois disse, 'Bem é um bocado Tio Remus, não é?' Ora... ora porque é que... porque é que eu... quem me dera poder retirar aquelas palavras e só... só..." Stewart tinha a mão por baixo do queixo e fez com os dedos os gestos de estar a engolir as palavras até ter os dedos na boca. "Ele limitou-se a olhar para mim... só olhou e soube o que era... soube... Ele diz, 'E o que é que tem de mal o Tio Remus?' Eu disse, 'Porquê? Nada.' Ele diz, 'Eu inventei aquele fato. É exactamente o que eu queria!' 'Ouça, Patrão', disse eu... Ele diz, 'Woody, Duke, toda a gente, venham todos cá.' E vieram todos. 'Olhem para Woody', diz ele. 'Olhem para o fato dele', diz ele. 'Parece o Tio Remus, não é?' 'Sim, Patrão, sim, Chefe, sim, senhor', diziam eles como um bando de papagaios. 'Um dos actores', continua ele, 'um dos actores parece que tem objecções! Aqui um dos actores parece que não gosta do Tio Remus! De facto, nem tenho mesmo a certeza que ele goste de Negros!'" Stewart recostou-se na cadeira. "Mais tarde alguém me disse, 'Pensavas que te conseguias safar, não pensavas?'"
Monument Valley fica dentro da Reserva dos Índios Navajos, escarranchado na fronteira Arizona-Utah. Os montes e mesas vermelhos lembrando catedrais que formam a paisagem foram criados pela erosão e os seus nomes correspondem às formas que têm: The Mittens, The Big Hogan, Three Sisters; as sombras modificam-lhes a aparência a cada minuto. Há na região uma ausência de tempo que a torna uma maravilha natural tão notável como o Grand Canyon, mas muito mais dramática. John Ford fez lá vários filmes, o mais recente dos quais é Cheyenne Autumn que conta a história da fuga heróica de trezentos Cheyennes, homens, mulheres e crianças de uma reserva em Oklahoma (onde, por inanição, os esperava a morte pela fome e pela doença) para a sua região nativa no Yellowstone, a umas mil e quinhentas milhas de distância. Perseguidos durante todo o caminho pela Cavalaria só oito conseguem sobreviver para verem a terra natal.
No filme entravam duas gerações de actores de Ford. Dos veteranos, para além de Danny Borzage, estavam George O'Brien, a estrela do cinema mudo cujo primeiro papel principal foi num western de Ford, em 1924, The Iron Horse. O filho de John Wayne, Patrick, estava na escala de serviço pela sétima vez, apesar do pai, que entrara em mais de dezassete filmes do realizador, não estar. Podemos ver Pat com dez anos em em Rio Grande, com treze em The Quiet Man, com dezassete em The Searchers, e com vinte e quatro em Cheyenne Autumn. Harry ("Dobe") Carey, Jr. começou com Three Godfathers de Ford (1948), um filme que era dedicado à memória do seu pai já falecido, Harry Carey, que actuara em mais de vinte e cinco filmes de Ford, começando em 1917 com Cheyenne's Pal; Dobe entrara em outros oito, incluindo um retrato do jovem Dwight Eisenhower em The Long Gray Line. Ben Johnson, um campeão com o laço e uma estrela de rodeo, foi um duplo do realizador antes de ter feito papéis principais em seis filmes. Jimmy O'Hara, cuja irmã Maureen fez quatro filmes com Ford desde o primeiro, How Green Was My Valley, estivera em três. Para Dolores del Rio, Ricard Widmark, Carroll Baker e Mike Mazurki, Cheyenne Autumn marca apenas uma segunda volta com o realizador. É o primeiro filme para Victor Jory ("Sempre tentei trabalhar com ele na Fox durante os Anos Trinta. Ele diz que não tentei, mas tentei"), Ricardo Montalban, Sal Mineo e Gilbert Roland. ("Ele conhece-me desde os primeiros tempos, quando eu era um figurante e usava o meu nome verdadeiro, Luis Antonio Alonso. Ainda me chama Luis").
Todos os actores de Ford têm a sua história favorita - John Ford e a maior parte deles têm várias. Ao fim de dezoito dias num plateau de Ford, as histórias tornam-se quase lendárias, mas o artista veterano de Ford insiste sempre que são todas verdadeiras. Diz-se por exemplo, que Ford nunca vê as rushes, coisa que nem o realizador mais experiente arriscaria. E que também nunca olha para o guião. A única vez que olha, dirá alguém, é quando vai mudar o diálogo.
Entrando no plateau num dia lúgubre e nublado em que ninguém pensava que haveria filmagens, Ford disse-lhes para prepararem tudo para a cena do funeral. Olharam uns para os outros: não havia nenhuma cena de funeral no guião. 'Que cena de funeral?', perguntaram. 'A cena do funeral', gritou Ford, 'a cena do funeral!' Perante o dia que estava, tinha decidido que o ideal era uma cena desse tipo e por isso incluiu-a no filme (Wee Willie Winkie).
E houve aquela altura em que ele e Henry Fonda (que participou em sete filmes de Ford) se envolveram em acesas discussões durante a filmagem de Mister Roberts, até que foi necessário aclarar as coisas e os produtores convocaram uma conferência para eliminar as divergências. E quando Fonda se levantou para expressar as suas queixas, Ford ergueu-se subitamente da cadeira e deu-lhe um murro no queixo.
Mas o gesto mais conhecido de Ford diz-se ter acontecido quando o director do estúdio mandou um homem dizer a Ford que estava atrasado dois dias em relação ao plano. Ford perguntou ao homem quantas páginas lhe parecia que eles filmavam diariamente. Cerca de cinco páginas por dia, estimou o homem, e então Ford pediu o guião. Folheou-o, contou dez páginas, rasgou-as, atirou-as ao ar e disse ao homem para dizer ao patrão que agora já estavam dentro do plano. E de facto nunca filmou essas dez páginas.
Mas qualquer outro companheiro habitual dele dirá, aquela vez que... E, é claro, as histórias nunca acabam.
O jantar do realizador, dos actores e da equipa foi servido num pequeno edifício de adobe, parte de Goulding's Lodge, que fica na aba mais baixa de Rock Door Mesa, abrangendo uma magnífica vista de Monument Valley. Presa ao alpendre da entrada há uma sineta que nunca soa antes de John Ford se ter sentado à cabeceira da terceira mesa a contar da porta.
Trazia um casaco azul da marinha, calças de caqui e parte superior do pijama, o colarinho aberto, uma camisola deformada. Não trazia chapéu e o cabelo era branco e fino. Ao sentar-se tirou do bolso a sua navalha de cabo de osso e cravou-a a seu lado. Pouco depois de todos terem chegado e de a comida estar a ser servida, o co-produtor disse qualquer coisa sobre as filmagens do dia. "Pat Wayne!" chamou Ford.
"Sir!" disse Wayne.
"Onde está a escudela?" Wayne levantou-se e foi buscar uma pequena escudela de madeira (cheia de várias notas de dólar e algumas moedas) que estava em cima do piano. "Quando é que ele já deve?", perguntou Ford.
"Com esta faz dois dólares, sir", disse Wayne.
Carroll Baker virou-se para mim. "Há-que pagar uma multa quando se fala de negócios ou dos filmes de Mr. Ford à mesa." Cortou um naco de carne. "Um dia destes", disse ela calmamente, "ele estava a contar-me qualquer coisa acerca de The Long Voyage Home, parou, pagou os cinquenta cêntimos e depois acabou a história."
O resto do jantar passou-se a jogar às perguntas. Ford começou com uma coisa que era animal e vegetal. Ninguém conseguiu descobrir e por fim, com desgosto, informou os jogadores que era, evidentemente, o chinelo marroquino de Sherlock Holmes, o que ele usava como bolsa de tabaco. "Deve ser um dos adereços mais famosos da literatura", resmungou. "Parece que ninguém, incluindo Jory, leu Sherlock Holmes."
Acabada a refeição, o realizador ficou um pouco mais, fumando um charuto que cortara a meio com o canivete e conversando com os actores. Depois saiu e fez sinal ao filho. "Vou telefonar à Mãe", disse. Os dois Ford foram-se embora juntos.
"Lá vem ele, Danny!", gritou alguém, e precisamente nessa altura, apareceu no cimo da estrada, uma carrinha station branca. Borzage levantou-se e dirigiu-se rapidamente para a berma da estrada. Quando a carrinha se começou a aproximar, começou a tocar "Bringing in the Sheaves" fazendo as notas crescer e cair dramaticamente. O carro parou lentamente a uma distância de nove metros do sítio onde Borzage estava a tocar. O silêncio caíra sobre a companhia.
John Ford estava sentado à frente, espreitando pela janela através de uns óculos de lentes grossas, o olho esquerdo coberto por uma pala prata. Trazia um velho chapéu de feltro de abas largas inclinado sobre o lado esquerdo da cara; na fita de cabedal do chapéu estava espetada uma pena cor-de-laranja. Chupava um pequeno charuto apagado. Borzage tocava "My Darling Clementine."
O aderecista aproximou-se e entregou-lhe uma chávena de café. O director de fotografia e o homem do guarda-roupa tinham saído do carro e estavam de pé junto da janela de Ford. O realizador beberricava o café olhando calmamente em redor. O filho, Patrick Ford, que dirigia a cavalaria, tinha-se juntado ao grupo da janela do carro, juntamente com Wingate Smith, cunhado de Ford e primeiro assistente de realização. Borzage tocava "She Wore a Yellow Ribbon" enquanto se desenrolava uma conversa em surdina junto da janela. Pouco depois o pequeno grupo separou-se, um a um, cumprindo instrucções. Alguém abriu a porta e o realizador saiu do carro. Ford ficou parado por uns momentos observando a cena, uma mão a segurar a chávena e a outra na parte de trás da anca. Era magro, uma figura quase frágil, mas quando se dirigia para a câmara o andar era desenvolto, balançando os braços, o corpo oscilando levemente de um lado para o outro. Borzage olhou para cima e sorriu-lhe envergonhadamente, dando alguns passos atrás.
Ford vestia um casaco desportivo castanho desbotado e umas calças largas de caqui. As pessoas afastavam-se do caminho quando ele se aproximava. Borzage tocava "We Shall Gather At the River." O realizador tinha uma cara dura de ianque, quase má, pequenos tufos de barba branca hirsuta nas faces chupadas. Os olhos eram de um azul pálido. Tinha um lenço cor-de-laranja atado ao pescoço e os atacadores dos sapatos de ténis azuis escuros estavam desapertados. Passou por um Navajo e fez com a mão direita um gesto meio aceno, meio saudação. "Yat'hey, Shi'kis", disse ele e o homem respondeu, "Yat'hei."
Recentemente, em Nova Iorque, James Stewart entregava-se a reminiscências sobre John Ford, tendo acabado de aparecer no papel de Wyatt Earp no último filme do realizador, Cheyenne Autumn.
"Gosto imenso dele. Isso... isso é a primeira coisa", começou ele. "E isso está, claro, misturado com respeito e... e..." Franziu os lábios e abanou a cabeça duas vezes. "Admiração." Stewart inclinou-se para a frente na cadeira. "Ele é... é um génio. A forma como trata um argumento. Fá-lo visualmente. Odeia conversa. Só gostava que houvesse mais gente como ele." Stewart franziu os lábios e abanou a cabeça. "Andam sempre a falar do grupo habitual de Ford, sabe... eu acho que é um raio de uma boa ideia! Gostava que todos fizessem o mesmo. As pessoas sabem trabalhar em conjunto. Não têm de... cada filme não tem de ser a primeira vez. E uma com uma data de realizadores... sabe... é uma pançada de riso no plateau e a gente diverte-se e... e depois vemos o filme e dizemos, 'Onde é que está?... Onde é que está o...' Mas Ford põe isso no écran. E é um verdadeiro chefe. Acho que é o melhor de todos." Abanou a cabeça com veemência.
"Subi ao escritório dele para falarmos do guarda-roupa", continuou Stewart. "Para o primeiro filme que fizemos, Two Rode Together. E, claro, ele não falou de vestuário nenhum!" O actor resmungou imitando Ford. "Falou da Marinha... e da guerra... depois um pouco da... Marinha e um pouco da... guerra... e da Marinha. E eu só conseguia ouvir uma palavra em cada dez. Eu já não ouço muito bem e ele resmungava e... aquele lenço em que está sempre a chupar... eu só abanava a cabeça." Stewart abriu e fechou levemente a boca como se estivesse a comer. "Depois, acabou por me perguntar o que é que eu achava que devia usar no filme." Fez uma pausa. "Pensei... e ele disse, 'Ora antes que diga alguma coisa, vou-lhe dizer o que vai usar!' E mandou sair o homem do guarda-roupa, voltou com um fato e aquele... aquele chapéu! Bem, a aba do chapéu era... tão grande como isto!" Indicou o tampo da mesa a que estávamos sentados. "Bem, pu-lo e... eu parecia... era uma coisa horrível. E ele perguntou-me o que e que eu achava!" Stewart limitou-se a olhar para o espelho. "'Bem, não sei'... Ele diz, 'Tem cláusula de Aprovação-de-Chapéu no seu contrato?' Eu disse, 'Não sei.' Então ele disse, 'Tragam o contrato'... E toda a gente foi procurar o contrato e não o encontraram porque eu não tinha nenhum!" Fez uma pausa. "Passado um bocado saí e trouxe o meu velho chapéu... o chapéu que tenho usado em todos os westerns... já velho quando o arranjei. E... pu-lo. Olhou para ele durante algum tempo e disse, 'Tem Aprovação-de-Chapéu'" Stewart riu-se. "No filme seguinte, disse-me, 'Ainda tem Aprovação-de-Chapéu', e nesse nem me deixou sequer usar chapéu!"
Stewart saiu por momentos da sala e voltou com um copo de água. "Fui muito cuidadoso com o que fazia em The Man Who Shot Liberty Valance", disse ele. "Além disso, estava sempre a embirrar com Duke Wayne. E estávamos a duas semanas do final das filmagens e nem um murmúrio... E um dia, estávamos a filmar a cena do funeral... o caixão ali e Wood Strode", explicou ele, referindo-se ao actor negro que entrou em vários filmes de Ford. "E Woody estava com a maquilhagem de velho e trazia um fato-macaco e um chapéu. Ford aproximou-se de mim e acenou com a cabeça para Woody. 'O que é que acha do fato de Woody?'" Stewart fez uma pausa. "Esperei e depois disse, 'Bem é um bocado Tio Remus, não é?' Ora... ora porque é que... porque é que eu... quem me dera poder retirar aquelas palavras e só... só..." Stewart tinha a mão por baixo do queixo e fez com os dedos os gestos de estar a engolir as palavras até ter os dedos na boca. "Ele limitou-se a olhar para mim... só olhou e soube o que era... soube... Ele diz, 'E o que é que tem de mal o Tio Remus?' Eu disse, 'Porquê? Nada.' Ele diz, 'Eu inventei aquele fato. É exactamente o que eu queria!' 'Ouça, Patrão', disse eu... Ele diz, 'Woody, Duke, toda a gente, venham todos cá.' E vieram todos. 'Olhem para Woody', diz ele. 'Olhem para o fato dele', diz ele. 'Parece o Tio Remus, não é?' 'Sim, Patrão, sim, Chefe, sim, senhor', diziam eles como um bando de papagaios. 'Um dos actores', continua ele, 'um dos actores parece que tem objecções! Aqui um dos actores parece que não gosta do Tio Remus! De facto, nem tenho mesmo a certeza que ele goste de Negros!'" Stewart recostou-se na cadeira. "Mais tarde alguém me disse, 'Pensavas que te conseguias safar, não pensavas?'"
***
Monument Valley fica dentro da Reserva dos Índios Navajos, escarranchado na fronteira Arizona-Utah. Os montes e mesas vermelhos lembrando catedrais que formam a paisagem foram criados pela erosão e os seus nomes correspondem às formas que têm: The Mittens, The Big Hogan, Three Sisters; as sombras modificam-lhes a aparência a cada minuto. Há na região uma ausência de tempo que a torna uma maravilha natural tão notável como o Grand Canyon, mas muito mais dramática. John Ford fez lá vários filmes, o mais recente dos quais é Cheyenne Autumn que conta a história da fuga heróica de trezentos Cheyennes, homens, mulheres e crianças de uma reserva em Oklahoma (onde, por inanição, os esperava a morte pela fome e pela doença) para a sua região nativa no Yellowstone, a umas mil e quinhentas milhas de distância. Perseguidos durante todo o caminho pela Cavalaria só oito conseguem sobreviver para verem a terra natal.
No filme entravam duas gerações de actores de Ford. Dos veteranos, para além de Danny Borzage, estavam George O'Brien, a estrela do cinema mudo cujo primeiro papel principal foi num western de Ford, em 1924, The Iron Horse. O filho de John Wayne, Patrick, estava na escala de serviço pela sétima vez, apesar do pai, que entrara em mais de dezassete filmes do realizador, não estar. Podemos ver Pat com dez anos em em Rio Grande, com treze em The Quiet Man, com dezassete em The Searchers, e com vinte e quatro em Cheyenne Autumn. Harry ("Dobe") Carey, Jr. começou com Three Godfathers de Ford (1948), um filme que era dedicado à memória do seu pai já falecido, Harry Carey, que actuara em mais de vinte e cinco filmes de Ford, começando em 1917 com Cheyenne's Pal; Dobe entrara em outros oito, incluindo um retrato do jovem Dwight Eisenhower em The Long Gray Line. Ben Johnson, um campeão com o laço e uma estrela de rodeo, foi um duplo do realizador antes de ter feito papéis principais em seis filmes. Jimmy O'Hara, cuja irmã Maureen fez quatro filmes com Ford desde o primeiro, How Green Was My Valley, estivera em três. Para Dolores del Rio, Ricard Widmark, Carroll Baker e Mike Mazurki, Cheyenne Autumn marca apenas uma segunda volta com o realizador. É o primeiro filme para Victor Jory ("Sempre tentei trabalhar com ele na Fox durante os Anos Trinta. Ele diz que não tentei, mas tentei"), Ricardo Montalban, Sal Mineo e Gilbert Roland. ("Ele conhece-me desde os primeiros tempos, quando eu era um figurante e usava o meu nome verdadeiro, Luis Antonio Alonso. Ainda me chama Luis").
Todos os actores de Ford têm a sua história favorita - John Ford e a maior parte deles têm várias. Ao fim de dezoito dias num plateau de Ford, as histórias tornam-se quase lendárias, mas o artista veterano de Ford insiste sempre que são todas verdadeiras. Diz-se por exemplo, que Ford nunca vê as rushes, coisa que nem o realizador mais experiente arriscaria. E que também nunca olha para o guião. A única vez que olha, dirá alguém, é quando vai mudar o diálogo.
Entrando no plateau num dia lúgubre e nublado em que ninguém pensava que haveria filmagens, Ford disse-lhes para prepararem tudo para a cena do funeral. Olharam uns para os outros: não havia nenhuma cena de funeral no guião. 'Que cena de funeral?', perguntaram. 'A cena do funeral', gritou Ford, 'a cena do funeral!' Perante o dia que estava, tinha decidido que o ideal era uma cena desse tipo e por isso incluiu-a no filme (Wee Willie Winkie).
E houve aquela altura em que ele e Henry Fonda (que participou em sete filmes de Ford) se envolveram em acesas discussões durante a filmagem de Mister Roberts, até que foi necessário aclarar as coisas e os produtores convocaram uma conferência para eliminar as divergências. E quando Fonda se levantou para expressar as suas queixas, Ford ergueu-se subitamente da cadeira e deu-lhe um murro no queixo.
Mas o gesto mais conhecido de Ford diz-se ter acontecido quando o director do estúdio mandou um homem dizer a Ford que estava atrasado dois dias em relação ao plano. Ford perguntou ao homem quantas páginas lhe parecia que eles filmavam diariamente. Cerca de cinco páginas por dia, estimou o homem, e então Ford pediu o guião. Folheou-o, contou dez páginas, rasgou-as, atirou-as ao ar e disse ao homem para dizer ao patrão que agora já estavam dentro do plano. E de facto nunca filmou essas dez páginas.
Mas qualquer outro companheiro habitual dele dirá, aquela vez que... E, é claro, as histórias nunca acabam.
***
O jantar do realizador, dos actores e da equipa foi servido num pequeno edifício de adobe, parte de Goulding's Lodge, que fica na aba mais baixa de Rock Door Mesa, abrangendo uma magnífica vista de Monument Valley. Presa ao alpendre da entrada há uma sineta que nunca soa antes de John Ford se ter sentado à cabeceira da terceira mesa a contar da porta.
Trazia um casaco azul da marinha, calças de caqui e parte superior do pijama, o colarinho aberto, uma camisola deformada. Não trazia chapéu e o cabelo era branco e fino. Ao sentar-se tirou do bolso a sua navalha de cabo de osso e cravou-a a seu lado. Pouco depois de todos terem chegado e de a comida estar a ser servida, o co-produtor disse qualquer coisa sobre as filmagens do dia. "Pat Wayne!" chamou Ford.
"Sir!" disse Wayne.
"Onde está a escudela?" Wayne levantou-se e foi buscar uma pequena escudela de madeira (cheia de várias notas de dólar e algumas moedas) que estava em cima do piano. "Quando é que ele já deve?", perguntou Ford.
"Com esta faz dois dólares, sir", disse Wayne.
Carroll Baker virou-se para mim. "Há-que pagar uma multa quando se fala de negócios ou dos filmes de Mr. Ford à mesa." Cortou um naco de carne. "Um dia destes", disse ela calmamente, "ele estava a contar-me qualquer coisa acerca de The Long Voyage Home, parou, pagou os cinquenta cêntimos e depois acabou a história."
O resto do jantar passou-se a jogar às perguntas. Ford começou com uma coisa que era animal e vegetal. Ninguém conseguiu descobrir e por fim, com desgosto, informou os jogadores que era, evidentemente, o chinelo marroquino de Sherlock Holmes, o que ele usava como bolsa de tabaco. "Deve ser um dos adereços mais famosos da literatura", resmungou. "Parece que ninguém, incluindo Jory, leu Sherlock Holmes."
Acabada a refeição, o realizador ficou um pouco mais, fumando um charuto que cortara a meio com o canivete e conversando com os actores. Depois saiu e fez sinal ao filho. "Vou telefonar à Mãe", disse. Os dois Ford foram-se embora juntos.
***
A trinta quilómetros corre o rio San Juan. Dos lados erguem-se altos penhascos vermelhos e ao fundo das margens há ervas, árvorezinhas e bocados de troncos prateados arrastados pela corrente. A água é da cor do barro.
Quando "Bringing in the Sheaves" saudou a chegada do realizador, homens e mulheres Navajo (representando o papel de Cheyenne) a cavalo e arrastando travois estavam reunidos na borda do rio. Entre eles havia vários duplos vestidos e maquilhados de índios. Na escarpa, a várias centenas de metros da borda estava a Cavalaria. Toda a zona fervilhava de actividade. Lee e Frank Bradley (intérpretes de Navajo que trabalharam em onze outros filmes de Ford) gritavam instruções às suas gentes através de megafones.
Ford estava de pé a olhar para o rio e a mascar o seu charuto, que segurava pela parte inferior. "Este rio foi desenhado por Remington", disse, cobrindo a paisagem com o braço. "É o rio do Oeste mais típico que conheço. Clássico." Abanou a cabeça. "Sabe, o produtor perguntou-me, 'Porque quer filmar aqui? O que é que isto tem de tão interessante?' Uma coisa deste género, sabe. E ainda: 'Porque não vai aos Adirondacks? Às Catskills?'" Ford tirou o charuto da boca. "O que você quer dizer é 'Grossinger's!'"
Afastou-se rapidamente e dirigiu-se a um dos vaqueiros. "Carroll pode entrar no rio na carroça?", perguntou.
"Bom, quando eu entrei em..." começou o homem.
"Não me venhas com a história da tua vida!", interrompeu Ford, deitando fora o charuto. "Responde à pergunta."
O homem disse que podia.
Ford concordou com a cabeça. "Óptimo", disse, tirando um grande lenço branco do bolso de trás. Veio alguém que lhe deu um megafone. "Pronto, Lee. Frank. Mandai avançar a vossa gente!", gritou, mascando uma ponta do lenço, que lhe caía sobre o peito como um guardanapo mal posto. "Devagar!" Os intérpretes transmitiram as instruções e os Navajos entraram na água do rio. Ford gritou para Chuck Hayward (duplo), que estava a meio do rio: "Está bom, aguenta-os aí, Chuck! Está perfeito!" Os Navajos estavam espalhados pelo rio, parados. "Vamos lá encher esses espaços vazios e tirar esses travois!" Virando-se para a Cavalaria, Ford deu algumas indicações e tudo ficou pronto, a câmara apontada para as tropas que se viam ao longe.
"OK, estamos a filmar", disse Ford.
"Arranquei", disse o operador de câmara.
"Muito bem. Dick!" A Cavalaria avançou a trote. "Muito bem. Lee! Frank! Eles que andem!" A tribo avançou lentamente pela água. Widmark levantou o braço. "Trooopa. Aaalto!" Pat Wayne repetiu. A Cavalaria parou e Widmark olhou para os índios. Lentamente a câmara fez uma panorâmica a partir das tropas, através das ladeiras rochosas e nuas, lentamente à volta e para baixo em direcção aos Navajosm alguns dos quais tinham alcançado a margem, outros atravessando ainda o rio cinzento, os cavalos aos corcovos. O único ruído era o dos cavalos a relinchar e do movimento de pessoas a andar na água. A câmara fixou-se bastante tempo na cena. "Está perfeito!"
Harry Goulding, o alto e envelhecido homem do Oeste que é proprietário do pavilhão de Monument Valley, estava ali a observar. Abanou a cabeça e disse com um cerrado sotaque do Oeste. "É obra, não é?", disse calmamente. Goulding foi quem trouxe Ford pela primeira vez ao vale, em 1938, quando o realizador procurava um lugar para rodar Stagecoach. "Não sabia se ia entrar para o estúdio ou se ia parar à cadeia", disse com um sorriso tímido. "Os Navajos tinham sido duramente atingidos pela Depressão, meu Deus, se um índio entrasse na nossa loja e pusesse um dólar no balcão, Mrs. Goulding e eu teríamos desmaiado." Abanou a cabeça. "Então fui ao estúdio e mostrei um saco de fotografias a Mr. Ford e três dias depois havia uma data de empregos para os Navajos e uma data de vidas foram salvas." Tirou o chapéu, passou a mão pela cabeça e tornou a pôr o chapéu. "Então surgiu a Hay Lift", continuou Goulding. "Em 1949, imediatamente depois de Mr. Ford ter acabado de rodar She Wore A Yellow Ribbon aqui, tivemos uma tempestade que deixou o vale coberto com cerca de três metros de neve. Aviões militares largaram comida. Graças a isso e aos muitos milhares de dólares que Mr. Ford trouxe, bem, foi evitada mais uma tragédia." Goulding olhou para lá do rio. "E este ano ouvi dizer que os seus amigos iriam ter muito pouco que comer, e cá está ele outra vez."
Ford gritava pelo megafone. "Disse a cinquenta pessoas para porem essa gente daqui para fora!", disse irritadamente. "Vamos lá pô-los a andar daí para fora. Sequem-nos. Dêem-lhes café ou seja lá o que for!" Goulding tornou a virar-se para mim. "Já lhe digo", continuou com simplicidade, "para os Navajos ele é qualquer coisa de sagrado. Sempre que têm de suportar tempos difíceis, bolas, eis que lhes aparece isto." Voltou a tirar o chapéu e a passar a mão pela cabeça. "Foi adoptado pela tribo Navajo", disse, tornando a pôr o chapéu e sorrindo ligeiramente. "Deram-lhe um nome especial, os Navajos", continuou, olhando para Ford. "Natani Nez. É esse o nome dele, e só dele. Natani Nez", repetiu docemente Goulding. "Quer dizer Chefe Alto", disse.
John Ford nasceu Sean Aloysius O'Fearna em Cape Elizabeth, Maine, a 1 de Fevereiro de 1895. Os pais tinham vindo para a América de Galway, Irlanda. Realizou o seu primeiro filme em 1917. (Era um two-reeler chamado The Tornado, sobre um vaqueiro que salva a filha do banqueiro das garras de um bando de foras-da-lei e utiliza o dinheiro da recompensa para mandar vir da Irlanda a mãe. Era também o actor principal). Sendo o único realizador que recebeu seis Prémios da Academia, é também o único que foi citado quatro vezes pelos Críticos de Nova Iorque. Como Comandante na Marinha, fez o primeiro documentário de guerra americano, The Battle of Midway (1942), assim como December 7th (1943), um relato do ataque a Pearl Harbour e das suas consequências; ambos receberam Oscars para os melhores documentários nos anos em que apareceram. Ao longo de quarenta e seis anos Ford fez quase cento e quarenta filmes.
Uma noite estava sentado na sua cama no Quarto 19 de Goulding's Lodge. A desarrumação era total. Havia roupa por todo o lado: no chão, em mesas e cadeiras, mesmo no frigorífico. Havia também pilhas e pilhas de livros sobre todos os assuntos possíveis e imagináveis espalhados pelo quarto e junto da cama. Nesta havia um exemplar de Gods, Graves and Scholars. A mesinha de cabeceira estava coberta de charutos, fósforos, um relógio, comprimidos, copos, um par de navalhas e alguns lápis, folhas de papel, guiões e lenços puídos. Preso à cabeceira da cama estava um candeeiro. O realizador falava de cinema e podia-se perceber um ligeiro mas distinto sotaque do Maine nas suas palavras.
"Adoro fazer filmes, mas não gosto de falar deles", disse, cortando um charuto a meio com o canivete. "Quer dizer, sabe, tem sido uma vida inteira. Mas as pessoas perguntam-me qual é o meu preferido. Respondo sempre que é o próximo." Erguendo o braço, puxou a manga do pijama de seda debotado para baixo. "Sabe, faço um filme e a seguir passo para outro." Abanou a cabeça. "Amo Hollywood. Não me refiro aos altos escalões", disse sarcasticamente. "Refiro-me aos escalões mais baixos, aos carregadores, aos técnicos."
Alguns momentos depois Ford acendeu o meio charuto e falou da dificuldade de encontrar histórias decentes para filmar. "O meu agente", começou, "estava numa conferência sobre direitos num dos estúdios. E mostraram-lhe um livro com um desenho de um freira na capa. Deu um salto", disse Ford gesticulando. "O meu cliente é católico e isso deve interessar-lhe muito", diz. Ford fez uma careta e chupou a ponta do lenço. "Li o livro. Era acerca de uma freira que tinha sido seduzida por um chulo e se apaixona por ele. Fica grávida. Era para fugir com ele e ele diz-lhe para ir ter com ele a uma ponte qualquer na manhã seguinte." Agarrou no lenço e segurou-o perto da boca. "Foi lá ter. Bong! Uma hora. Nada de chulo. Encadeado. Bong, bong. Duas horas. Nada de chulo. Encadeado outra vez. Três horas. Então deita-se ao rio." O realizador tornou a pôr o lenço na boca. "Quando o meu agente veio ter comigo atirei-lhe o livro à cabeça", disse, imitando o gesto. "Jesus. Sabe, é este o género de porcaria que aparece agora." Abanou a cabeça.
"Quanto a isto", disse, apontando para o guião de Cheyenne Autumn que estava na mesa, "há muito que o queria fazer. Sabe. Matei mais índios que Custer, Beecher e Chivington todos juntos." Ergueu o braço e tornou a puxar a manga para baixo. "Os europeus sempre se interessaram pelos índios. Só os vêem a cavalgar ou as suas brutalidades. Quis mostrar o que realmente são. Gosto muito dos índios", disse com emoção. "São... são um povo muito moral. Têm uma literatura própria: não escrita, oral. São muito bondosos. Gostam das suas crianças e dos seus animais. E quis mostrar, uma vez que fosse, o seu ponto de vista." Ford beliscou as bochechas. "É espantoso..." Fez uma pausa. "É espantoso trabalhar com eles, como percebem tudo tão rapidamente apesar da barreira da língua." Esfregou a boca com o lenço.
"Mas sabe, não há nada como um bom argumento. E nunca vi nenhum." Fez uma pausa. "Sim, já vi. Já vi um. Esta coisa de O'Casey que farei a seguir. Baseada nas suas autobiografias. É o primeiro argumento que li que dá para começar logo a filmar." (Era Young Cassidy). Gesticulou. "Bom, sabe como é: uma-imagem-vale-mil-palavras. Argumento são diálogos. Não gosto de tanta conversa. Tento pôr as coisas em termos visuais. Sabe, regressar aos velhos tempos." Agarrou na outra metade do charuto e acendeu-a. "Não gosto de filmar livros ou peças. Prefiro agarrar num conto e alargá-lo em vez de agarrar num romance e condensá-lo." Voltou a beliscar pensativamente as bochechas. "Os produtores não sabem nada de fazer filmes", disse com seriedade. "E é por isso que faço os meus filmes de modo a que só possam ser montados de uma única maneira." Deu uma chupadela no charuto. "Vão para a sala de montagem e dizem, 'Bom, vamos lá meter um grande plano aqui'." Ford fez uma pausa. "Mas não há nenhum. Não o filmei."
O realizador afirmou que sempre desejou fazer uma peça de teatro. "Gosto da forma", disse e pegou num copo com água sediça que estava na mesinha de cabeceira. Tirou um comprimido de uma caixinha. "B quer dizer Bufferin, não é?", disse e engoliu o comprimido. "Uma vez recebi uma carta da gente da Metropolitan Opera", disse sardonicamente. "Era uma prosa floreada e rebuscada; queriam convidar-me para encenar The Girl of the Golden West. Mas é claro que não se esqueciam de me dizer que não teria nada a ver com os cenários, o guarda-roupa, a música, etc..." Ford tirou o charuto da boca, segurando o braço pelo cotovelo. "Respondi-lhes dizendo antes de mais que achava que The Girl of the Golden West era uma ópera piolhosa." Fez uma pausa. "Mas que estava muito interessado em dirigir La Bohème." Voltou a meter o charuto na boca e deu uma chupadela. "Bem, pode calcular, sabe, o que pensaram sobre isso! Este sujo e velho vaqueiro... este velho sarnoso... quer fazer La Bohème! Bom, tenho a certeza que sabia mais sobre a Margem Esquerda que o gerente da Metropolitan", disse fazendo um gesto com a mão. "Responderam-me dizendo que não estavam interessados em que eu dirigisse La Bohème." Deu uma gargalhada.
O realizador aproximou-se da sua cadeira junto da câmara principal, sentou-se e ergueu o megafone. Perguntou se a segunda câmara já estava arranjada. Não houve resposta. "Por amor de Deus, respondam!" Disseram-lhe que ainda não estava pronta. "Muito bem, que se lixe! Vamos filmar só com uma câmara! Acendam os archotes." A câmara arrancou e os cavaleiros, com archotes a arder nas mãos, galoparam para dentro de campo, incendiando a salva de passagem. Os arbustos começaram a arder e o fogo espalhou-se rapidamente enquanto os guerreiros se afastavam dando gritos ferozes. O calor provocado pelo incêndio era intenso e o camião com a câmara afastou-se alguns metros. Ford continuava sentado, de pernas cruzadas. Gritou aos duplos para voltarem a passar pela câmara aos berros. Assim fizeram e Ford levantou-se. "Está perfeito!" Os homens apressaram-se a apagar o fogo. Wingate Smith estava ali perto e alguém comentou que Ford não se tinha afastado do fogo quando toda a gente o tinha feito. "Bom", disse Smith sorrindo, "ele gosta de ser sempre o último."
Pat Ford aproximou-se a cavalo, cachimbo na boca, o chapéu puxado para a frente, e eu perguntei-lhe se era verdade que Cheyenne Autumn seria o adeus do pai ao western. "Não, c'os diabos!", exclamou. "Há-de continuar a fazer westerns mesmo depois de morto", disse com brusquidão. "Ele adora estes vaqueiros, estes índios e este vale." E depois de dizer isto partiu na senda da Cavalaria.
Ford estava de pé a olhar para o rio e a mascar o seu charuto, que segurava pela parte inferior. "Este rio foi desenhado por Remington", disse, cobrindo a paisagem com o braço. "É o rio do Oeste mais típico que conheço. Clássico." Abanou a cabeça. "Sabe, o produtor perguntou-me, 'Porque quer filmar aqui? O que é que isto tem de tão interessante?' Uma coisa deste género, sabe. E ainda: 'Porque não vai aos Adirondacks? Às Catskills?'" Ford tirou o charuto da boca. "O que você quer dizer é 'Grossinger's!'"
Afastou-se rapidamente e dirigiu-se a um dos vaqueiros. "Carroll pode entrar no rio na carroça?", perguntou.
"Bom, quando eu entrei em..." começou o homem.
"Não me venhas com a história da tua vida!", interrompeu Ford, deitando fora o charuto. "Responde à pergunta."
O homem disse que podia.
Ford concordou com a cabeça. "Óptimo", disse, tirando um grande lenço branco do bolso de trás. Veio alguém que lhe deu um megafone. "Pronto, Lee. Frank. Mandai avançar a vossa gente!", gritou, mascando uma ponta do lenço, que lhe caía sobre o peito como um guardanapo mal posto. "Devagar!" Os intérpretes transmitiram as instruções e os Navajos entraram na água do rio. Ford gritou para Chuck Hayward (duplo), que estava a meio do rio: "Está bom, aguenta-os aí, Chuck! Está perfeito!" Os Navajos estavam espalhados pelo rio, parados. "Vamos lá encher esses espaços vazios e tirar esses travois!" Virando-se para a Cavalaria, Ford deu algumas indicações e tudo ficou pronto, a câmara apontada para as tropas que se viam ao longe.
"OK, estamos a filmar", disse Ford.
"Arranquei", disse o operador de câmara.
"Muito bem. Dick!" A Cavalaria avançou a trote. "Muito bem. Lee! Frank! Eles que andem!" A tribo avançou lentamente pela água. Widmark levantou o braço. "Trooopa. Aaalto!" Pat Wayne repetiu. A Cavalaria parou e Widmark olhou para os índios. Lentamente a câmara fez uma panorâmica a partir das tropas, através das ladeiras rochosas e nuas, lentamente à volta e para baixo em direcção aos Navajosm alguns dos quais tinham alcançado a margem, outros atravessando ainda o rio cinzento, os cavalos aos corcovos. O único ruído era o dos cavalos a relinchar e do movimento de pessoas a andar na água. A câmara fixou-se bastante tempo na cena. "Está perfeito!"
Harry Goulding, o alto e envelhecido homem do Oeste que é proprietário do pavilhão de Monument Valley, estava ali a observar. Abanou a cabeça e disse com um cerrado sotaque do Oeste. "É obra, não é?", disse calmamente. Goulding foi quem trouxe Ford pela primeira vez ao vale, em 1938, quando o realizador procurava um lugar para rodar Stagecoach. "Não sabia se ia entrar para o estúdio ou se ia parar à cadeia", disse com um sorriso tímido. "Os Navajos tinham sido duramente atingidos pela Depressão, meu Deus, se um índio entrasse na nossa loja e pusesse um dólar no balcão, Mrs. Goulding e eu teríamos desmaiado." Abanou a cabeça. "Então fui ao estúdio e mostrei um saco de fotografias a Mr. Ford e três dias depois havia uma data de empregos para os Navajos e uma data de vidas foram salvas." Tirou o chapéu, passou a mão pela cabeça e tornou a pôr o chapéu. "Então surgiu a Hay Lift", continuou Goulding. "Em 1949, imediatamente depois de Mr. Ford ter acabado de rodar She Wore A Yellow Ribbon aqui, tivemos uma tempestade que deixou o vale coberto com cerca de três metros de neve. Aviões militares largaram comida. Graças a isso e aos muitos milhares de dólares que Mr. Ford trouxe, bem, foi evitada mais uma tragédia." Goulding olhou para lá do rio. "E este ano ouvi dizer que os seus amigos iriam ter muito pouco que comer, e cá está ele outra vez."
Ford gritava pelo megafone. "Disse a cinquenta pessoas para porem essa gente daqui para fora!", disse irritadamente. "Vamos lá pô-los a andar daí para fora. Sequem-nos. Dêem-lhes café ou seja lá o que for!" Goulding tornou a virar-se para mim. "Já lhe digo", continuou com simplicidade, "para os Navajos ele é qualquer coisa de sagrado. Sempre que têm de suportar tempos difíceis, bolas, eis que lhes aparece isto." Voltou a tirar o chapéu e a passar a mão pela cabeça. "Foi adoptado pela tribo Navajo", disse, tornando a pôr o chapéu e sorrindo ligeiramente. "Deram-lhe um nome especial, os Navajos", continuou, olhando para Ford. "Natani Nez. É esse o nome dele, e só dele. Natani Nez", repetiu docemente Goulding. "Quer dizer Chefe Alto", disse.
John Ford nasceu Sean Aloysius O'Fearna em Cape Elizabeth, Maine, a 1 de Fevereiro de 1895. Os pais tinham vindo para a América de Galway, Irlanda. Realizou o seu primeiro filme em 1917. (Era um two-reeler chamado The Tornado, sobre um vaqueiro que salva a filha do banqueiro das garras de um bando de foras-da-lei e utiliza o dinheiro da recompensa para mandar vir da Irlanda a mãe. Era também o actor principal). Sendo o único realizador que recebeu seis Prémios da Academia, é também o único que foi citado quatro vezes pelos Críticos de Nova Iorque. Como Comandante na Marinha, fez o primeiro documentário de guerra americano, The Battle of Midway (1942), assim como December 7th (1943), um relato do ataque a Pearl Harbour e das suas consequências; ambos receberam Oscars para os melhores documentários nos anos em que apareceram. Ao longo de quarenta e seis anos Ford fez quase cento e quarenta filmes.
Uma noite estava sentado na sua cama no Quarto 19 de Goulding's Lodge. A desarrumação era total. Havia roupa por todo o lado: no chão, em mesas e cadeiras, mesmo no frigorífico. Havia também pilhas e pilhas de livros sobre todos os assuntos possíveis e imagináveis espalhados pelo quarto e junto da cama. Nesta havia um exemplar de Gods, Graves and Scholars. A mesinha de cabeceira estava coberta de charutos, fósforos, um relógio, comprimidos, copos, um par de navalhas e alguns lápis, folhas de papel, guiões e lenços puídos. Preso à cabeceira da cama estava um candeeiro. O realizador falava de cinema e podia-se perceber um ligeiro mas distinto sotaque do Maine nas suas palavras.
"Adoro fazer filmes, mas não gosto de falar deles", disse, cortando um charuto a meio com o canivete. "Quer dizer, sabe, tem sido uma vida inteira. Mas as pessoas perguntam-me qual é o meu preferido. Respondo sempre que é o próximo." Erguendo o braço, puxou a manga do pijama de seda debotado para baixo. "Sabe, faço um filme e a seguir passo para outro." Abanou a cabeça. "Amo Hollywood. Não me refiro aos altos escalões", disse sarcasticamente. "Refiro-me aos escalões mais baixos, aos carregadores, aos técnicos."
Alguns momentos depois Ford acendeu o meio charuto e falou da dificuldade de encontrar histórias decentes para filmar. "O meu agente", começou, "estava numa conferência sobre direitos num dos estúdios. E mostraram-lhe um livro com um desenho de um freira na capa. Deu um salto", disse Ford gesticulando. "O meu cliente é católico e isso deve interessar-lhe muito", diz. Ford fez uma careta e chupou a ponta do lenço. "Li o livro. Era acerca de uma freira que tinha sido seduzida por um chulo e se apaixona por ele. Fica grávida. Era para fugir com ele e ele diz-lhe para ir ter com ele a uma ponte qualquer na manhã seguinte." Agarrou no lenço e segurou-o perto da boca. "Foi lá ter. Bong! Uma hora. Nada de chulo. Encadeado. Bong, bong. Duas horas. Nada de chulo. Encadeado outra vez. Três horas. Então deita-se ao rio." O realizador tornou a pôr o lenço na boca. "Quando o meu agente veio ter comigo atirei-lhe o livro à cabeça", disse, imitando o gesto. "Jesus. Sabe, é este o género de porcaria que aparece agora." Abanou a cabeça.
"Quanto a isto", disse, apontando para o guião de Cheyenne Autumn que estava na mesa, "há muito que o queria fazer. Sabe. Matei mais índios que Custer, Beecher e Chivington todos juntos." Ergueu o braço e tornou a puxar a manga para baixo. "Os europeus sempre se interessaram pelos índios. Só os vêem a cavalgar ou as suas brutalidades. Quis mostrar o que realmente são. Gosto muito dos índios", disse com emoção. "São... são um povo muito moral. Têm uma literatura própria: não escrita, oral. São muito bondosos. Gostam das suas crianças e dos seus animais. E quis mostrar, uma vez que fosse, o seu ponto de vista." Ford beliscou as bochechas. "É espantoso..." Fez uma pausa. "É espantoso trabalhar com eles, como percebem tudo tão rapidamente apesar da barreira da língua." Esfregou a boca com o lenço.
"Mas sabe, não há nada como um bom argumento. E nunca vi nenhum." Fez uma pausa. "Sim, já vi. Já vi um. Esta coisa de O'Casey que farei a seguir. Baseada nas suas autobiografias. É o primeiro argumento que li que dá para começar logo a filmar." (Era Young Cassidy). Gesticulou. "Bom, sabe como é: uma-imagem-vale-mil-palavras. Argumento são diálogos. Não gosto de tanta conversa. Tento pôr as coisas em termos visuais. Sabe, regressar aos velhos tempos." Agarrou na outra metade do charuto e acendeu-a. "Não gosto de filmar livros ou peças. Prefiro agarrar num conto e alargá-lo em vez de agarrar num romance e condensá-lo." Voltou a beliscar pensativamente as bochechas. "Os produtores não sabem nada de fazer filmes", disse com seriedade. "E é por isso que faço os meus filmes de modo a que só possam ser montados de uma única maneira." Deu uma chupadela no charuto. "Vão para a sala de montagem e dizem, 'Bom, vamos lá meter um grande plano aqui'." Ford fez uma pausa. "Mas não há nenhum. Não o filmei."
O realizador afirmou que sempre desejou fazer uma peça de teatro. "Gosto da forma", disse e pegou num copo com água sediça que estava na mesinha de cabeceira. Tirou um comprimido de uma caixinha. "B quer dizer Bufferin, não é?", disse e engoliu o comprimido. "Uma vez recebi uma carta da gente da Metropolitan Opera", disse sardonicamente. "Era uma prosa floreada e rebuscada; queriam convidar-me para encenar The Girl of the Golden West. Mas é claro que não se esqueciam de me dizer que não teria nada a ver com os cenários, o guarda-roupa, a música, etc..." Ford tirou o charuto da boca, segurando o braço pelo cotovelo. "Respondi-lhes dizendo antes de mais que achava que The Girl of the Golden West era uma ópera piolhosa." Fez uma pausa. "Mas que estava muito interessado em dirigir La Bohème." Voltou a meter o charuto na boca e deu uma chupadela. "Bem, pode calcular, sabe, o que pensaram sobre isso! Este sujo e velho vaqueiro... este velho sarnoso... quer fazer La Bohème! Bom, tenho a certeza que sabia mais sobre a Margem Esquerda que o gerente da Metropolitan", disse fazendo um gesto com a mão. "Responderam-me dizendo que não estavam interessados em que eu dirigisse La Bohème." Deu uma gargalhada.
***
O local de filmagem era uma faixa de terreno arenoso entalada entre duas paredes a pique de rocha vermelha - um estreito canyon numa das pontas - e o realizador, depois de ter sido acompanhado até lá pela música de Danny Borzage, subiu a colina arenosa. Muita gente, em fila indiana, seguia-o. No local de filmagens estavam também dois homens da Life, um fotógrafo e um jornalista.
Um grupo de guerreiros Cheyenne deveria descer a colina, carregando sobre a Cavalaria; a câmara estaria no fundo da colina. Vários duplos estavam vestidos de índios, encarregando-se Ford de os orientar. Depois de ter dado algumas instruções a Chuck Hayward, que iria chefiar a emboscada, pediu uma pena para o chapéu de outro duplo e caminhou lentamente para ao pé de mim. "Se acha que este plano não requer organização..." resmungou ao chegar perto de mim.
Meia-hora depois, Ford sentou-se, cruzou as pernas e agarrou no megafone. A câmara estava apontada para o alto da colina onde não se via ainda nada. "Pronto. Está a filmar", disse.
"Arranquei!", disse o operador.
"Muito bem, Chuck!", gritou Ford pelo megafone. Ao fazê-lo um grupo de cavaleiros começou a galopar pela colina arenosa, gritando e disparando as espingardas. A Cavalaria, no fundo da colina, ripostou e os tiros reverberaram alto no vale. Os cavaleiros desceram rapidamente a colina, levantando uma poeirada, e passaram tão perto da câmara que o megafone de Ford lhe foi arrancado da mão. Não se mexeu. Um índio tinha caído do cavalo e estava estirado no solo a meio da colina. A câmara fez uma panorâmica acompanhando os índios que se perdiam na distância. "Está perfeito."
Várias pessoas desataram a correr para ver se o índio estava ferido, mas este começou a andar cuidadosamente antes que tivessem chegado perto dele. Outro grupo reuniu-se à volta de Ford. Um homem, exibindo o megafone espatifado, abanava a cabeça "Estivemos quase a ir mais cedo para casa hoje", disse.
Ali perto, outro técnico mostrava como os cascos dos cavalos quase tinham espezinhado Ford. "O cavalo não se atreveria", disse o seu companheiro.
O realizador tinha-se erguido da cadeira e voltava-se agora para a companhia. "Amanhã faremos isto com película", anunciou com cara séria. "Hoje foi para a Life!"
Um grupo de guerreiros Cheyenne deveria descer a colina, carregando sobre a Cavalaria; a câmara estaria no fundo da colina. Vários duplos estavam vestidos de índios, encarregando-se Ford de os orientar. Depois de ter dado algumas instruções a Chuck Hayward, que iria chefiar a emboscada, pediu uma pena para o chapéu de outro duplo e caminhou lentamente para ao pé de mim. "Se acha que este plano não requer organização..." resmungou ao chegar perto de mim.
Meia-hora depois, Ford sentou-se, cruzou as pernas e agarrou no megafone. A câmara estava apontada para o alto da colina onde não se via ainda nada. "Pronto. Está a filmar", disse.
"Arranquei!", disse o operador.
"Muito bem, Chuck!", gritou Ford pelo megafone. Ao fazê-lo um grupo de cavaleiros começou a galopar pela colina arenosa, gritando e disparando as espingardas. A Cavalaria, no fundo da colina, ripostou e os tiros reverberaram alto no vale. Os cavaleiros desceram rapidamente a colina, levantando uma poeirada, e passaram tão perto da câmara que o megafone de Ford lhe foi arrancado da mão. Não se mexeu. Um índio tinha caído do cavalo e estava estirado no solo a meio da colina. A câmara fez uma panorâmica acompanhando os índios que se perdiam na distância. "Está perfeito."
Várias pessoas desataram a correr para ver se o índio estava ferido, mas este começou a andar cuidadosamente antes que tivessem chegado perto dele. Outro grupo reuniu-se à volta de Ford. Um homem, exibindo o megafone espatifado, abanava a cabeça "Estivemos quase a ir mais cedo para casa hoje", disse.
Ali perto, outro técnico mostrava como os cascos dos cavalos quase tinham espezinhado Ford. "O cavalo não se atreveria", disse o seu companheiro.
O realizador tinha-se erguido da cadeira e voltava-se agora para a companhia. "Amanhã faremos isto com película", anunciou com cara séria. "Hoje foi para a Life!"
***
Carroll Baker, vestida à professora Quaker, um xaile castanho sobre os ombros, caminhou em direcção à mesa do almoço. "Disse a Mr. Ford que queria usar o cabelo caído neste filme", dizia ela, "como as mulheres nos filmes de Ingmar Bergman. Ele disse, 'Ingrid Bergman?' 'Não', disse eu, 'Ingmar Bergman.' 'Quem é?' Respondi, 'Bergman, sabe, o grande realizador sueco.' Deixou passar a minha afirmação em claro e eu achei que era altura de mudar de assunto", disse Miss Baker. "Mas quando ia a sair, ele disse, 'Oh, Ingmar Bergman! É o tipo que disse que eu era o maior realizador do mundo.' E, é claro, sabe, é mesmo." Riu-se, puxou o xaile para a cabeça, que tinha o cabelo apanhado, e sentou-se à mesa.
Richard Widmark estava sentado na outra ponta, a acabar o seu Jell-O e a mastigar um biscoito. "Nunca me diverti tanto num filme", dizia, "como quando fiz Two Rode Together, quando trabalhei com Jimmy Stewart e o Velho." Fez uma careta. "Sou um pouco surdo deste ouvido", disse, "e Ford é um pouco surdo do outro, e Jimmy ouve mal dos dois!" Widmark pôs a mão em concha junto do ouvido. "Por isso, passámos o filme todo a perguntar: 'O quê? O quê? O quê?'"
De regresso para o almoço, Ford falou do feiticeiro Navajo. "O original era um tipo chamado Fat. O que trabalha agora é um dos seus discípulos." Apontou com a cabeça para Harry Goulding, que conduzia. "Costumava dizer a Harry o que queria e obtinha tudo o que precisava. Nuvens de trovoada... Uma noite disse a Harry, 'Diz-lhe que queremos neve.' No dia seguinte saí do meu quarto e uma fina camada de neve cobria o vale." Um Navajo de cara enrugada e cabelo preso por um pano vermelho aproximou-se pela parte de trás do carro. "Este é o novo feiticeiro", explicou Ford. "Yat'hey", disse para o Navajo. "Yat'hey", respondeu o feiticeiro. "Hako", disse o realizador e o homem aproximou-se a trote. Harry parou o carro. Ford ergueu o braço e apontou para o céu. "Nijone", disse, abanando a cabeça. O homem sorriu. "Ah sheh'eh", disse Ford e ergueu outra vez o braço. "Nijone." O Navajo assentiu com a cabeça e o jipe partiu. "Não há em Navajo nenhuma palavra para nuvens aos flocos e por isso é um pouco difícil. Da primeira vez que as fez ficaram perfeitas." Fez uma pausa. "Mas estavam no sítio errado!"
De regresso para o almoço, Ford falou do feiticeiro Navajo. "O original era um tipo chamado Fat. O que trabalha agora é um dos seus discípulos." Apontou com a cabeça para Harry Goulding, que conduzia. "Costumava dizer a Harry o que queria e obtinha tudo o que precisava. Nuvens de trovoada... Uma noite disse a Harry, 'Diz-lhe que queremos neve.' No dia seguinte saí do meu quarto e uma fina camada de neve cobria o vale." Um Navajo de cara enrugada e cabelo preso por um pano vermelho aproximou-se pela parte de trás do carro. "Este é o novo feiticeiro", explicou Ford. "Yat'hey", disse para o Navajo. "Yat'hey", respondeu o feiticeiro. "Hako", disse o realizador e o homem aproximou-se a trote. Harry parou o carro. Ford ergueu o braço e apontou para o céu. "Nijone", disse, abanando a cabeça. O homem sorriu. "Ah sheh'eh", disse Ford e ergueu outra vez o braço. "Nijone." O Navajo assentiu com a cabeça e o jipe partiu. "Não há em Navajo nenhuma palavra para nuvens aos flocos e por isso é um pouco difícil. Da primeira vez que as fez ficaram perfeitas." Fez uma pausa. "Mas estavam no sítio errado!"
***
A grande maioria das seiscentas pessoas envolvidas na realização do filme de seis milhões e meio de dólares chamado Cheyenne Autumn vivia em trailers e tendas que tinham sido postas como se de uma pequena cidade se tratasse na base de Rock Door Mesa. Era domingo e o quadro preto junto da sala de jantar tinha uma informação a giz: Missa ao Meio-Dia. Um padre tinha percorrido 300 quilómetros para dizer a Missa. Às 11 e 40 os carros começaram a descer do pavilhão. Em primeiro lugar chegou o realizador, seguido por Dolores Del Rio, que era acompanhada por Ricardo Montalban, Mike Mazurki e Gilbert Roland vieram a seguir e depois Pat Wayne. Seguiu-se George O'Brien. Entraram todos e a correr apareceu Jimmy O'Hara uns segundos depois. Ford mandou alguém voltar ao alto da colina para trazer a escudela que estava em cima do piano; o dinheiro nela contido iria para o peditório. Lá dentro, na parte mais afastada da sala, tinha sido improvisado um altar. Gilbert Roland tinha arranjado uma velha cruz espanhola para dar mais dignidade à ocasião; estava pregada numa mesa. Ardiam duas velas. O resto do salão ainda mantinha o aspecto de sala de jantar. Cerca de quarenta pessoas assistiam à Missa. Pat Wayne e Jimmy O'Hara faziam de sacristães. Mike Mazurki encarregou-se do peditório.
***
Do outro lado do canyon onde tinham rodado, Ford mandou colocar alguns dos guerreiros a cavalo, uns à sombra e outros ao sol. Era uma cena de discussão entre Montalban (um chefe) e Sal Mineo (um jovem bravo), que violentamente deita fora a espingarda, monta e parte. Ford estava sozinho, esfregando as mãos. Ouvia-se bastante barulho: "Wingate!" chamou o realizador. "Mas o que é isto? Greve? Motim?"
Smith falou pelo megafone. "Vá, vamos lá a fazer menos barulho, se faz favor!"
Estava calor e Ford tinha tirado o casaco e a camisola; trazia uma camisa branca com os punhos desabotoados. Mascava no lenço. "Bom, alguém tem alguma razão para não fazermos isto?", gritou. "Senão, vamos a isto." Durante o ensaio Ford apanhou um dos jovens Navajos a fazer caretas para a câmara. Chamou-o, mandou-o pôr um joelho em terra e deu-lhe umas palmadas. O Navajo dava risadinhas despropositadas e toda a gente gargalhava. Quando o jovem se afastou, Ford fez um gesto fingindo que lhe ia dar um soco na cara.
A câmara começou a filmar e quando Mineo correu para o cavalo, este espantou-se e ele falhou o primeiro salto. Zangado, agarrou o cavalo e saltou para a garupa, chicoteou-o e partiu, seguido por alguns guerreiros. "Está perfeito", disse Ford. "Mandem imprimir." Mineo regressou e perguntou ao realizador se podia tentar mais uma vez. Ford encarou-o alguns momentos, chupando no lenço. "Queres fazer mais uma vez com a câmara vazia, Saul?" Mineo sorriu e disse que a coisa lhe tinha parecido pouco convincente. "Estavas muito zangado", explicou Ford. "E falhaste. Gostei. Completamente dentro do espírito da personagem. Não quero que pareça premeditado. Como no circo." Mineo desmontou e afastou-se. Ford chamou-o. "Mas podes voltar a tentar com a câmara vazia, Saul." Mineo riu-se e abanou a mão.
À noite, muito depois do jantar, Ford e George O'Brien sentaram-se à conversa. Na outra ponta da sala de jantar estava uma televisão, para grande desgosto de Ford. A recepção era pouco nítida, mas Nancy Hsueh, Carmen D'Antonio (actrizes) e Pat Wayne estavam a ver um filme chamado From here to Eternity. Ford estava a falar da sua infância no Maine, dos pais, que tinham crescido no mesmo condado irlandês mas só se tinham conhecido na América, e de algumas figuras que tinha conhecido na sua juventude.
No écran da televisão Montgomery Clift fazia o toque de silêncio, Ford virou-se, fez um óculo com a mão e olhou com cenho carregado para o televisor. "George", disse voltando-se para a frente, "viste um filme meu chamado Christmas Eve at Pilot Butte?" O'Brien disse que não se lembrava. "Mil novecentos e vinte e um. Com Harry Carey e Irene Rich. Foi o primeiro filme que se fez com fotografia nocturna verdadeira. Era baseado numa história de Courtney Riley Cooper chamada Christmas Eve at Pilot Butte. Gostava de fazer um remake. Uma bela história." (O filme foi exibido com um título diferente: Desperate Trails.)
Ainda se ouvia o toque de silêncio e Ford tornou a virar-se. "Este tipo não sabe tocar a silêncio", murmurou espantado. "Tens razão, Jack", disse O'Brien. Ford virou-se ainda mais e com um ar zangado e pôs-se a ver quem estava a assistir ao filme. "Pat (o filho de Ford) nasceu quando estávamos a fazer esse filme", disse, encarando-nos de novo. "E Dobe (o filho de Carey) também. Com uma semana de diferença." Chupou no charuto.
Do aparelho de televisão veio o som de bombas a serem lançadas, aviões a picar e depois uma notícia de rádio: "Hoje de manhã, aviões da Força Aérea Imperial Japonesa atacaram Pearl Harbour..." Ford virou-se todo na cadeira. "Deus Meu! O que é isto?" O'Brien riu-se. "Oh", disse Ford e lançou um olhar mal-humorado à televisão.
Smith falou pelo megafone. "Vá, vamos lá a fazer menos barulho, se faz favor!"
Estava calor e Ford tinha tirado o casaco e a camisola; trazia uma camisa branca com os punhos desabotoados. Mascava no lenço. "Bom, alguém tem alguma razão para não fazermos isto?", gritou. "Senão, vamos a isto." Durante o ensaio Ford apanhou um dos jovens Navajos a fazer caretas para a câmara. Chamou-o, mandou-o pôr um joelho em terra e deu-lhe umas palmadas. O Navajo dava risadinhas despropositadas e toda a gente gargalhava. Quando o jovem se afastou, Ford fez um gesto fingindo que lhe ia dar um soco na cara.
A câmara começou a filmar e quando Mineo correu para o cavalo, este espantou-se e ele falhou o primeiro salto. Zangado, agarrou o cavalo e saltou para a garupa, chicoteou-o e partiu, seguido por alguns guerreiros. "Está perfeito", disse Ford. "Mandem imprimir." Mineo regressou e perguntou ao realizador se podia tentar mais uma vez. Ford encarou-o alguns momentos, chupando no lenço. "Queres fazer mais uma vez com a câmara vazia, Saul?" Mineo sorriu e disse que a coisa lhe tinha parecido pouco convincente. "Estavas muito zangado", explicou Ford. "E falhaste. Gostei. Completamente dentro do espírito da personagem. Não quero que pareça premeditado. Como no circo." Mineo desmontou e afastou-se. Ford chamou-o. "Mas podes voltar a tentar com a câmara vazia, Saul." Mineo riu-se e abanou a mão.
À noite, muito depois do jantar, Ford e George O'Brien sentaram-se à conversa. Na outra ponta da sala de jantar estava uma televisão, para grande desgosto de Ford. A recepção era pouco nítida, mas Nancy Hsueh, Carmen D'Antonio (actrizes) e Pat Wayne estavam a ver um filme chamado From here to Eternity. Ford estava a falar da sua infância no Maine, dos pais, que tinham crescido no mesmo condado irlandês mas só se tinham conhecido na América, e de algumas figuras que tinha conhecido na sua juventude.
No écran da televisão Montgomery Clift fazia o toque de silêncio, Ford virou-se, fez um óculo com a mão e olhou com cenho carregado para o televisor. "George", disse voltando-se para a frente, "viste um filme meu chamado Christmas Eve at Pilot Butte?" O'Brien disse que não se lembrava. "Mil novecentos e vinte e um. Com Harry Carey e Irene Rich. Foi o primeiro filme que se fez com fotografia nocturna verdadeira. Era baseado numa história de Courtney Riley Cooper chamada Christmas Eve at Pilot Butte. Gostava de fazer um remake. Uma bela história." (O filme foi exibido com um título diferente: Desperate Trails.)
Ainda se ouvia o toque de silêncio e Ford tornou a virar-se. "Este tipo não sabe tocar a silêncio", murmurou espantado. "Tens razão, Jack", disse O'Brien. Ford virou-se ainda mais e com um ar zangado e pôs-se a ver quem estava a assistir ao filme. "Pat (o filho de Ford) nasceu quando estávamos a fazer esse filme", disse, encarando-nos de novo. "E Dobe (o filho de Carey) também. Com uma semana de diferença." Chupou no charuto.
Do aparelho de televisão veio o som de bombas a serem lançadas, aviões a picar e depois uma notícia de rádio: "Hoje de manhã, aviões da Força Aérea Imperial Japonesa atacaram Pearl Harbour..." Ford virou-se todo na cadeira. "Deus Meu! O que é isto?" O'Brien riu-se. "Oh", disse Ford e lançou um olhar mal-humorado à televisão.
***
Uma parte de um leito de lago seco tinha ficado coberta de salva e cardos. Os Cheyennes deveriam pegar-lhe fogo a fim de tentarem impedir o avanço da Cavalaria que lhes ia no encalço. Estava-se num dia ventoso de Outubro e Ford não parecia muito seguro sobre o modo de começar a sequência. Andava de um lado para o outro, preocupado com os perigos potenciais da situação. Por fim, depois de tomadas todas as precauções, decidiu como queria começar. Prepararam-se duas câmaras, a principal num camião de modo a poder ser retirada se o fogo escapasse ao controlo. Os duplos e vários Navajos prepararam-se para o primeiro take.
Ford deu instruções claras: só uma pequena parte do terreno devia ser incendiada agora, e estava a ser pulverizada com uma mistura altamente inflamável. Ford virou-se repentinamente para Chuck Hayward e disse-lhe para começar o plano passando a cavalo em frente da câmara principal, assegurando-se que o seu archote aceso brilhasse directamente nas lentes. Esfregou as mãos, dobrou a aba do chapéu e verificou se o camião da água estava a postos. Os archotes foram acesos. O realizador confirmou as suas instruções e as câmaras começaram a filmar. "Chuck!" Os cavaleiros, com os archotes voltados para baixo, avançaram para a área determinada. A segunda câmara encravou. "Pronto, chega. Apaguem!" Antes que os intérpretes pudessem traduzir, os Navajos incendiaram a salva em dois sítios. "Vamos a isto mesmo assim!", gritou alguém, mas Ford disse calmamente que não. Alguns homens apressaram-se a abafar o fogo antes que se pudesse espalhar. Os archotes foram apagados.
O realizador aproximou-se da sua cadeira junto da câmara principal, sentou-se e ergueu o megafone. Perguntou se a segunda câmara já estava arranjada. Não houve resposta. "Por amor de Deus, respondam!" Disseram-lhe que ainda não estava pronta. "Muito bem, que se lixe! Vamos filmar só com uma câmara! Acendam os archotes." A câmara arrancou e os cavaleiros, com archotes a arder nas mãos, galoparam para dentro de campo, incendiando a salva de passagem. Os arbustos começaram a arder e o fogo espalhou-se rapidamente enquanto os guerreiros se afastavam dando gritos ferozes. O calor provocado pelo incêndio era intenso e o camião com a câmara afastou-se alguns metros. Ford continuava sentado, de pernas cruzadas. Gritou aos duplos para voltarem a passar pela câmara aos berros. Assim fizeram e Ford levantou-se. "Está perfeito!" Os homens apressaram-se a apagar o fogo. Wingate Smith estava ali perto e alguém comentou que Ford não se tinha afastado do fogo quando toda a gente o tinha feito. "Bom", disse Smith sorrindo, "ele gosta de ser sempre o último."
Pat Ford aproximou-se a cavalo, cachimbo na boca, o chapéu puxado para a frente, e eu perguntei-lhe se era verdade que Cheyenne Autumn seria o adeus do pai ao western. "Não, c'os diabos!", exclamou. "Há-de continuar a fazer westerns mesmo depois de morto", disse com brusquidão. "Ele adora estes vaqueiros, estes índios e este vale." E depois de dizer isto partiu na senda da Cavalaria.
***
Sábado à noite, depois do jantar, era costume haver uma festa. Cerca de trinta pessoas estavam reunidas na sala de jantar. Montalban e Miss Baker abriram a festa, dançando ao som de "Put Your Little Foot", que Danny Borzage tocava. Tinham ensaiado, mas apesar disso não se saíram lá muito bem. Quando pararam, Borzage atacou "Tennessee Waltz." John Ford levantou-se subitamente, despiu o casaco, deitou-o para o chão, descalçou os ténis e agarrou em Miss Del Rio. Dançaram sozinhos durante alguns momentos e depois vários outros pares juntaram-se-lhes. Carmen D'Antonio tentou dançar flamenco.
A música mudou e, a uma ordem de Ford, todos os que estavam de pé deram as mãos para "Virginia Reel". O realizador deu o sinal na altura de "Virar!" Depois Miss Baker disse que sabia uma canção, levantou-se e cantou "Come Out And Play With Me", uma canção infantil sobre uma rapariguinha que não pode ir brincar porque a sua boneca está doente. No último verso fingiu estar a soluçar de tristeza. Foi muito aplaudida e regressou feliz ao seu lugar.
Montalban agarrou numa guitarra, sentou-se numa mesa e cantou várias canções espanholas. Ford pediu os tradicionais gritos de aplauso no fim de cada uma. Quando Montalban acabou, Borzage atirou-se a uma polka e o realizador dançou-a com Miss Baker, numa demonstração de graciosidade e exuberância. Carmen D'Antonio tentou dançar flamenco.
Pouco depois Jimmy O'Hara avançou para cantar algumas canções irlandesas a pedido de Ford. A primeira foi "The Young May Moon", e depois "Kevin Barry", uma balada sobre um revolucionário enforcado em 1920.
Just a lad of eighteen summers,
Yet there's no one can deny
As he went to death that mornin'
Proud he held his head on high...
Ford recostou-se na cadeira, a cabeça encostada à parede. Fixava o tecto.
Another martyr for old Ireland,
Another murder for the crown,
Whose brutal laws may kill the Irish,
But can't keep their spirits down...
Quando a canção acabou, Ford não aplaudiu, mas toda a gente o fez.
Subitamente, ouviu-se um cântico vindo do exterior. Alguém veio informar que os Navajos tinham vindo cantar para Ford. O grupo passou-se para o alpendre, à frente do qual seis Navajos, vestidos descuidadamente com Lewis e camisas desportivas mas com lenços coloridos amarrados à cabeça, interpretavam um cântico cerimonial. Moviam-se e cantavam em conjunto ou em contraponto, arrastando os pés ao mesmo tempo. Os cânticos celebravam a época das colheitas e os sons eram atonais e agudos, os movimentos staccato mas graciosos. Interpretaram dois cânticos e no final de cada um Ford comandou os aplausos. Os Navajos foram convidados para a sala de jantar e interpretaram mais dois cânticos. Ford assistia com profunda concentração. Quando terminaram, agradeceu-lhes. "Ah'sheh'eh, shi'kis", disse ao chefe. "A'ha'alani."
Depois de eles terem partido alguém pediu a Jimmy O'Hara para cantar de novo. Ford fez-lhe um sinal de concordância com a mão e disse-lhe, "Canta o Hino Nacional, Jimmy." O'Hara sabia o que ele queria dizer e, acompanhado por Borzage, cantou "The Wearing of the Green", uma canção que é cantada tradicionalmente na Irlanda durante a semana da Páscoa (a melodia é a mesma de The Rising of the Moon). Depois do segundo refrão, Ford contribuiu com um verso:
Oh, Paddy dear an' did you hear
The news that's goin' 'round?
The Shamrock is by law forbid
To grow on Irish ground.
St. Patrick's day no more we keep,
His color can't be seen.
For they're hangin' men and women
For the wearin' of the green.
Toda a gente se juntou no último refrão.
For the wearin' of the green, boys,
The wearin' of the green.
Oh, they're hangin' men and women
For the wearin' of the green.
Pouco depois Ford olhou para o relógio. "Meu Deus!", disse com fingido espanto. "São 9 e 28! Danny, toca mais uma valsa." O acordeão atacou "Missouri Waltz" e o realizador dançou com Miss Del Rio. A seguir dirigiu-se para a porta. Nessa altura, o grupo começou a cantar "Auld Lang Style", e fê-lo durante todo o tempo que ele demorou a sair e a entrar no seu quarto. Algumas pessoas ficaram ainda: dançaram um pouco mais e cantaram algumas canções, mas a festa tinha acabado.
Abril de 1964
in NACOS DE TEMPO - Crónicas de Cinema de Peter Bogdanovich
Tradutores: Maria Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Menezes
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