sábado, 30 de dezembro de 2023
THE CHASE (1966)
A primeira (pensar-se-ia) obra-prima indiscutível de Penn tem tido na verdade, em Inglaterra pelo menos, um reconhecimento um pouco escasso, tanto de críticos como do público em geral. A inteligência do realizador informa cada sequência: não apenas uma inteligência cerebral, mas uma inteligência em que a emoção e a percepção intuitiva têm os seus papéis essenciais, e em que a claridade de visão mais rigorosa é equilibrada (mas não anulada ou comprometida) pela generosidade emocional. É talvez o filme mais completo de Penn. Não que seja necessariamente preferível a Bonnie e Clyde, mas contém certas características que não se incluem nesse filme, o que lhe dá comparativamente uma dimensão extra.
The Chase dá o retrato mais completo de Penn de uma determinada sociedade, levando a análise à condenação intransigente, por implicação, da sociedade baseada-em-dinheiro em geral. Até ao final do filme toda a gente do mais alto (Val Rogers) ao mais baixo (o negro Lester) se revelou uma vítima por igual. A natureza essencial da sociedade retratada (vivamente particularizada, carregando no entanto o alcance implícito mais amplo possível) é sugerida cedo no filme pela cena no banco de Val Rogers: na superfície, uma hipocrisia e um uso de máscaras que tudo permeiam; por baixo dela, uma sensação de necessidades frustradas e corrompidas continuamente forte o suficiente para ameaçar a fachada quebradiça. O brinde com champanhe a Val Rogers no seu dia de aniversário, organizado com eficiência obsequiosa por Damon Fuller, transmite subtilmente a posição de Val. Toda a apresentação de Rogers é um bom exemplo da generosidade bem pouco sentimental de Penn. A "imagem" de Rogers—que ele próprio aceita claramente como real—de um cidadão eminente minuciosamente decente e responsável, modesto mas perfeitamente em controlo, não é inteiramente alheio à realidade. Penn mostra-nos um homem que não é inerentemente perverso, de todo: a sua corrupção subtil, revelada gradualmente à medida que o filme progride, sente-se como qualquer coisa inerente à sua posição e não à sua natureza. Como ele é rico, é respeitado universalmente; mas o respeito é pelo dinheiro, não pelo homem, e portanto falso e precário. Quando se erguem os copos de champanhe, as meninas que assistem sorriem em adoração: são totalmente sinceras, tanto quanto elas sabem estão mesmo a sentir alguma coisa pelo homem. E a extensão da ilusão própria de Val é sugerida pelo seu prazer evidente pelo tributo: está tão preso aos valores monetários como qualquer pessoa.
Mesmo no mundo aparentemente ordenado do banco, as tensões e frustrações subjacentes ao desempenho social elevam-se desconfortavelmente perto da superfície. Emily Stewart (Janice Rule), esposa de um vice-presidente, amante intermitente de outro, Damon, passa de atormentar o seu marido Edwin (Robert Duvall) com a ineficácia dele a marcar um encontro de forma descarada com o amante não muito entusiasmado dela dentro do campo de visão do marido e fora do alcance do seu ouvido apenas por um pouco. A intriga sexual associa-se facilmente à intriga profissional: o desprezo de Emily por Edwin como marido é dificilmente distinguível do seu ressentimento por não serem convidados para a festa de Val. A degradação do sexo, e das relações pessoais no geral, está intimamente relacionada com os valores monetários que tudo permeiam. A cena culmina com Emily a convidar Val de forma insolente e em público para a festa deles: as máscaras sociais são quase todas derrubadas. Do início ao fim, o sentimento de que se acumulam forças explosivas sob a débil fachada da propriedade é muito forte.
A análise social é desenvolvida ao longo das três festas simultâneas do filme—a de Val, a dos Stewarts, e a festa de adolescentes a decorrer na porta ao lado. Os três grupos convergem no clímax do filme, em que as distinções sociais insistidas pela separatividade anterior se decompõem numa anarquia geral à medida que todos os padrões civilizados finalmente desabam. As festas—duas delas observadas em grande detalhe—apresentam contrastes superficiais e paralelos latentes. Nota-se repetidamente na inadequação dos códigos de comportamento social em lidar com a violência latente nas relações pessoais. Cada festa tende a avançar rumo à expressão violenta enquanto as energias reprimidas se forçam cada vez mais à superfície. Isto é menos óbvio, forçosamente, na festa mais formal e elaborada de Val, com a sua ostentação respeitável. No entanto, mesmo aqui, as tensões mal reprimidas mantêm-se constantemente à vista. É uma marca da seriedade de Penn que mesmo a mulher bêbada de meia-idade no fato de cowboy não nos pareça meramente engraçada.
Tome-se, por exemplo, o incidente do anúncio formal das doações universitárias, com as suas sugestões de uma venda em leilão com os convidados a pagar mais do que os outros para adquirir estatuto e o seu discurso enfatuado: “Nós americanos temos de liderar as massas ignorantes do mundo. Só através dos livros é que o homem se pode tornar livre.” A ironia é ainda mais reveladora pela ausência de qualquer sensação de caricatura: a vulgaridade monetária generalizada, o plano de fundo de uma "cultura" superficial e puramente material, de falsos valores e falsas pretensões, salienta devidamente o discurso. O Sr. Theodore Crane dá $500,000 para financiar um dormitório para mulheres. Exclamação de uma loira risonha e um bocado tocada: “Ora, sua velha carcaça. Sentes-te à altura?” O sentido de interacção crítica aqui é típico de Penn: se o filme satiriza a presunção baseada em dinheiro do doador, certamente que não apoia a vulgaridade igualmente baseada em dinheiro da jovem—não passam de dois aspectos do mesmo conjunto de valores. A posterior apresentação a Val de um modelo da universidade—"Uma das melhores universidades que o dinheiro pode comprar”—transmite a implicação de que mesmo o melhor que esta sociedade tem para mostrar é invalidado por valores corrompidos.
A tensão entre superfície e realidade é expressa de forma ainda mais surpreendente nas relações pessoais. Há a dissimulação de felicidade conjugal pelo filho de Val, Jake (James Fox), e a sua esposa (Diana Hyland): antes a dissimulação de uma dissimulação, já que nem sequer é suposto Val ser enganado por isso. Tudo o que ele exige é o mero espectáculo, e a corrupção de valores omnipresente é sugerida pelo facto de que o espectáculo, mesmo quando ele sabe que é uma farsa, o põe contente. O casamento de Jake é claramente por dinheiro e estatuto: o Val “decente” e bem intencionado está por trás dele tal como—sendo o representante supremo do dinheiro-poder—está por trás da maior parte da corrupção no filme. Em contraponto com as cenas que envolvem Jake, a mulher, e o pai na festa, vemos Bubber Reeves (Robert Redford) a atirar lama para uma placa “Propriedades Val Rogers”. A acção impotente e indisciplinada sugere a frustração de jovens a crescer numa cultura orientada para o dinheiro, sentindo-se enganados mas no entanto sem condições para focar os seus ressentimentos nalguma forma de revolta significativa. A maior parte deles, de qualquer das formas, está demasiado bem na vida.
Mas se a nocividade de valores que ignora ou nega as necessidades humanas mais profundas é sentida com muita força no filme, também a sua incapacidade de controlar a expressão de tais necessidades o é. Quando Jake descobre que Bubber (seu amigo de infância, agora casado com a rapariga que Jake ama) escapou da prisão, sai imediatamente da festa, a meio do discurso do pai, para ir ter com Anna (Jane Fonda). Quando ele sai a correr, Val está a falar sobre “responsabilidades” e sobre a esperada “vida maravilhosa, rica e realizada” do filho. A própria realização se torna então uma farsa, como o sentido de “responsabilidades” que se expressa dotando uma universidade e estragando as vidas daqueles que se ama em nome das aparências.
A festa dos Stewarts, por sua vez, tem a espécie de atmosfera que passa por desinibida mas na verdade trata-se apenas de encenar tensões neuróticas sem a possibilidade de as exorcizar. Na rápida degeneração da festa para uma orgia de morte fingida e suicídio fingido, acompanhada de alguma destruição real quando um sapato “granada” atinge o balde de gelo e que culmina no disparo de uma arma verdadeira, tem-se reflectido em miniatura o movimento do filme inteiro. Há outra vez um sentido generalizado de verdadeiras necessidades não reconhecidas ou estranguladas numa sociedade que instituiu os valores materiais como os fins supremos. Nenhuma das personagens na festa está preparada para encontrar qualquer espécie de realização válida: estão todas circunscritas pelas atitudes profundamente enraizadas da sociedade como um todo. Os seus "jogos" em erupção espontânea, na maior parte das vezes chocantemente maliciosos, expressam necessariamente a violência acumulada dentro deles, o seu ódio uns pelos outros e por si próprios. À medida que a festa dos Stewarts degenera em caos, nós mantemo-nos cientes, pelas janelas, da festa em progresso dos adolescentes na casa ao lado, reflectindo a dos adultos na sua atmosfera de erupção iminente. Por esta altura vimos o suficiente do mundo onde os jovens estão a crescer e os valores que estão a aprender, os americanos que têm de “liderar as massas ignorantes do mundo” em termos de cultura. Tendo chegado para investigar o disparo da arma, os adolescentes sucumbem automaticamente a brincar ao Bubber Reeves, criando um paralelo com os jogos violentos dos seus veteranos. Este alargamento a outra geração, embora esboçado apenas levemente, acrescenta uma dimensão suplementar que assume particular importância perto do final do filme.
A festa dos adolescentes também é utilizada para revelar novos aspectos das personagens adultas. O comentário de Damon Fuller sobre “gostar delas cada vez mais novas,” embora disfarçado de piada, passa a ideia de algo mais, no contexto do seu casamento insatisfatório e adultério indiferente, e deixa uma sugestão adicional da corrupção generalizada; Emily Stewart acha isso bastante empolgante. O incidente provoca o único momento de genuíno sentimento durante a festa quando Edwin diz, “Não estava a pensar em coisas dessas, Damon. Estava a pensar em mim nessa idade—nas coisas que eu queria e achava que iam acontecer.” É típico da caracterização nos filmes de Penn que um homem que antes parecia essencialmente contemplativo de repente surja aqui como a única pessoa presente merecedora de respeito.
As personagens de Penn às vezes tendem para a caricatura sem nunca cair mesmo nela. A essência das verdadeiras caricaturas é que são incapazes de desenvolvimento, sendo características exageradas vistas em deslocamento de qualquer contexto de inteireza ou complexidade humanas. É uma grande fraqueza dos romances de Dickens, deste modo, que tantas das suas personagens não se consigam desenvolver; só conseguem ter mudanças arbitrárias que lhes são impostas pelo autor. Desta forma tornam-se cada vez mais exasperantes a cada reaparição, já que tudo o que o seu autor consegue fazer é fazê-las passar outra vez pela mesma rotina: como não se conseguem desenvolver, não nos podem surpreender. Claramente que isto não é o caso de Edwin Stewart—ou de Blanche Barrow, ou mesmo de Eugene e Velma, em Bonnie e Clyde. Se Edwin fosse mera caricatura, seria impossível para Penn levar a bom porto (como o faz, de forma bem tocante) o seu momento de verdade durante a festa, cuja genuinidade torna a posterior ridicularização pública dele como um “filósofo de Sábado à noite” pela mulher particularmente brutal. As quase-aberrações de Penn têm o mesmo tipo (se não grau) de complexidade que as suas figuras centrais; fica-se repetidamente impressionado com detalhes de comportamento que nos surpreendem e no entanto se registam ao mesmo tempo como absolutamente “certos,” tal como como a repentina revelação nostálgica de C. W. Moss de que ele e a família eram “Discípulos de Cristo” ou o riso de Eugene Grizzard quando é convidado a juntar-se ao bando de Barrow.
Colocadas em oposição a esta análise social devastadora estão as figuras de Calder, o xerife, e a sua esposa Ruby (Angie Dickinson): eles e a sua relação oferecem ao filme os seus principais positivos morais que colocam as outras personagens na perspectiva necessária. A postura amadurecida de Calder serve como uma pedra de toque por referência à qual se pode medir a falta de consciência dos outros. Através da actuação de Marlon Brando, a integridade de Calder torna-se uma presença convincente no filme. A resistência dele a todas as pressões exercidas para o implicar na corrupção geral nunca é sentida como uma questão de heroísmo vazio: é um homem que conhece as suas verdadeiras necessidades, enquanto que as personagens que o rodeiam não conhecem. Apoiado por um casamento estável e gratificante—ainda que sem crianças—e uma confiança firme na sua própria identidade, ele é capaz de se mover facilmente por qualquer um dos níveis sociais diversamente corruptos da cidade sem ser contaminado. Ele lida com a vulgaridade dos seus semelhantes sociais virando-a de forma perfeita contra eles. Emily convida-o para a festa: “Só precisas de uma pistola para vir para a minha festa e tu tens uma.” O tom de voz torna a insinuação sexual inequívoca. Calder replica calmamente, “Com as pistolas todas que tens para aqui, Emily, não me parece que houvesse espaço para a minha.” Toda a cidade, dos vice-presidentes de Val Rogers à Sra. Reeves, assume que ele está no bolso de Rogers; quando é pressionado pelas circunstâncias, Rogers revela que (inconscientemente) também o assume.
No entanto Calder age de forma decidida e consistente do seu próprio centro pessoal, mesmo quando se depara com a chantagem moral subtil da sua dívida para com Rogers (que foi responsável por lhe arranjar o seu cargo). De importância central para The Chase—e, se Bonnie e Clyde puder ser tomado como indicação fidedigna, para toda a evolução futura de Penn—é a forma como Calder, que encarna sozinho um sentido social atento e plenamente adulto, é impulsionado a rejeitar em desespero a sociedade por que se esforçou em manter unida.
A actuação perfeitamente controlada de Brando tem sido geralmente reconhecida, mas a presença de Angie Dickinson como Ruby muito menos. Dickinson é uma presença muito considerável em todos os filmes que agracia, mas Hollywood nem sempre lhe deu o uso mais feliz. Através dela, Penn sugere algo do que torna possível a Calder ser como é. A criação da relação Calder-Ruby é um triunfo para Penn e para os seus actores: não há nada de excepcional nos diálogos. Aquilo que é veiculado é essencialmente um sentido de compromisso um com o outro, nada enfático, nada ostentado, mas no entanto total. (Mesmo aqui, a falta de filhos—inexplicada, mas é-nos deixado presumir que se deva a alguma incapacidade ou incompatibilidade física—sugere a imperfeição de toda a existência.) A presença de Ruby em particular é crucial para o efeito do filme em três momentos de violência climáctica. Através dela mantém-se presente a pedra de toque de padrões civilizados e adultos, face aos quais podemos medir a ignomínia da tentativa de Val Rogers em subornar Lester (Joel Fluellen) com $100 e, quando isso falha, o espancamento dele numa cela trancada. A sequência posterior do espancamento de Calder por um grupo de cidadãos notáveis, tornada em si mesma intransigentemente repulsiva, recebe particular força pela presença de Ruby no outro lado (de novo) da porta trancada: a impressão de confiança e interdependência mútuas construída anteriormente é tão forte que aquilo que podia ter sido uma cena convencional de uma mulher a gritar enquanto o homem dela é espancado torna-se quase intoleravelmente comovente. Experienciamo-lo, por assim dizer, através do sentimento de exclusão de Ruby, o seu desamparo, a sua incerteza agonizante em relação ao que está a ser feito ao certo.
Acima de tudo, temos a intervenção de Ruby quando Calder, depois do fuzilamento de Bubber Reeves, sucumbe por fim à violência agora omnipresente, espancando inutilmente o assassino com uma ferocidade desenfreada e animalesca. É o momento em que a intensidade trágica do filme é mais evidente, e a reacção de Ruby é de uma importância vital. Teria sido tão fácil, dado o nível emocional que o filme alcançou por essa altura, achar que a descida de Calder para a violência é justificada: podia ter sido apresentada como um momento de libertação, como o final de western tradicional em que o herói que se manifestou contra a violência saca finalmente da arma, com a aprovação total do público. O horror de Ruby (combinado evidentemente com outros factores no tratamento da cena pela parte de Penn, como a desordem pouco digna das acções de Calder) proíbe de forma inequívoca tal reacção. Também é um momento em que as linhas sociais e pessoais se tornam indistinguíveis. A cena torna-nos perfeitamente claro de uma só vez o colapso dos valores sociais sobre os quais Calder se posicionou até ao momento, a sua descida a tudo aquilo a que se opunha (tornado possível apenas pela desilusão final), e o terror pessoal da perda de dignidade e amor-próprio num homem de uma força e de uma integridade excepcionais. Quanto ao final do filme, se é suposto encontrar qualquer tipo de esperança para qualificar o seu desespero tremendo, ela tem de estar na força comedida do “Calder. Vamos. Anda lá.” de Ruby. A derrota e a desilusão totais implícitas no que diz respeito à sociedade são ligeiramente compensadas pelo nosso sentimento da durabilidade de uma relação pessoal, pelo menos.
Mas se é verdade que a relação Calder-Ruby concede a The Chase o seu principal ponto focal positivo, também há um forte ponto focal secundário que se opõe a ele de muitas formas, criando uma tensão moral poderosa e perturbadora no filme como um todo: a relação dos três jovens, Anna e Bubber Reeves e Jake Rogers. Os Calders representam um positivo moral fundado sobre uma alta concepção da sociedade, os jovens uma moral associal baseada em lealdades pessoais. Calder é acima de tudo consciente, as acções dele (até ao seu esgotamento) são ditadas por uma percepção esclarecida dos problemas, uma capacidade de se afastar e sondar com astúcia mesmo quando está no centro dos acontecimentos; os jovens são acima de tudo espontâneos, agindo por impulsos imediatos. Ser capaz de reagir a duas visões morais parcialmente opostas ao mesmo tempo, se elas forem retidas de forma equilibrada e com clareza, pode ser um sinal de maturidade e honestidade e não de confusão.
Há algo da atitude do filme para com Bubber Reeves que é sugerido desde o início na sequência dos créditos, em que os perseguidos são mostrados diante de planos de fundo naturais enquanto os perseguidores são mostrados diante de edificações industriais sinistramente gigantes e lugubremente iluminadas. Os três jovens são apresentados de forma bem pouco glamorosa e sentimental como confusos, falíveis e desamparados, com as acções deles a envolvê-los de forma progressivamente mais profunda no desastre; apesar de toda a sua confusão moral, no entanto, a pureza e a naturalidade comparativas das suas reacções uns aos outros destacam-se nitidamente em oposição às reacções baseadas no dinheiro dos seus veteranos mais “respeitáveis”. Jake, como filho de Val, é forçosamente o mais constrangido dos três, mas até algumas das suas acções—a recusa em abandonar a sucata de carros usados com o pai, que marca a sua rejeição de tudo aquilo que Val representa, o seu momento de empenhamento final—têm uma força moral considerável. Durante a festa, nota-se na honestidade de Jake e da sua esposa um com o outro a respeito da sua relação no contexto da hipocrisia envolvente—ela pergunta-lhe casualmente se vai ver a sua “amiga” (Anna), e ele admite-o com a mesma casualidade.
A natureza exacta dos valores encarnados por este grupo de personagens pode tornar-se clara com alguns exemplos. A atitude geral implícita à relação entre os três, em si, é muito pouco convencional na sua transparência. Anna é a esposa de Bubber, Bubber é o melhor amigo de Jake, Jake e Anna são amantes. No entanto, o filme não impõe qualquer atitude moralista ao espectador no que diz respeito a esta situação. Além disso—e isto talvez seja outra forma de dizer a mesma coisa—não há esquematização das personagens: elas têm numa medida acentuada a espontaneidade de resposta fresca e inesperada que se encontra tão frequentemente nas pessoas de Penn. Anna está apaixonada por Jake, mas a sua reacção às notícias da fuga de Bubber é uma corrente espontânea de simpatia para com ele, um sentido intuitivo de necessidade de alguém por quem nutre sentimentos. O amor dela por Jake é perfeitamente compatível com uma noção das fraquezas dele: ela trata-o (como no incidente da oferta de jóias dele) sempre com uma frontalidade que exprime a sua capacidade em confiar e agir de acordo com as suas próprias reacções instintivas. Durante a busca por Bubber, Jake diz-lhe que tem medo de a perder e diz que quer casar com ela. De imediato, como num ressalto, ela dá-lhe uma estalada na cara: “Esperei estes cinco anos todos para te ouvir dizer isso. Só mesmo tu para o dizer na altura errada.” Nós registamos a acção como expressão de um pudor natural e intuitivo. Quando encontram Bubber, em vez da explosão esperada (várias personagens—Edwin Stewart, etc.—tinham andado a antecipar que Bubber ia tentar matar Jake), a camaradagem antiga deles não só é preservada como reforçada. O desespero que a prisão impulsionou em Bubber (cujo ímpeto para a liberdade tem o carácter instintivo de um animal encurralado) é aqui um factor decisivo: “Quando estamos dispostos a morrer, já ninguém nos consegue obrigar a fazer o que quer que seja.”
In extremis, descobrem os três uma honestidade e uma sinceridade que rebentam totalmente com quaisquer tendências para as reacções emocionais convencionais ou “condicionadas”. A aceitação natural de Anna e Jake pela parte de Bubber é acima de tudo uma aceitação de impulsos naturais. A sociedade entende apenas as suas próprias reacções condicionadas: daí a assunção que Bubber vai matar Jake e a assunção que Calder vai apoiar Val Rogers. A condenação final do poder-dinheiro vem da forma mais bela, e espontânea, de Bubber Reeves. Quando sabe da oferta de um carro e de uma fuga gratuita da parte de Val Rogers, com tudo amenizado, ele exclama, “Ele pode fazer isso? Que mundo!” Está aqui, então, o pólo moral-emocional positivo secundário do filme; a moralidade "natural" pouco ortodoxa que os três desenvolvem tem um grande peso no contexto representativo do colapso da moralidade convencional e artificial. A tensão entre os dois pólos pode ser sugerida em referência a outro exemplo no filme de uma reacção absolutamente natural e espontânea: o espancamento do assassino de Bubber por Calder.
São as implicações desta força positiva secundária que Penn explora em Bonnie e Clyde. A relação entre os dois filmes é extremamente interessante. Sabe-se, naturalmente, que em Hollywood há factores acidentais ou alheios que podem desempenhar um papel considerável naquilo que parece o desenvolvimento de um realizador, que o tema de The Chase não foi inteiramente da livre escolha de Penn, e que Bonnie e Clyde já tinha sido oferecido a outros realizadores (incluindo, de forma bastante apropriada, Jean-Luc Godard) antes de Penn se incumbir dele. No entanto, não se consegue resistir a ver uma ligação lógica entre a derrota de Calder e Bonnie e Clyde, onde um Calder não teria papel algum para desempenhar: podia-se quase dizer que a derrota de Calder torna Bonnie e Clyde e a linha que Penn aí explora inevitável.
O clímax de The Chase dá uma imagem aterradora de colapso social em que todos os fios variados do filme se unem. O cenário do "cemitério" de carros avariados leva-nos de volta a Mickey One e à "morte total", mas aqui ganha força por ser usado de forma dramática quando no filme anterior era exclusivamente simbólico. Val aparece para salvar Jake, depois aparecem os convidados da festa dos Stewarts, depois os adolescentes, à medida que se espalham as notícias sobre o paradeiro de Bubber. Quando a violência ubíqua explode (literalmente, com fogo-de-artifício e pneus em chamas) em todo o lado, vemos Val a perder cada vez mais o controlo: por fim, o poder do dinheiro evapora enquanto os impulsos instintivos frustrados se satisfazem com a destruição. O tratamento da cena é tão convincente em termos de personagens que é só depois que uma pessoa se apercebe de quão perto estamos, aqui, da alegoria. A condenação da sociedade está implícita na ambivalência confusa das reacções dos adolescentes: Bubber torna-se metade herói-popular, metade bode expiatório, enaltecido e perseguido, ao mesmo tempo símbolo de revolta e vítima necessária em quem a violência pode ser desencadeada pelo menos com alguma demonstração de justiça social. Eles não o podem ver é como um ser humano, como um deles. Vemos os começos de um mito Bubber Reeves ("Lembras-te da minha irmã?" chama uma rapariga ansiosamente pela janela do carro enquanto ele é levado para a prisão) a que se prende um dos temas favoritos de Penn. Só aqui, no momento em que Bubber parece estar em perigo de desaparecer sob a sua própria lenda, é que descobrimos que ele tem um nome (Charlie) além da alcunha infantil; quase imediatamente depois do qual é abatido nos degraus da cadeia. O sentido da violência como uma epidemia que se espalha a velocidade alarmante e inatingível é bastante reforçado pelo facto do assassino de Bubber ser um homem que até esse momento tinha ficado na periferia dos acontecimentos, mais espectador do que participante, aparentemente um dos menos dados à violência activa.
Inacreditavelmente, alguns críticos atacaram The Chase quando saiu em Inglaterra pela sua ênfase na violência. A violência é um tema que um artista que está vivo intuitiva e intelectualmente para o mundo em que vive dificilmente pode evitar hoje; e se há um tratamento mais responsável dela algures no cinema, ainda não o vi. Ao insistir na actualidade do filme, estou a pensar em mais do que na clara referência à morte de Lee Harvey Oswald no tiroteio de Bubber Reeves. Embora tudo em The Chase seja tão vividamente pormenorizado, seria um erro vê-lo apenas como um retrato de uma sociedade localizada. (Se é um retrato fiel do Texas contemporâneo ou não é uma questão bem fora da minha competência, e além disso parece-me de importância trivial. A sociedade de The Chase pode ser totalmente tomada como fictícia: a relação dele com as realidades fundamentais da civilização moderna permanecem não afectados.) Parece-me que faz um comentário trágico ao espírito actual do mundo: a sensação de que os valores tradicionais da civilização ocidental foram tão desgastados que já não são capazes de segurar as forças que tornaram mais explosivas por as suprimir. O filme capta enervantemente esse sentimento de violência latente ou em erupção que tem indubitavelmente uma importância especial para o Sul Profundo mas que em alguma medida está no ar que todos nós respiramos.
in «Arthur Penn», Wayne State University Press, 2014.
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domingo, 24 de dezembro de 2023
quinta-feira, 5 de outubro de 2023
A minha carreira americana de faz de conta
Ainda que nunca tenha trabalhado em Hollywood, posso dizer que tive uma pequena carreira americana. No seguimento de Exodus, Arthur Penn confiou-me efectivamente um grande papel em Mickey One.
Este realizador era muito estimado em França desde The Left Handed Gun, um western que questionava a personalidade de Billy the Kid. Eu tinha adorado este filme que fez muito pela carreira de Paul Newman, impressionante como jovem bandido do Oeste selvagem.
Natural de Filadélfia, Penn tinha começado na televisão e tinha lá criado uma excelente reputação com a qualidade das suas rodagens ao vivo. Também era um encenador estimado nos palcos de Nova Iorque, onde vivia. A crítica europeia via-o como líder do novo cinema americano. Para as grandes companhias hollywoodianas, no entanto, mantinha-se um intelectual, posição que o tornava marginal na profissão.
No entanto, Anne Bancroft tinha conquistado o Óscar de Melhor Actriz e Patty Duke o de Melhor Actriz Secundária no segundo filme dele, O Milagre de Anne Sullivan. Este sucesso fez com que fosse contratado para dirigir O Comboio, parte da rodagem da qual aconteceu em França. Ao fim de dez dias, Burt Lancaster, descontente com a sua forma de trabalhar, substituiu-o por John Frankenheimer. Não era uma coisa incomum em Hollywood, as vedetas e o produtor considerando muitas vezes o cineasta como um simples executante, não como um criador, nem sequer como o autor do filme.
Durante a sua breve estadia em França, Penn teve pelo menos a oportunidade de ver Le Feu follet de Louis Mallle e de se deixar seduzir pela fotografia de Ghislain Cloquet e por uma das actrizes do filme: eu. Foi assim que fomos os dois contratados para Mickey One.
Estava nervosíssiva. Mas desta vez não quis desperdiçar a minha oportunidade.
*
Os ensaios começaram em Nova Iorque e duraram um mês. Sentávamo-nos à roda de uma mesa para trabalhar os nossos papéis. Travei imediatamente amizade com Warren Beatty, a estrela do filme. Tinha acabado de deixar Natalie Wood e era o amante secreto de Leslie Caron, ainda casada.
Sentia-me bem. Conhecia Nova Iorque, onde a minha mãe me tinha levado tantas vezes durante a minha infância. À noite, saía com Jill Jakes, a secretária de Penn e futura esposa de Terrence Malick. Ela fez-me conhecer a vanguarda nova-iorquina: a escritora Susan Sontag, o músico John Cage, os pintores Jasper Johns e Robert Rauschenberg, inventor da Pop art... mas John Cassavetes não, infelizmente!
A rodagem realizou-se em Chicago, Arthur Penn comportou-se um bocado como Jacques Doniol-Valcroze em L'Eau à la bouche: cordial e paciente. Apesar das suas atenções, a minha preocupação contínua causou-me dores de cabeça insuportáveis; sobretudo, sentia-me pouco à vontade nas minhas cenas com Warren Beatty, ainda imbuído da formação de actor por Stella Adler, como Paul Newman o estava por Lee Strasberg. Mas enquanto que tinha tido muito poucas cenas com Newman no filme de Preminger, tinha muitas com Warren em Mickey One. A minha angústia não se justificava apenas pelas dificuldades que sentia em manter-me em sintonia. Não me sentia segura de mim mesma. Consciente do meu estado, Penn, para me descontrair, dava-me as mãos para os grandes planos.
Vivi no entanto belos momentos neste filme e tenho lembranças comoventes das sessões de gravação da musique, que Penn confiou a Stan Getz, um homem do jazz cujo estilo eu adorava. Também tive a oportunidade de conversar com Bertrand Goldberg, o arquitecto do hotel onde nós estávamos; ele tinha construído duas torres de betão armado de 175 metros em Marina City onde foram rodadas algumas cenas. Até tive oportunidade de me cruzar com Hugh Hefner, o criador da revista Playboy, nos clubes onde Penn tinha previsto várias sequências com raparigas esculturais que não deixavam Warren Beatty indiferente...
Sempre curiosa e indisciplinada, levei uma vida apaixonante fora do local das filmagens. Fiz amizade com o escritor Nelson Algren, o autor de O homem do braço de ouro, no qual Otto Preminger tinha baseado um filme. Ele tinha sido amante de Simone de Beauvoir e essa ligação dava-lhe uma grande aura entre os intelectuais americanos, ainda entusiastas do existencialismo.
Algren era um tipo incrível. Antes de mais, ele usava laços-borboleta brilhantes! Nos dias em que eu não filmava, levava-me a visitar a penitenciária nas proximidades e, algumas noites, arrastava-me para bares mal afamados em que os irlandeses armavam confusão com os índios. Estes passeios nocturnos preocupavam o director de produção que, receando pela minha integridade física, me interditou formalmente estas escapadelas. Ditatorial e estúpido! Em sua defesa, eu ignorava que a produção andava sob tensão. Mickey One traçava o percurso de um artista sustentado pela máfia que tentava libertar-se dela. Arthur Penn tinha-se inspirado directamente no início de carreira de Frank Sinatra e a Columbia receava acções dissuasivas da máfia. Portanto esse director de produção achava imprudente que eu me expusesse assim nos bairros mais sórdidos de Chicago...
Foi sem dúvida por essas mesmas razões que Mickey One teve apenas um lançamento confidencial nos Estados Unidos. Ainda que apresentado no Festival de Veneza, foi um fracasso universal. Isso não servia para a minha carreira americana!
*
Por sorte, apresentaram-se outras oportunidades de trabalho na América. Conheci em Londres o produtor Darryl F. Zanuck, que quis muito considerar-me a mim para o papel de Shirley Eckert, a rapariga de Yang-Tsé em Chamas. Fiquei excitada com a ideia de trabalhar com Robert Wise, cujas duas comédias musicais, West Side Story et Música no Coração, tinham alcançado sucesso, rendendo-lhe cada um o Óscar de Melhor Realizador. Mas o meu interesse por ele ia além do seu estatuto de estrela das bilheteiras. Sabia que tinha sido o montador do primeiro filme de Orson Welles, O Mundo a Seus Pés, e tinha adorado os seus filmes anteriores, The Set-Up e O Dia em que a terra Parou.
O assunto era sério, uma vez que Zanuck me enviou para Los Angeles para fazer testes nos cenários do filme, nos estúdios da 20th Century Fox. A jovem Emmanuelle Arsan também estava a fazer ensaios para outro papel, que aliás acabou por conseguir. Aparece no genérico com o nome de Marayat Andriane. Eu já a tinha conhecido em Banguecoque, onde o marido Louis-Jacques Rollet-Andriane era cônsul de França. Como é que podia suspeitar que mais tarde ia filmar numa continuação de Emmanuelle, a partir do romance erótico que ela tinha publicado em 1959?
A minha estadia em Los Angeles reserva-me outra surpresa.
Estava alojada num hotel muito mediano. Como não suportava ficar lá fechada quando tinha tempo livre, saía para passear, mas nesta cidade onde toda a gente andava de carro, uma jovem no passeio era imediatamente suspeita de aliciamento. A polícia controlou-me. Consegui explicar que estava a dar um passeio porque precisava de apanhar ar e de qualquer forma foi a única vez na minha vida em que me confundiram com uma puta.
Os testes duraram três semanas e pareciam conclusivos. Robert Wise convocou-me ao escritório dele e afirmou-me, não sem um certo constrangimento:
- Os seus testes são perfeitos, Alexandra... mas não vai interpretar o papel de Shirley Eckert. Escolhemos uma jovem actriz, a Candice Bergen, filha do ventríloquo famoso. Lamentamos imenso...
Candice Bergen! Uma antiga modelo como eu... Tinha acabado de me ficar com um papel em The Group de Sidney Lumet. Na altura ignorava que ia ser a última companheira de Louis Malle, o pai da minha filha...
*
Dez anos depois, houve ainda outra decepção à minha espera em Hollywood.
Robert Altman, que estava a preparar Quintet, queria-me confiar um dos cinco papéis principais ao lado de Bibi Andersson, Paul Newman, Vittorio Gassman e Fernando Rey. Desta vez, foi Brigitte Fossey quem me passou a perna.
No final das contas, o outro único filme americano em que participei, mas num pequeno papel, foi The Marseille Contract de Robert Parrish, uma co-produção com a França em que o meu amigo Michael Caine era a estrela, ao lado de Anthony Quinn e James Mason. Só boa gente!
Olhando para trás, parece-me que os estúdios americanos não foram muito sensíveis aos charmes das belas musas da Nova Vaga francesa. Tirando Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, poucas actrizes terão conseguido fazer carreira em Hollywood. Certo, Anna Karina teve a oportunidade de ser dirigida por George Cukor em Justine, e isso conta na vida de uma actriz, mas nem eu nem Stéphane Audran nos conseguimos impor além-Atlântico. Quanto às outras... nem sequer atravessaram o oceano.
in «Mon bel âge - mémoires», Éditions de l'Archipel, Paris, 2014.
segunda-feira, 2 de outubro de 2023
Perguntas sobre o cinema americano
por Claude Chabrol, Jacques Doniol-Valcroze, Jean-Luc Godard, Pierre Kast, Luc Moullet, Jacques Rivette e François Truffaut
1) Que faz neste momento? Se estiver a preparar um filme, quais são as condições de produção?
2) Trabalha mais facilmente para a televisão ou em cinema? Porquê?
3) Está satisfeito com as condições (produção-distribuição) nas quais fez os seus filmes mais recentes? Porquê? Se não, porquê?
4) Qual é o seu projecto mais acarinhado? Está a pensar realizá-lo, e em que condições de produção? Se lhe impossível realizá-lo, porquê? O que é que o está a impedir?
5) Trabalha com mais ou menos liberdade do que há dez anos? Os temas quentes (tanto morais como sociais) hoje em dia estão-lhe mais acessíveis?
6) Hollywood mudou de há dez anos para cá? em que sentido?
*
1 - Estou a preparar um novo filme para a Columbia. Vai-se chamar Mickey One e será rodado na Costa Leste. As condições de produção são excelentes: sou totalmente responsável pelo filme e os únicos limites que me impõem são financeiros. Permite-me rodar com um pequeno orçamento e, enquanto o respeitar, a minha liberdade será absoluta no que diz respeito ao argumento e à escolha dos actores. A Columbia nem sequer está autorizada a ler o argumento sem o meu consentimento. São condições pouco habituais para o cinema americano, é o mínimo que se pode dizer.
2 - Não trabalho para a televisão há cinco anos. A televisão é impossível nos Estados Unidos, porque é propriedade exclusiva dos anunciantes, a a visão deles do mundo é uma mistura de luxo, felicidade e água de rosas... em suma, uma mentira quase total.
3 - O meu último filme, O Milagre de Anne Sullivan, foi realizado para a United Artists em Nova Iorque. Fiquei contente com as condições em que fizemos esse filme, mas não fiquei muito contente com o resultado.
4 - O meu projecto mais acarinhado é o de realizar um bom film. Tenho a certeza que consigo arranjar os meios materiais necessários. Mais não tenho assim tanta certeza das minhas próprias capacidades. Sou livre, mas isso pode ser assustador.
5 - Hoje em dia temos muito mais liberdade. É realmente mais fácil ser autorizado a abordar diversos temas. O que é mais difícil, é saber a verdade sobre esses temas.
6 - Eu não ponho os pés em Hollywood há cinco anos. Não acho que tenha mudado de forma significativa. Consegue-se a liberdade para fazer filmes, mas nenhuma liberdade social, porque Hollywood é uma cidade que teve a inteligência de estabelecer a sua moralidade e os seus costumes ao nível mais venal. Por isso, as mudanças, em Hollywood, só podem ser superficiais. Em suma, não gosto dessa cidade, e não tenho vontade nenhuma de lá trabalhar.
in «Situation du cinéma americain», Cahiers du Cinéma nº 150-151, Dezembro de 1963 - Janeiro de 1964.
domingo, 1 de outubro de 2023
ENCONTRO COM JOÃO DIAS
Como é que o cinema chegou até ti? Começou na infância? Na adolescência? Quando é que decidiste que podia ser uma carreira? Foste para Filosofia primeiro, não foi?
O primeiro contacto com o cinema foi numa sessão de Os 101 Dálmatas, no Quarteto. Era um miúdo, muito pequeno. É uma memória de sonho, que está na névoa, coisas de outra vida. Terão havido outras sessões de cinema mas que não deixaram lastro. Mais tarde, deveria ter uns treze anos, vivia em Miratejo, um subúrbio puro e duro, tão horrível quanto maravilhoso, e tinha uma namorada com entusiasmo por cinema. Abriu uma pequena sala no centro comercial e ela insistiu, «sexta-feira à noite podemos ir namorar, onde é que vamos?». Fomos ao cinema. E essa sessão foi dramática, porque a sala de cinema era o lugar onde a matilha do subúrbio se juntava para a festa rija, e as sessões eram passadas com a malta aos berros, aos pulos, a fazer tropelias, a dar umas quecas, a fumar… O filme era a desculpa para uma estranha festa pagã. Eu era um rapaz meio enfiado e aquilo causou-me uma impressão terrível. Aliás, hoje fala-se muito do cinema em sala e do cinema em casa, e procura-se estabelecer uma diferença afirmando que o cinema é um acontecimento social. Não é um argumento que me toque muito. Para mim, a experiência do cinema foi sempre mais a de uma solidão exuberante do que a de um acto social. Mais tarde, na Cinemateca, vi muito cinema, duas, três sessões por dia. Celebrava-se o centenário e havia uma programação muito intensa, cheia dos grandes clássicos.
Quê, '96?
Exactamente. Mas, mesmo aí, o cinema não passou a ser, para mim, um acto social. Depois do filme há sobretudo um movimento de recolhimento, de pensar no que acabou de acontecer. Bom, tinha ido estudar fotografia, mas aquilo não me oferecia resistência suficiente, e tinha aquele ímpeto de juventude de querer sempre algo mais…
Mais desafiante?
Mais desafiante, sim, uma coisa mais aventurosa. Foi dessa vontade de aventura que verdadeiramente vim dar ao cinema. No início, em filmes de outros. Primeiro o Edgar Pêra, onde descobri a montagem, num período muito intenso de trabalho, em que se laboravam 24 horas, em turnos. Ficava a trabalhar à noite, até o Edgar chegar de manhã. Aí há uma primeira experiência do cinema que não é a do espectador. A partir das dez da noite não se ouve ninguém e estás até às cinco da manhã numa solidão absoluta a trabalhar as imagens, a escolher, eventualmente a começar algumas colagens entre planos. Isto bate novamente na tecla de uma experiência solitária, muito silenciosa, quer dizer, um bocadinho mais próxima do imaginário que temos do poeta a escrever, o silêncio, o isolamento.
Como é que conheceste o Pedro Costa e acabaste a trabalhar com ele? E que influência é que ele teve, o que é que aprendeste com ele?
A certa altura fui estudar Filosofia, mas isso foi interrompido quando fui chamado para o serviço militar obrigatório. Fiquei lá oito meses e depois, por várias circunstâncias, já não consegui retomar o curso. Queria fazer os meus filmes. E surge um desafio para fazer um filme sobre o SAAL, que é um filme que tu conheces, e sobre o qual já escreveste, e muito bem. Esse filme sobre o SAAL foi produzido pelo Abel Ribeiro Chaves, que tinha um segundo andar nos Restauradores onde ele guardava equipamento, nuns andaimes montados e cheios de caixas. Eu fui pedir ao Abel um sítio para trabalhar e lá fiquei no meio dessas caixas a montar o filme. Entretanto, o Abel acolheu o Pedro Costa, que também precisava de um espaço para trabalhar. Começaram então a sair dali umas caixas, aquilo começou a ficar mais ajeitado e ali ficámos os dois, ele numa sala, eu noutra. Havia ali uma convivência de parceiros de escritório. Ele na sua mesinha, eu na minha mesinha, a fazer as nossas coisas e depois tínhamos aqueles encontros de quem se vai falando, não é? Isto durou bastante tempo e foi-se criando uma relação de alguma fraternidade operária, digamos assim. Entretanto, ele tem o Ne Change Rien para montar com a Patrícia Saramago. Queriam alguém para sincronizar o som, eu estava ali. Só aí começa verdadeiramente uma relação de trabalho.
Não sei se queres falar um bocado sobre os filmes que te foram encomendados. O documentário sobre o concerto dos Genesis, As Ondas, o Promenade Le Corbusier…
São trabalhos muito condicionados. Pela circunstância da encomenda. Não sou o que normalmente se entende como cinéfilo. Não estou constantemente a pensar nos filmes que vi, mas nos filmes que gostaria de fazer, numa relação obsessiva com as matérias, a luz, o som, a direcção de actores, isto e aquilo. Sempre percebi que me tinha que manter próximo disso, mesmo que através de filmes de encomenda.
E o Operações SAAL partiu de ti, então?
É uma encomenda, mas completamente aberta. A associação Extra-Muros queria promover filmes sobre acontecimentos estruturantes da revolução portuguesa, como a reforma agrária, as campanhas de alfabetização, o SAAL… e perguntaram-me se eu queria fazer um filme sobre algum destes temas. O meu pai tinha participado no SAAL, e por isso eu já tinha uma ideia, ainda que muito vaga, do que se tratava. Portanto, aquilo ligava-se ao meu pai e ainda para mais punha-se a questão da habitação. Durante a minha infância, até aos dez anos, havia uma grande instabilidade, pois vivíamos sempre a mudar de casa. Chegámos a viver um ano no parque de campismo de Monsanto. Por isso interessava-me o tema do SAAL, a ideia de conquistar uma casa. Ora, o Operações SAAL é feito ainda na ressaca do Pêra, no bom sentido, e é construído com estratégias que eu trazia do Pêra. Só depois de realizar este documentário começa o meu trabalho com o Costa, que me vai pôr do outro lado da lua. Sobretudo pela relação com uma certa ideia de organização… leninista. «A organização é a única arma do proletariado na sua luta pelo poder». E no Costa há muito isso. Quer dizer, sem a capacidade de organização que ele tem, não se concretizariam as forças poéticas que encontramos nos seus filmes. Sem organização, a sua poesia não chegava onde chegou. Ora, o Pêra tinha muito mais uma relação com um cinema directo vertoviano, do cine-olho e da manipulação na montagem. Havia uma coisa que ele dizia quando íamos filmar a um sítio qualquer, e que eu acho maravilhosa: «Entramos já com a câmara em punho, a filmar!». Portanto, ninguém entra com a câmara baixa a pedir licença. Não! Perguntam depois, se surgirem problemas. Entramos a filmar. Com o Costa as coisas não funcionam assim, há um trabalho de antecipação. Uma coisa extraordinária, e que posso afirmar em relação aos filmes que montei com o Pedro, é que não há planos filmados que estejam fora do filme. Um ou dois, são residuais. Todos eles têm a sua função num desenho que está pensado antecipadamente. O trabalho de montagem é a tentativa de restabelecer uma ordem que já existia. A montagem aqui não é um trabalho de descoberta, é um trabalho arqueológico para repor a forma que as coisas chegaram a ter em determinado momento. Por exemplo, uma das coisas que habitualmente se julgam emblemáticas no trabalho de um montador é o de descobrir qual deve ser o primeiro ou último plano do filme, ou descobrir qual é a estrutura. Um montador nos filmes do Pedro não faz nada disso. Este montador deve ter uma sensibilidade de um tipo especial, mas não para cumprir essas tarefas.
Mas isso é engraçado, porque essa tensão está toda nas Operações SAAL. Tu atira-los uns aos outros, como se estivessem mesmo a discutir. Estás nas filmagens, mas depois na montagem...
Na montagem é que se descobriu tudo, não é? Não tudo, mas quase tudo. Exactamente porque o SAAL deve muito ao trabalho com o Pêra, particularmente a um filme chamado O Homem Teatro. Estávamos no Porto a rodar este filme, que juntava situações encenadas com actores e uma série de entrevistas de pesquisa que ele fez a muita gente ligada ao TEP (Teatro Experimental do Porto) e ao António Pedro. Os actores deviam trabalhar de forma muito livre, com imenso improviso, mas para isso era necessário formar os actores sobre o que era o TEP. Então o Pêra pediu-me para trabalhar as entrevistas que fez, agarrar nos melhores momentos e alinhar uma montagem que contasse a história do TEP, e servisse aos actores como uma fonte de informação para que pudessem trabalhar os seus improvisos. Montei uma série de retalhos onde os testemunhos dos entrevistados se contrapunham, ou se continuavam. A experiência dessa montagem é uma aprendizagem que levo para o SAAL, onde ponho frequentemente os protagonistas a dialogar uns com os outros. Acho que é no teu texto sobre o SAAL que pela primeira vez se aponta isso, e que tu descreves muito bem. Não deixo as frases completas, interrompo abruptamente o discurso para poder chocar com outro discurso, usando trechos de testemunhos para a construção de um testemunho novo. E sempre com a ideia de não fechar o assunto, como tu apanhas muito bem no teu texto. O importante não é chegar a uma resposta, mas trazer ao de cima o conflito, a tensão, as zonas escuras, apontar os problemas.
Trocaste a cidade pela aldeia, não sei se isso afectou a tua forma de trabalhar. Quer dizer, o que é que te permite fazer a aldeia que a cidade não permite? E pronto, porque é que vieste para o Fundão, no fundo? Para Atalaia do Campo.
Sem querer ser indelicado com a aldeia e com a região que me acolhe, a minha vinda para cá começa por ser uma fuga de lá. Mas tive a sorte de vir parar aqui, de frente para a Gardunha, a um lugar onde existe uma relação muito especial com a serra, porque estamos virados para o anfiteatro sul e situados no melhor lugar da sala para ver aquele imenso ecrã, onde comecei a “projectar” uma série de coisas. Estava há muito tempo sem conseguir filmar. Ao longo desse tempo a minha ligação ao cinema permaneceu, em termos práticos, somente na montagem dos filmes do Costa. Mas em relação aos meus filmes havia um grande desânimo. A certa altura fartei-me e pensei que tinha de resolver este problema. Em Lisboa não é possível, os encargos são enormes e entretanto tivemos um filho, o Francisco. É preciso inventar uma solução radicalmente diferente. Ora, dois anos depois da minha chegada aqui, estou a terminar o meu primeiro filme de ficção, graças a uma bolsa de criação artística atribuída pela Câmara Municipal. Foi a primeira vez que tive um apoio institucional para filmar. Não cobriu, evidentemente, os custos do filme, mas ao longo de doze meses deu-me a segurança suficiente para pagar as contas e não ter de andar sempre a correr atrás deste ou daquele trabalho. Ainda estou numa fase de encantamento.
E como é que nasce a ideia desse projecto? Como é que foste dar ao Cireneu e como é que pensaste em juntá-lo à Nossa Senhora?
Só uma coisa, antes disso. A partir dum certo momento percebi que só me interessava trabalhar sobre aquilo que me fosse muito próximo. Percebi que só podia filmar criando raízes num lugar, numa comunidade de gente, mas também numa determinada paisagem. Também por causa daquela vida com a casa às costas de que te falei, sempre tive uma grande vontade de me fixar. Pensar que esta é a minha última casa e que vou ficar aqui até ao fim dos meus dias, é uma ideia que traz imensa alegria, esperança, confiança, e uma vontade muito grande de... começar outra vez. As primeiras duas ou três tentativas falharam. Tudo falhou, vinte anos sob o signo do fracasso. Agora dei-me a mim mesmo uma espécie de segunda vida. Este é o novo cenário e em breve poderei dizer que é meu, que sou de cá, e quando vou à janela da sala vejo o décor. Aqui, comecei por estabelecer uma relação com as pedras, porque tenho a Gardunha à minha frente. É como o poema do João Cabral de Melo Neto, “A Educação pela Pedra”. E comecei a subir à Gardunha, onde me deparei com um património especial, as morfologias graníticas da Serra da Gardunha. No meio da natureza intuímos sempre qualquer coisa de sobrenatural e de arrebatador. Eis o cenário, é aqui que quero começar a filmar, no meio destes rochedos silenciosos e inamovíveis.
Dei o passo seguinte, fui às lendas. A personagem mais emblemática do culto mariano na região é a Senhora da Serra, que tem uma lenda fundadora muito importante e lugares físicos identificados. Por exemplo, uma lapa na Gardunha, que é o ponto de confluência desta lenda e um cenário maravilhoso. Há uma outra figura muito importante, conhecida aqui como o Robin dos Bosques da Serra da Gardunha, um tipo chamado Cireneu, que em certo momento da vida está em fuga da polícia e refugiado na serra. Ao apoio que obtinha da comunidade nas aldeias em redor, Cireneu retribuía de forma generosa. Li sobre isso uma história lindíssima. Cireneu encontra uma menina que vai pela serra com uma marmita para levar ao pai, que está a trabalhar na horta. «O que é que tu trazes aí?». A menina não se assusta, mostra-lhe a marmita e ele come metade do que lá está. Depois, devolve a marmita e diz: «Agora leva ao teu pai que deve estar com fome». E nisto, Cireneu põe nas mãos da menina dois brincos de ouro, certamente roubados numa das casas senhoriais das redondezas. O projecto inicial do filme imaginava um encontro entre a Senhora da Serra e o Cireneu. Este encontro era um ponto de partida para uma discussão em que as personagens seriam representantes de duas ortodoxias muito diferentes. Esta premissa do confronto entre ortodoxias mantém-se no filme, mas a personagem do Cireneu desapareceu, e a própria personagem da Senhora da Serra é já o resultado de uma reinvenção muito livre.
Tem uma presença muito forte no filme, a Patrícia Guerreiro. Como é que pensaste nela para aparecer no filme?
Quando eu vim para cá falei com uma amiga comum, a Leonor Noivo, que me disse que aqui muito perto vivia a Patrícia, actriz no seu filme “A Raposa”. Fui conhecê-la, falei-lhe do projecto, e ela aceitou ser a actriz do filme. Hoje é uma grande amiga e uma aliada de trabalho extraordinária. É uma actriz maravilhosa, cheia de talento, inteligente e sensível, que percebia sempre muito rapidamente tudo o que eu dizia e todas as minhas dúvidas. Sei também que este filme foi um acontecimento feliz para ela. Sou muito afortunado por tê-la sempre por perto.
A sequência final é muito forte. A montagem é muito rápida, muito acentuada. Não sei como é que chegaste até aí, se já estava pensado antes. Que são muito espaçados, os planos, ao princípio, e depois no final...
O filme é todo ele muito preparado. [João Dias pega em storyboards] Estava tudo planificado em desenhos e tem poucas coisas que resultem de descobertas na montagem. Essa sequência é filmada assim, antes de mais, porque tenho os meus pudores. Não foi fácil, querer filmar essa agressão e chegar a descobrir como a gostaria de filmar.
Mas isso nestes casos aguça o engenho, também, não é?
Sim, mas isso dizes tu. A minha responsabilidade é dizer porque é que aquilo é filmado assim, não é? Não podia fazer como nas outras sequências do filme, em que a câmara está numa escuta quieta e atenta da movimentação dos actores no espaço e das suas palavras. Não era possível fazer isso nesta sequência, porque implicava uma exposição dessa agressão com a qual não iria conseguir conviver. Procurei uma solução que trabalhasse apenas com pequenos sinais daquilo que queria encenar. Por isso se fechou o quadro e se interrompeu o fluxo do tempo, o mais possível. De tal forma que a relação com aquilo se tornasse mais distanciada, mais icónica, menos emotiva.
Mas tem muito impacto, assim feita. Aliás, acho que tem mais impacto do que se fosse filmado mesmo a...
Sim, isso eu não tenho dúvidas. Começa por uma resposta a um pudor meu, mas que não é ingénua. Não sou um cinéfilo, mas tenho uma ideia do que é a história do cinema e sei o que tem sido discutido em relação a este tipo de representações. Ver filmes foi importante para construir este. A maneira de estruturar aquela sequência estabelece uma relação com a história do cinema, com a história da montagem.
E isto agora é o teu estúdio, a Serra da Gardunha. Vais fazer mais filmes aqui?
A última coisa que queria era ir filmar para longe. E a Gardunha é bem mais do que aquilo que filmei, é vasta, há mais mistérios e paisagens, há outras Gardunhas, há outras coisas. Quero continuar com uma declinação deste cenário, mas que seja ainda este cenário.
Nas tuas entrevistas à Ana Soares, nas duas, refere-se um projecto do turismo no Algarve. Não sei se ainda queres acabar isso?
Gostaria muito. Em dez anos, de travessia do deserto, deixei alguns projectos documentais para trás, já filmados. Outros, que eram de ficção, não chegaram sequer a sair do papel. Esse, sobre a indústria do turismo de massas internacional, era um deles. Julgo que poderia agora regressar a esses filmes com uma segurança que não tinha antes. Há quinze anos atrás estaria sempre com receios. Agora só preciso das oportunidades para concretizar, como foi o caso do Senhora da Serra, que sinto como um primeiro filme. Julgo que é um filme justo, coeso, feito com meios muito humildes, mas preciso de voltar a filmar para ultrapassar aquilo que neste filme não ficou ainda bem resolvido. Há uma sensação de trabalho inacabado.
Mas também se sente sempre isso em qualquer coisa, não é?
Sim, estou a dizer uma banalidade, mas é verdadeiramente o que sinto. Há sempre um desespero…
Mas esse, para o turismo, ainda tinhas que filmar mais coisas?
Isso foi filmado há dez anos atrás, e estes últimos anos com o Costa deram-me uma noção diferente das coisas. Não no sentido de começar a seguir alguma cartilha, «Isto faz-se assim», ou «Isto não se pode fazer assim». Há quem se enrede nas cartilhas, eu fujo a sete pés. A questão é a de conseguir o domínio das matérias do cinema. Como se faz o plano? Variar as escalas, ou manter a mesma? Usar sempre a mesma óptica, ou ópticas diferentes? Como se trabalha o ritmo, como se monta? Como planificar? Dividir a cena em muitos quadros, ou cobrir pouco? Coisas muito chãs, de domínio da matéria-prima. Uma coisa de artesão. E é esse saber de artesão que eu sei que hoje domino.
Acontece que esse filme sobre turismo não está filmado como deveria de estar. Além disso, era um filme ainda muito estruturado na ideia do documentário de pesquisa, para o qual queria trazer imensas coisas. Hoje em dia percebo que o processo é inverso, quer dizer, tens sobretudo de tirar. Tirar até ficares com o mínimo que permita que o filme se possa apresentar como um filme. Há certas coisas que são evidentes, não precisas de dizer nada por cima delas. Não precisas de comentário sociológico, científico, nem mesmo poético. Nesse filme sobre o turismo as imagens deveriam falar por si, ou a montagem deveria permitir que elas falassem por si.
Nos blocos dos Encontros escolheste um filme a acompanhar a...
Escolhi o Benilde ou a Virgem Mãe, do Oliveira.
Porquê?
Tinha visto os filmes do Oliveira, anos atrás, nomeadamente naquele período em que frequentava a Cinemateca. Era um realizador que me entusiasmava, mas não como acontece hoje em dia. No último ano revi estes filmes, na verdade, de um modo algo egoísta, focado no meu interesse pessoal enquanto realizador. Já havia uma admiração pelos filmes, mas agora há também um viés. Como é que se chega àquilo, quais são os métodos, como é que se jogam aqueles elementos? De que maneira aquilo está a falar comigo? O deslumbramento é o de uma aprendizagem. É o cinema que neste momento mais preciso para fazer os meus filmes. Acho que me perdi da tua pergunta.
Pronto, porquê especificamente o Benilde?
Um filme que não cheguei a escolher, mas que ponderei, foi o Divina Comédia. Por causa do combate entre as ortodoxias, muito evidente nos diálogos entre o Mário Viegas e o Luís Miguel Cintra. Acho entusiasmante a transposição de textos teóricos para diálogos entre personagens. Isso interessa-me muito. Mas acabei por escolher o Benilde ou a Virgem Mãe. A respeito do filme do Oliveira e do texto original do Régio, convocam-se sempre as clássicas questões sobre a sexualidade latente, um cristianismo em queda, lutas entre a ciência e a teologia. Mas no Benilde há ainda uma outra coisa, que é a caracterização de um estado de solidão radical. O que me tocou no filme é sobretudo a atmosfera emocional que resulta da caracterização do isolamento da personagem de Benilde, impossibilitada de criar uma relação com o outro. Não se trata dessa solidão que desejamos para poder trabalhar. É uma solidão imposta. Violenta e frustrante. No filme, essa caracterização é muito perturbante. O primeiro acto do filme termina com Benilde a perguntar: «Padre Cristóvão, você também não se me acredita?». E o padre Cristóvão, muito perturbado – derrotado, até –, diz-lhe, «Não sei nada do que se passa. Mas acredito-te, minha filha». Este momento de ligação ao outro, que é tão importante que a leva a cair aos pés do padre, não volta a acontecer mais no filme. A partir daí, é um constante fechamento, que começa logo a seguir com o interrogatório policial da tia, que acha que a gravidez dela se deve a um puro facto mundano. E não divino. A caracterização dessa experiência de solidão foi importante para tomar decisões sobre o que eu queria do Senhora da Serra, onde está em jogo o fracasso de uma tentativa de relacionamento e de intervenção no mundo. A situação de isolamento radical da personagem. Era esse desespero que eu gostaria de conseguir representar no meu filme.
Entrevista realizada a 30 de Maio em Atalaia do Campo para o Jornal dos Encontros Cinematográficos de 2023, também publicada no site do Jornal do Fundão.
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sábado, 30 de setembro de 2023
SENHORA DA SERRA (2023)
Entre as frases que se repetem com nuances e novos sentidos no último filme de João Dias, também modelados pelos ventos e pelas sombras que se abatem sobre as suas personagens, está a pergunta “mas quando penso nos erros que cometeu ao longo da sua vida, o que faria ele se pudesse começar tudo de novo?” Não é coincidência que isso aconteça, pensando na mudança radical que o realizador e montador levou a cabo nos últimos dois anos. Abandonou Lisboa e as suas tropelias, abandonou métodos de trabalho antigos e concedeu a si próprio um recomeço artístico e pessoal nos sopés da Serra da Gardunha, em Atalaia do Campo. Quando nos falou disso e reviveu o momento, confessou-nos “uma vontade muito grande de começar outra vez. As primeiras duas ou três tentativas falharam. Tudo falhou, vinte anos sob o signo do fracasso. Agora dei-me a mim mesmo uma espécie de segunda vida. Este é o novo cenário e em breve poderei dizer que é meu, que sou de cá, e quando vou à janela da sala vejo o décor.”
A Serra da Gardunha tem uma extensão de vinte quilómetros de comprimento por dez quilómetros de largura e chega à altura de 1227 metros, situando-se entre as cidades do Fundão e de Castelo Branco. Além de abarcar a aldeia histórica de Castelo Novo, ter sido palco de rituais pré-cristãos, conter os vestígios da antiga capela da Senhora da Penha e uma escadaria que dá até ao cimo da montanha, despontam nela uma série de pedras com formas muito intrigantes e misteriosas conhecidas como as morfologias graníticas da serra da Gardunha. Descritas como blocos fendidos, de fissuração poligonal, pias ou bolas de granito, chamadas até de “padarias” ou “côdeas de pão”, têm tantas formas como a imaginação lhes quiser dar. Caras e bustos, mesas e quartos, baleias e pássaros. Até quadros de Gustav Courbet. Portanto não é surpreendente que João Dias tenha escolhido os milenares mistérios da Gardunha como tema e como casa.
E isto foi o que ele fez. Mudou-se com a companheira e o filho para uma casa na aldeia com vista privilegiada e assombrosa para a serra que ao longo dos séculos foi palco de peregrinações religiosas, políticas e bandoleiras. Mesmo ao lado de Póvoa da Atalaia, terra de Eugénio de Andrade. Convocou essas memórias lendárias e históricas, as figuras de Maria, Senhora da Serra, meninas crescidas de Alcongosta, delegados e militantes de partido, ladrões e ermitões, e reclamou a serra como o seu estúdio. Concorreu a uma bolsa de criação, conseguiu o apoio e arranjou o resto onde pôde para levar a cabo a sua produção. Graças a Leonor Noivo, realizadora de A Raposa, encontrou Patrícia Guerreiro, actriz principal desse filme que se retirara do cinema depois de trabalhar com João Botelho e Marco Martins, e fez dela a mãe de Jesus, perdida entre pedras em busca dos homens. Fê-la contracenar com Elsa Vaz, João Figueira, Vasco Rolão Preto e Lucas Melo, requisitando ainda os serviços do Coro da Soalheira e das Adufeiras do Paul.
Houve muitas tentativas teóricas e práticas, ao longo dos anos, de conciliar o comunismo e o cristianismo. Porque as palavras do Novo Testamento e a revolta de Karl Marx, no papel, não parecem de todo irreconciliáveis. As aventuras e o despojamento material de São Francisco de Assis e dos seus seguidores no século treze, contra a propriedade e contra os títulos, em comunidade itinerante e a pregar a palavra de Deus, também parecem estar de acordo com os preceitos do comunismo. No século XIX, o padre John Humphrey Noyes, influenciado pelas ideias do chamado Segundo Grande Despertar e pelas noções de “perfeição cristã” e “casamentos complexos”, fundou a comunidade de Oneida, baseada na partilha de toda a propriedade e em que todos os homens eram casados com todas as mulheres e os filhos eram de todos os membros da comunidade. Apesar de todos os erros, talvez seja possível ver nisto os germes duma mudança qualquer.
E isto foi o que João Dias fez. Sempre com a menina de Alcongosta de Elsa Vaz a garantir a cada provação de Maria que a “humanidade perdura”, sempre com a senhora da serra de Patrícia Guerreiro a passar por cada homem repreendendo-o, “com palavras que eu não conhecia, mas que Deus semeava directamente nos meus lábios,” três grandes blocos narrativos que depois se entrecruzam nos rochedos e nas florestas. Um ermitão desiludido com a humanidade que deambula pelos montes em busca da Nossa Senhora e passa a ser o seu emissário. Um ladrão só com certezas que renuncia a toda a espiritualidade trocando-a pela carne e pelo que é palpável, concreto e imediato. Um grupo de comunistas que discute o futuro do seu partido e um delegado que, com as certezas ditadas pela sobrevivência política, só parece ter dúvidas. Filmados do raiar do dia ao cair da noite escura, pautados com canções e ritmos populares a solo ou em coro, introduzidos e encerrados pela lembrança da pequena máquina que os anima – o cinema – sobre os genéricos.
Se tudo nos é negado, o que fazemos? A resposta de alguns, perseguidos pela autoridade mas abraçados pelo povo, foi renegar quem os negava. Fizeram o que não temos coragem ou desespero suficientes para fazer e simbolizaram a revolta e o tumulto interior de multidões reprimidas pelas chagas e pelas amarras do poder. Talvez fossem bastante menos como seres humanos do que aquilo que os fizemos ser – mitos – mas levaram nomes como Robin dos Bosques, José do Telhado, Jesse James, Corisco, Billy the Kid, Dadá, Jacques Mesrine, Lampião, Calamaty Jane, Ned Kelly, Claude Duval, Mary Frith ou Pancho Villa. E, na serra da Gardunha onde tudo conflui, Cireneu. Eles são o que quiçá nem o cristianismo nem o comunismo puderam prever ou controlar, a hipótese de dar corpo aos cânticos negros e ser uma peça solta na engrenagem, andar à vara larga do livre arbítrio sob pena de morte, não papar grupos nem partidos. Não acatar doutrinas. Baseado talvez nestas figuras, João Dias representou-as com o ladrão que anuncia a chegada do novo homem.
E isto foi o que ele fez: enquadrou as suas personagens de forma trabalhada nos seus rochedos amórficos, usando o movimento e o espaço e os olhares dos actores como instrumentos para refazer esses enquadramentos, como na dança e discussão a três pela serra acima que culmina com o colapso de Maria. Filmou as árvores a balançar com o vento como se dum cataclismo incógnito se tratasse, encerrando em mistério e em elipse o plano daquela mão que se envolve no branco das roupas de Maria, meros planos à frente disposta a iniciar a revolução com sangue. E há uma repetição kuleshoviana das árvores ao vento, agora por definição com um novo significado. Fez de adufeiras um coro grego que comenta uma violação com ritmos primordiais e pagãos, fechando o quadro e a própria acção para não vermos nada mas sentirmos tudo. Antes de fazer cair a noite profunda mais profunda e sacar aquele que é provavelmente o mais belo plano do seu filme: o de Elsa Vaz encostada ou diluída na pedra dando finalmente corpo à voz hipnótica que nos tinha vindo a garantir ao longo destes sessenta e sete minutos que a vida continuava e que nós continuávamos, mas à qual ainda não tínhamos associado um grande pesar e um grande luto. A realização de que não houve nada mais justo nem mais triste do que descobrir um dia há milhares de anos que é possível dizer “isto é meu.” E que esse paradoxo talvez seja irresolúvel.
texto escrito para o Jornal dos Encontros Cinematográficos de 2023, também publicado no site do Jornal do Fundão.
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domingo, 27 de agosto de 2023
SOBRE MICKEY ONE
Arthur Penn terá realizado apenas um bom filme, e um muito bom, um daqueles que o amigo Daney qualificava de grande filme doente, e que valem centenas de filmes demasiado salubres, compatíveis à partida com a ideia que fazemos deles. Chama-se Mickey One, e é inesquecível. Excessivo, estilizado, falhado, felliniano, lírico, irregular, Mickey One não se deixa esquecer. Anos mais tarde, continua a bater à porta da memória. Primeiro pela sua sublime banda-sonora: Eddie Sauter/Stan Getz na música, o que já não é pouco, são o clássico e o barroco que se conjugam num só fôlego, num apenas; não há volta atrás. Ghislain Cloquet na fotografia, noutras palavras o preto e branco imaculado de um tempo em que também o cinzento, toda a gama de cinzentos, existia. Um guião intimamente ligado aos seus actores (ou o contrário, já não sabemos). E ainda tantas outras coisas, indizíveis. Mickey One é um apelo veemente à paranóia, ou antes um apelo da paranóia, ardente, febril, que ocupa o tempo dum filme com o corpo de um comediante de stand up prestes a enlouquecer (Warren Beatty no seu melhor papel). O que é que o agita, a Mickey? Será mesmo perseguido (em certos momentos, duvida-se) pela máfia (na pessoa do misterioso Hurt Hatfield - 1918-1998 -, o actor genial de O Retrato de Dorian Gray de Albert Lewin, e sobretudo de O Diário de Uma Criada de Quarto, uma das obras-primas americanas de Jean Renoir).
Raramente os sintomas, digamos para sermos rápidos os de Lenny Bruce ou de Phil Spector, foram tão bem encarnados. O regresso violento, o ódio de si próprio, o medo de si próprio… está tudo em Mickey One. Será verdade? Não sei nada, mas todo o ser humano minimamente honesto (que não tenha demasiado medo de si mesmo) reconhecer-se-á aqui.
PS. Arthur Penn fez treze filmes. Esqueçam os outros doze. Esqueçam The Left Handed Gun (1958), a sua primeira longa-metragem torturada com tiques do Actor’s Studio, com um Paul Newman medíocre e epiléptico. Esqueçam O Milagre de Anne Sullivan (1962), melodrama hiper-realista igualmente embebido de tiques expressionistas. Esqueçam The Chase (1966). Esqueçam o demasiado célebre Bonnie e Clyde (1967), clipe demasiado longo cheio de poses e de languidez. Esqueçam Alice’s Restaurant (1969), com o deplorável Arlo Guthrie, que envelheceu tão mal, O Pequeno Grande Homem (1970), com o medíocre do Dustin Hoffman, ou Night Moves (1975), ou Missouri Breaks (1976), ou Quatro Amigos (1981), ou ainda Target (1985). Esqueçam todos estes filmes demasiado teatrais, demasiado trabalhados, demasiado preparados, para reter de Arthur Penn apenas este estranho Mickey One, OVNI americano com aparência de experimentação da Nouvelle Vague, cuja versão final parece ter sido literalmente massacrada no seu lançamento, em 1965.
PS 2. Ouçam os dois inéditos dum mestre esquecido do rockabilly, Billy Lee Riley, que acaba de morrer, publicados pela Bear Family. Era um dos ídolos de Dylan, que tinha recuperado o seu muito actual "Reposession Blues", e que o tinha encorajado a voltar aos palcos. Ouçam também o último Robert Wyatt, "For The Ghosts Within". A versão dele de "What a wonderful world" é uma maravilha absoluta.
in «club skorecki», publicação de 14 de Outubro de 2010.
O MILAGRE DE ANNE SULLIVAN (1962)
Antes de ser filme, “The Miracle Worker” foi um episódio da mítica série de antologia “Playhouse 90” (difundida entre 1956 e 1960 na CBS e onde se revelaram talentos como Robert Mulligan ou John Frankenheimer; no episódio, os papéis de Anne Sullivan e Helen Keller couberam a Teresa Wright e Patricia McCormack, respectivamente), bem como uma peça de teatro estreada com as depois duas actrizes do filme, Anne Bancroft e Patty Duke, nos mesmos papéis. Tanto o episódio de televisão, como a peça, tiveram por trás as forças criativas de William Gibson, autor dos guiões, Arthur Penn, como realizador e encenador, e Fred Coe, como produtor.
A história de Anne Sullivan e Helen Keller é conhecida. São crianças do século XIX e conheceram-se porque os pais da segunda, já bastante desesperados, e depois de lerem sobre a educação de Laura Bridgman, também surda e cega como a filha deles, consultaram um especialista em Boston para os aconselhar. Este encaminhou-os para Alexander Graham Bell, que na altura trabalhava com crianças surdas. E este encaminhou-os para a Perkins School for the Blind, que lhes mandou Anne Sullivan, então com vinte anos. Helen Keller tinha seis. Depois daquilo que foi descrito por quase toda a gente como “um milagre”, e numa altura em que o foco era mais sobre Keller e menos sobre Sullivan, Mark Twain entregou uma fotografia a Annie Sullivan em que lhe chamava “milagreira”[1]. O título da obra de Gibson, Penn e Coe é daí retirado.
Saído da televisão, que nessa altura era um campo de experimentação e ensaios fabuloso para quem começava a trabalhar e para quem acabava a carreira, e no rescaldo da estreia da peça na Broadway, Arthur Penn era a escolha óbvia para realizar o filme. E ao realizá-lo, foi-se apercebendo instintivamente dos ajustes que tinha de fazer na transposição para cinema por forma a continuar a servir a estória e as interpretações. Os casos sintomáticos talvez sejam mesmo os dois grandes embates provocados pelas birras de Helen Keller à mesa. No primeiro, a câmara segue os movimentos abruptos das duas, culminando nas panorâmicas frenéticas que acompanham Bancroft a puxar Patty Duke violentamente para a cadeira, enquanto os planos se sucedem quase disparados para ilustrar a grande tensão entre a educadora e a sua discípula; no segundo, a montagem é mais pausada e os movimentos de câmara adequam-se ao crescendo da grande revelação e descoberta individual que equipara o signo ao significante, e que transforma a linguagem no instrumento dos nossos sonhos. A descoberta colectiva de que, afinal, não são só para quem ouve e para quem vê. Os tropeções, as chapadas, as quebras, os balbucios, os gritos, os toques e os empurrões equiparam-na a uma luta de vida ou de morte para atravessar o vale do silêncio e da escuridão.
Houve quem acusasse Penn de ser demasiado barroco e expressionista, neste filme, mas se calhar foi só expressivo. Quando as personagens e os actores abrem o caminho, talvez não se possa ficar só atrás a assistir, é preciso arriscar estar errado, assumir as consequências, ir com eles até ao fim dum gesto inaudito e por mais desconfortável que este seja, esperar que seja lá que resida o princípio de todas as coisas. O berço da linguagem. A palavra inaugural.
[1] Nas margens da fotografia de Samuel Clemens a fumar um cachimbo sentado, e além da assinatura, consegue-se ler “To Mrs. John Sullivan Macy with warm regard & with limitless admiration of the wonders she has performed as a miracle-worker.”
folha de sala escrita para a 284ª sessão do Lucky Star - Cineclube de Braga, a propósito do ciclo "Sou do Tamanho do que aprendo", 7 a 28 de Março de 2023.
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terça-feira, 14 de março de 2023
TRÊS MILAGRES
“Sempre que me meto com esta estória,” diz o autor de The Miracle Worker, “sinto que estou na presença de qualquer coisa de sobrenatural.” A peça de William Gibson foi celebrada durante meio século como uma fábula de amor, devoção e compreensão. Começou na televisão, foi um triunfo nos palcos, e tornou-se um clássico no cinema antes de se retirar para o reportório dos departamentos de teatro dos liceus. Aquilo que geralmente não se sabe é que a estória de Annie Sullivan e Helen Keller começou a vida como um ballet.
Começou quando Gibson andava a encenar peças com pacientes no Riggs Center em Stockbridge, no Massachusetts, onde a esposa, a psiquiatra Margaret Brenman-Gibson, fazia parte da equipa. “Nessa altura, nós tínhamos um menestrel folk que se chamava Richard Dyer-Bennett,” afirma Gibson. “Ele e a mulher, Mel, apareceram—ela era dançarina, só que tinha tido algum tipo de acidente com a perna portanto estava reformada. She was a very uma miúda esperta. A Margaret dizia que ela era uma bruxa porque conseguia olhar para a forma como as pessoas se mexiam e tinha um retrato psicológico dessa pessoa. A Margaret pediu ao Riggs para contratar a Mel como fisioterapeuta como parte do programa de actividades. Eu tinha um grupo de teatro, e pensei que podíamos fazer um serão original de actos únicos. Achei que conseguia arranjar um guião para a dança.”
Anos antes, Gibson tinha-se deparado com uma colecção das cartas que Anne Sullivan tinha escrito para casa em Boston quase todos os dias quando estava em Tuscumbia, no Alabama, a tentar educar a jovem Helen Keller. Keller tinha-se tornado mundialmente famosa por superar a surdez e a cegueira que a tinham atingido na infância. Mas pouca a gente sabia que tinha sido Annie Sullivan, uma licenciada de vinte anos do Perkins Institute for the Blind em Boston, ela própria com dificuldades de visão, a tornar-se a educadora de Keller.
Gibson leu The Story of My Life[1] de Helen Keller pela primeira vez na escola primária, sem saber que a maior parte do manuscrito tinha sido suprimido. “O livro verdadeiro,” descobriu ele mais tarde, “consistia de três grandes secções: a primeira era a Story of My Life de Hellen; a parte do meio era um ensaio longo de John Macy[2] sobre as técnicas pedagógicas de Annie Sullivan na educação de Helen Keller; a terceira secção eram todas as cartas que Annie tinha escrito para o Perkins Institute. Não sei se alguém terá os materiais para desmentir isto, mas isto foi editado por John Macy, que era um homem letrado, portanto o livro deve ter sido ideia dele. E isso quer dizer que estas cartas, que são perpetuadas neste livro, tinham passado pelas mãos dele. Ora, pode-se lembrar de um escândalo em que se revelou que as cartas entre Sacco e Vanzetti talvez tivessem sido escritas por um jornalista de Boston. Para mim, é pouco provável que as cartas [de Sullivan] sejam puras. O John deve ter ‘ajudado.’ Mas retratam uma rapariga extraordinária numa estória extraordinária.”
Aqui Gibson—um irlandês negro esguio que favorece a frontalidade—amolece. “Pensei várias vezes,” diz ele, quase relutantemente, “que a única prova na minha vida que me convence que existe um Deus é esta estória. Aqui temos esta criança aleijada em Tuscumbia—aqui temos esta jovem aleijada, com vinte anos, em Boston—e são precisas estas duas meias-vidas para fazer uma vida. Isto não podia ter acontecido se não fosse a intercessão de Jeová, certo? Isto veio tudo dessas cartas, quer sejam da Annie ou não. E os factos da vida dela são extraordinários, portanto eu acredito nas cartas. Foi isso que me motivou.”
Sem The Miracle Worker, poucos iriam saber da contribuição de Sullivan, mas o triunfo de Keller sobre a adversidade continuava a fazer da sua a melhor estória. Efectivamente, como notou Annie causticamente quando aceitou um grau honorário da Temple University em 1932 e a imprensa se amontoou em torno de Helen, “Mesmo na minha coroação, a Helen é a rainha.”[3]
Helen Adams Keller nasceu a 17 de Junho, 1880, na herdade do seu pai em Tuscumbia. O pai, o Capitão Arthur Keller, tinha feito parte do exército da Confederação, e a mãe, Kate Adams, era da família de Robert E. Lee. É desconhecida a enfermidade exacta que privou a rapariga da vista e da audição aos dezanove meses—as fontes sugerem meningite, escarlatina, ou difteria—mas o pai estava prestes a interná-la numa instituição quando a mãe assumiu o comando. Os Kellers—graças à intervenção de um médico de Baltimore e mais tarde de Alexander Graham Bell—entraram em contacto com a Perkins School em Boston. O director da escola, Michael Anagnos, sugeriu a recém-licenciada Annie Sullivan como a professora indicada para Helen, que tinha acabado de fazer sete anos.
Aos vinte anos, Annie Sullivan já era uma sobrevivente. Quando tinha cinco anos apanhou tracoma, uma infecção crónica que marca progressivamente a córnea a cada reincidência dolorosa. Pela altura em que fez oito anos a mãe tinha morrido, e quando o pai, Thomas, não a pôde suportar a ela e ao irmão, Jimmie, ele entregou-os aos dois a uma casa de correcção em Tewksbury, no Massachusetts. Jimmie morreu no espaço de três meses, deixando Annie não apenas perturbada mas também desamparada, porque ele era os olhos dela.
Quando tinha catorze anos, Annie assumiu o controlo do seu próprio destino. Alguns membros de uma comissão de estado tinham ouvido falar de condições na Tewksbury Almshouse, e durante a visita, Annie andou atrás deles. Quando estavam prestes a sair, abriu caminho até ao inspector-chefe e anunciou—há quem diga que exigiu—“Eu quero ir para a escola!” Numa resposta compreensiva rara ao pedido de uma jovem sob a tutela do Estado, a Bay State inscreveu-a em Perkins. Aí teve uma cirurgia ocular que lhe melhorou a visão ao ponto de ser capaz de ver texto. Quando chegou o pedido dos Kellers, Anagnos sabia que a aguerrida Sullivan seria a pessoa ideal para ajudar Helen. Em Março de 1887, enviou-a para Tuscumbia e para o encontro que mudaria inúmeras vidas.
Gibson ficou fascinado com as cartas que Sullivan escreveu a Anagnos durante o seu período com Helen. Considera o dramaturgo, “foi como tirar doces a uma criança; a acção estava toda traçada nas cartas de Annie.” Os direitos para as cartas de Annie, no entanto, eram controlados pelo biógrafo dela, Nella Braddy Henney, um editor na casa de publicação Doubleday. Gibson enviou Seesaw para Henney, e Henney, impressionado, desimpediu os direitos.
O momento foi fortuito; o ordenado combinado dos Gibson no Riggs estava-se a revelar insuficiente, portanto o escritor fez uma chamada apressada a Arthur Penn em Nova Iorque, onde este realizava "Philco Playhouse", para perguntar se a NBC precisava de material. Quando Penn disse que sim, Gibson enviou a dúzia de páginas de notas que tinha escrito para o bailado Dyer-Bennett que não se produziu. Intrigado, Penn juntou-se a Gibson, e delinearam juntos uma estrutura. Penn: “Eu dizia, ‘Aqui vamos parar para intervalo’ e ‘Aqui vamos parar para intervalo’ e inevitavelmente, como resultado de o adaptar aos requisitos da televisão, emergiu uma forma que era essencialmente uma peça em três actos, só que era em cinco ou seis actos para a televisão.” Os homens conceberam dois dispositivos narrativos que, embora simples, são apropriados: utilizar as cartas de Annie para Anagnos, e ter Annie a falar para si própria com a garantia de que a criança surda não a consegue ouvir.
Penn conseguiu um adiantamento de $500 para Gibson e entregou orgulhosamente as páginas à NBC. “E depois,” suspira Penn, “eles disseram, ‘Nã; quem é que vai ver uma peça sobre uma rapariga cega e muda?’ Portanto eu disse, ‘Bom, vão-se foder—vou à CBS.’ A mesma resposta! Foi só na altura em que Martin Manulis teve o "Playhouse 90" e houve uma inteligência muito mais luminosa e mais receptiva e disse, ‘O que é que tens?’ que eu lha enviei e ele pegou nela.”
A opção de $500 mudou para $10,000 assim que Manulis deu luz verde ao projecto, e Gibson viajou para a costa para rever o guião, consistente com o processo colaborativo de Penn e com a política pró-escritores de Manulis. A produção iminente forçou Penn e Gibson a focarem-se finalmente sobre aquilo que a peça era realmente. Acima e para além do óbvio—de que “o seu trabalho na vida era redimir uma vida perdida,” como Gibson o coloca—também era, de forma mais importante, constatou ele, sobre o poder que vem da linguagem. Sendo-lhe negada, Helen ficava isolada; sendo-lhe ensinada por Annie, ela ressurgia. Por isso mesmo é essencial ver (como muitos não vêem) que The Miracle Worker é sobre Annie Sullivan, e não Helen Keller. “De outro modo,” brinca Gibson, “chamar-se-ia The Miracle Workee.”
Gibson aprendeu rapidamente os truques da televisão ao vivo, como estender uma cena entre intérpretes secundários para que a personagem principal pudesse correr pelo estúdio para a próxima cena começar, permitindo por vezes uma mudança de guarda-roupa durante o percurso. “Tal como para montar uma peça de teatro,” compara ele, “o período de ensaios era-me muito familiar, mas a mecânica física efectiva de os filmar era bastante recente. O Arthur estava sentado na sala de controlo a falar com os tipos das câmaras. Lembro-me que uma vez era suposto alguém subir um lance de escadas e o Arthur disse, ‘Falhámos!’ A câmara não tinha chegado lá a tempo. A televisão ao vivo era assim; era muito empolgante.”
Ciente da simbiose entre "Playhouse 90" e Hollywood, Manulis escolheu Teresa Wright para o papel de Annie Sullivan e Patricia (Patty) McCormack, que tinha interpretado de forma memorável a personagem titular no filme de 1956 The Bad Seed, para o de Helen. “Tinha onze anos,” diz McCormack, que continuou a representar, “o que foi resultado de ainda parecer uma criança. Logo no ano seguinte, mudou tudo em mim, e parecia uma jovem mulher. Patty [Duke, que interpretaria Helen nos palcos e no filme] na verdade é um ano mais nova do que eu, mas é minúscula, portanto nessa altura podia fazer de menina para sempre.” (Duke tinha quinze anos quando fez o filme.)
McCormack nota que este "Playhouse 90" era diferente de outros em que apareceu. “Nós começámos antes do período normal de ensaios porque aprendemos linguagem gestual. Também rodámos [em película] galinhas a chocar numa quinta.” Indo para o ar a 7 de Fevereiro de 1957, o programa também era protagonizado por Katharine Bard (Sra. Manulis) como Sra. Keller; Burl Ives como o Capitão Keller; John Barrymore Jr. como o irmão de Helen, James; e Akim Tamiroff como Anagnos. Logo no início, Penn coloca o espectador ao ponto de vista de Helen enquanto os pais e o doutor se debruçam sobre o berço dela maravilhados com a forma como ela recuperou da sua misteriosa febre cerebral. Mas não; os Kellers descobrem depressa que a filha deles nem sequer consegue ouvir os gritos deles ou ver um candeeiro agitado diante dos seus olhos. “Ela não te consegue ouvir!” lamenta-se a Sra. Keller. Combinado com um efeito de íris para baixo que estrangula o plano, é um começo económico e aterrador que nunca dá tréguas.
Não é muito frequente que um programa de televisão, agora visto apenas em cinescópio rudimentar nos museus, retenha a sua força meio século depois de ir para o ar, só uma vez, a 7 de Fevereiro de 1957, mas The Miracle Worker mantém-se à altura. “Foi um enorme sucesso,” nota Penn. “Por uma das primeiríssimas vezes a CBS recebeu um volume de chamadas de todo o país sobre o programa.”
É instrutivo constatar que a produção altamente competente não era inusitada, mas antes o nível normal de profissionalismo para os programas das cadeias de televisão da altura. Para as pessoas que trabalharam nele, The Miracle Worker era apenas outro trabalho.
Mas não por muito tempo. Seis meses depois de Two for the Seesaw estrear e de Henry Fonda deixar o espectáculo, Penn e Gibson ficaram exultantes quando viram que a descoberta deles, Anne Bancroft, era capaz de carregar a peça sozinha. Tinha-se tornado uma estrela. Isto agradou a Gibson que, enquanto Seesaw estava em digressão para ensaios, chamou Penn de parte e anunciou-lhe que ia transformar The Miracle Worker numa peça de teatro. A resposta céptica de Penn foi “Estás maluco da puta da cabeça. O clímax da tua peça são duas mãos num palco grande, como é que vamos projectar o sentido disso para o público?” Gibson tranquilizou-o, “Confia em mim.”
Veio à tona outra razão para o entusiasmo de Gibson quando Penn descobriu que o dramaturgo já tinha oferecido o papel de Annie a Bancroft: tinha ficado embeiçado por ela. “Estava de certa forma apaixonado pela Annie [Bancroft],” admite ele. “Nunca tivemos nenhum caso, mas tínhamos uma espécie de ligação intelectual que era como um caso, mas intelectual—e eu assimilei isso.”
Coe foi contratatado como produtor, e a equipa de Seesaw ficou completa. Então surgiu outro problema. Gibson contou: “Quando Anne deixou Seesaw e foi directamente para os ensaios para The Miracle Worker, interpretou Annie Sullivan como se fosse Gittel, e eu disse ao Arthur, ‘Cometi um erro terrível.’ E ele disse, ‘Eu trato do assunto.’ Deu-lhe uma pronúncia irlandesa, um sotaque, que Annie Sullivan não tinha. Mas agora a Annie Sullivan tem um sotaque pelo mundo inteiro porque o Arthur estava a tentar livrar-se da Gittel em Anne Bancroft.”[4]
A escolha de Patty Duke, que iria ser lançada para a fama com a peça, começou com um encontro pro forma no escritório de Penn. “Nós sentámo-nos e ele quis saber o que é que eu sabia sobre Helen Keller,” escreveu Duke na sua autobiografia. “Bom, o pobre homem, disse-lhe logo tudo o que havia para saber. Parecia ser uma criança extraordinariamente articulada que sabia tudo sobre frustrações e psiques e tudo o mais. Ele não fazia ideia de quão intensamente me tinha andado a preparar para essa questão durante um ano e meio. Ele perguntava-me, ‘O que é que dirias se fosses Helen Keller’ e eu retornava com ‘Não dizia nada.’ Penn provavelmente estava a pensar, ‘Esta miúda foi bem programada.’ Era caloroso e encantador e eu já tinha uma paixoneta por ele.
“Depois de uma audição e duas chamadas, chegou o telefonema: ‘Okay, mas se ela crescer mais duas polegadas está fora.’”
Duke admitiu a sua paixoneta de adolescente. “Achava que ele era simplesmente o homem mais elegante e mais atraente de sempre. Até adorava as roupas que ele vestia: calças caqui e uma camisa branca, e a forma como se apoiava com os sapatos de ténis brancos com um pé um bocado virado.[5] Passava por mim e o meu pequeno coração palpitava em absoluto. Eu costumava estragar tudo só para que ele viesse falar comigo e dar-me um bocado mais de direcção.”[6]
Duke reparou que Penn usava sussurros e humor delicado (“Duke, tu não és má para uma rapariga”) para a ajudar a encontrar a personagem e ganhar confiança. Pela estreia de 19 de Outubro de 1959 no Playhouse Theatre de propriedade independente (tal como a NBC, os dominantes irmãos Shubert não achavam que uma peça sobre uma rapariga muda e cega pudesse vender), Duke e Bancroft eram grandes amigas e perfeitamente compatíveis. The Miracle Worker desfrutou de uma carreira de vinte e um meses e 719 representações.
A peça de teatro transforma poderosamente o drama televisivo numa experiência imediata e intimista. Depois do seu prólogo angustiante a história salta seis anos em frente para encontrar Helen como uma criança selvagem mimada pela família. Numa última acção para evitar o internamento num asilo, a mãe dela contrata Annie Sullivan, cuja vista foi recentemente recuperada, como professora de Helen. Annie assume o comando, para grande irritação do pai de Helen, e exige controlo absoluto sobre a rapariga altamente resistente. Num jantar de família em celebração da proeza de Helen em comer com uma colher e em dobrar o guardanapo—algo que Annie suspeita ter sido aprendido mas não entendido—Helen reverte de forma teimosa, e Annie limpa a sala de jantar. O confronto da “cena da mesa” transformou-se num evento celebrado todas as noites entre duas actrizes empenhadas, Bancroft e Duke.
“Leva nove minutos—a maior parte das noites levava nove, por vezes talvez dez, às vezes onze—o que era a determinação total da oposição,” recorda o realizador. “É aí que se entra mesmo no cerne da coisa. A coreografia segue das profundezas da intenção e da intensidade, e o posicionamento no palco é interessante. Nessa cena, a Annie expulsa a família inteira. Fica sozinha com Helen. Eu tinha esta mesa enorme que tinha acomodado seis ou sete ou oito pessoas, agora apenas com duas pessoas. Dei-lhe início com a Anne a encarar o público, e parecia simplesmente flácido, sabes. E pensei, ‘Espera um minuto, espera um minuto, assim estou a falar sobre o público. Deixem-me falar sobre elas as duas.’ Portanto pus a Anne de costas viradas para o público. Helen começava ao lado dela. A Helen recusava-se a comer devidamente e arrastava-se para baixo da mesa, e a Annie ia a correr, apanhava-a, trazia-a de volta, e isso deu-nos uma espécie de energia elástica que fazia a cena andar. Se fôssemos capazes de ver as expressões todas desde o primeiro momento, isso iria revelar demasiado. Tínhamos de estar naquele modo do ‘Como é que resolvo esta?’, e a melhor forma era não ver a Annie a criar soluções. Ela observava simplesmente aquela criança, e se atirasse o guardanapo ao chão agarrava nele e punha-o no sítio. O Bill escreveu essa cena com muito cuidado. O crédito total para essa cena vai para ele. Ainda por cima, tivemos a bênção destas duas actrizes mesmo fantásticas, e elas não poupavam esforços nenhuns. Andaram com negras e feridas durante grande parte do tempo. Nunca faziam a mesma coisa duas vezes—nunca! Aquele pequeno arremesso subtil do guardanapo. Aquilo é uma pequena insurreição. Como é que vai ser respondida? E esse é o começo do final da peça.”
É no penúltimo momento que, nas palavras de Gibson, “acontece o milagre.” Testando mais uma vez a têmpera de Annie, Helen esvazia de forma desafiadora um cântaro com água. Em resposta, Annie arrasta-a para a bomba no jardim para a voltar a encher. Enquanto Helen espera que o líquido corra, recorda-se subitamente das profundezas da memória de uma palavra que disse antes da doença lhe reclamar a audição: “waa-waa.” De forma milagrosa, liga o conceito do alfabeto que Annie lhe tinha andado a soletrar na mão com a realidade do mundo em seu redor. Em pouco tempo está a arrastar Annie ao longo do pátio a absorver a linguagem a velocidade relâmpago: Chão. Bomba. Degrau. Treliça.
“Sra. Keller! Sra. Keller!” grita Annie, chamando os pais de Helen, “ELA SABE!” Helen corre até aos braços da mãe enquanto se chega a Annie para a palavra: “M-Ã-E.” Depois até ao pai para Annie soletrar “P-A-P-Á.” Finalmente Helen aponta para Annie, que soletra, “P-RO-F-E-S-S-O-R-A.”
O público respondeu com lágrimas e aplausos, e The Miracle Worker foi um triunfo da Broadway. Nos Tonys de 1960 no Hotel Astor a 24 de Abril, sentado na mesa de Helen Hayes, Arthur Penn venceu o prémio para Melhor Direcção. Aceitou, dizendo sucintamente, “Sem polimentos, muito obrigado a todos.” Também aceitou o prémio de William Gibson para Melhor Peça com um gracioso “Queria que este fosse mesmo o meu prémio. É para William Gibson que não pôde estar cá esta noite, mas ele pediu-me para expressar um pensamento, que era que não podia certamente aceitar este prémio sem expressar primeiro a sua grande dívida para com as duas pessoas que realmente viveram o drama: Annie Sullivan e Helen Keller.”
Anne Bancroft ganhou o prémio de Melhor Actriz numa peça de teatro, dizendo, “Há três razões porque acho que mereço isto, e elas são Fred Coe, Bill Gibson e Arthur Penn.” John Walters também ganhou o prémio de Melhor Técnico de Palco, e Patty Duke recebeu um Tony como Helen. George Jenkins foi nomeado como cenógrafo.
No entanto, é como filme que The Miracle Worker perdura de forma mais memorável. Como reentrada ponderada de Penn para os filmes, a sua produção fornece uma pista em relação a como afirmava o seu poder sobre um sistema que iria manter sempre a uma certa distância.
É também a única ocorrência em que o mesmo realizador orientou o mesmo material através de três meios diferentes, ajustando a sua visão para acomodar cada um deles e obtendo sucesso em todos no final. Isto é possível, disse Penn vivazmente à Variety enquanto se rodava o filme, “se se tiver um bom conteúdo e tempo de descanso entre as várias versões para trabalhar noutros projectos.”[7]
O filme não era um dado adquirido. A boa notícia era que a United Artists estava interessada. A UA desfrutava do respeito dos cineastas porque lhes permitia fazer os seus filmes à sua maneira assim que a administração tivesse dado luz verde à produção. A má notícia era que a luz verde da UA especificava que Anne Sullivan devia ser interpretada ou por Elizabeth Taylor ou Audrey Hepburn.
“Por essa altura,” diz Penn, “o Bill e o Fred e eu dissemos, ‘Escolhemos a Bancroft.’ A UA disse, ‘Oh, não, isso é impossível.’ Nós resistimos. O Bill foi firme como uma pedra. Aceitou menos dinheiro—consideravelmente menos—e nós resistimos por ela.” A lealdade de Gibson a Bancroft era igualada pela sua lealdade a Sullivan e a Keller, que ainda estava viva (morreu em 1968 com oitenta e sete anos de idade). Para fazer o filme à sua própria maneira, o trio montou a Playfilm Productions e rejeitou as escolhas da UA de Taylor ou Hepburn, pelas quais o estúdio teria garantido $2 milhões. Com Bancroft, a oferta caiu para $500,000.[8] O financiamento modesto tornou-se um problema, como Penn revelaria mais tarde num seminário do American Film Institute: “Quando excedemos, efectivamente, o orçamento muito modesto mesmo por uma pequena margem, as primeiras verbas saíram dos nossos salários ao ponto da Annie, o Fred Coe, e o Bill Gibson e eu, cada um de nós, penso eu, acabarmos com metade do salário para fazer o filme. Os salários não eram maus de início—eram $75,000 para cada um—acabámos com $37,500.”[9]
O filme foi rodado em Middleton, Nova Jérsia, e no Big Sky Ranch em Simi Valley, na Califórnia, cuja combinação fez as vezes de Tuscumbia, com interiores no Hyde-Brown Studio na Twenty-third Street na baixa de Manhattan. A rodagem não decorreu sem algumas tensões, principalmente dentro do realizador, que ainda carregava as cicatrizes de ver The Left Handed Gun arrancado das mãos. No entanto, nesses três anos em diante, esse filme tinha conquistado reconhecimento na Europa e ele tinha desfrutado de cinco êxitos na Broadway, portanto sentiu-se seguro em desafiar os limites cinematográficos com The Miracle Worker.
“Onde tínhamos vozes no palco vindas do passado de Annie,” descreve ele, “eu agora queria algo visualmente equivalente. Foi feito através de um processo muito complicado. Ampliámos a imagem até ao ponto em que a emulsão se decompunha até mal se discernir uma figura. Tínhamos que a ampliar trinta e duas vezes, portanto, para filmar um grande plano, utilizámos uma lente muito ampla do outro lado do estúdio e cortámos um ponto numa matte à frente do nosso visor, e esse ponto foi o que nós usámos. Sabíamos que esse ponto iria eventualmente preencher o ecrã quando o ampliássemos até essa altura. Construímos uma série de mattes para conseguir este plano ou aquele plano, e ampliávamos tudo para onde a imagem estava prestes a desaparecer.”[10]
Tal como na Warner, a equipa da Playfilm também precisava de persuasão ocasional. “Eu aparecia para um plano e dizia, ‘Aqui vamos estar com uma dolly mas eu quero um braço giratório... ’
“‘Oh, não pode fazer isso, senhor.’
“‘Porquê?’
“‘Simplesmente não se faz; punha o público maluco.’
“‘Vamos pô-los malucos. Vamos fazer isso.’”
Como resultado, The Miracle Worker torna-se a obra mais comovente de Penn. No entanto, traduzir a catártica “cena da bomba” para cinema, a princípio, angustiou o realizador. “Tinha-a visto uma centena de vezes em teatro,” explica ele, “e arrasou-me sempre ver que o público inteiro ficava em lágrimas. Quando a fui rodar, pensei, ‘não te precipites. Puxa a câmara para trás tal como estava. Mostra-nos a acção toda e vai estar distante—como estava no teatro.’
“Portanto fazemos isso, e eu consegui ver as rushes, e ficou terrível. Absolutamente terrível. Algo com que estava tão familiarizado como qualquer pessoa pode estar. E eu pensei ‘Porque é que ficou terrível?’ Porque nos pressionava para um papel de espectador em vez de um papel de participante. Aquilo que eu percebi nessa altura, pela primeira vez, foi que tinha de entrar e fragmentar aquele acontecimento. A mente de Helen, o rosto de Helen, o rosto de Annie, as reacções de Annie, ver qualquer coisa no rosto de Helen, água a pingar para a mão da criança, outro movimento na direcção dela, et cetera—fazer disso uma espécie de ‘quadros rebentados.’[11]
“Portanto voltei no dia seguinte e disse, ‘Amigos, vamos a isto. Vamos talhar isto em todos os momentos sensórios e vamos filmar isso por si só.’ Tínhamo-lo filmado originalmente num plano de cobertura em que ela atirava a jarra fora e dizia, ‘Waa-waa.’ Depois iam directas para o chão. Essencialmente, essa foi a experiência cinematográfica que me ensinou mesmo alguma coisa sobre filmes.”
Penn e o director de fotografia Ernesto Caparrós decidiram que os espectadores deviam ficar com Annie e Helen movendo a câmara com elas à medida que descobrem o mundo através dos sentidos recentemente despertados de Helen. “Quando voltei para a rodar novamente a equipa estava à volta em pé e começaram a chorar,” diz Penn. “Esta equipa dura. Houve lágrimas, e por essa altura Caparrós percebeu que isto talvez se fosse tornar nalguma coisa. Quer dizer, estavam homens crescidos ali a chorar. De repente o Ernie, um cubano bastante cínico, teve a ideia—Prémio da Academia!—e desse momento para a frente foi, ‘Oh, tenho de iluminar as chombras—chiaroscuro.”[12]
O montador Aram Avakian não só fez questão de ler o guião como de assistir às sessões de leitura para ganhar uma percepção mais orgânica do projecto. Ele lembrou que “Patty, então com 14 anos, como Helen Keller, tem apenas uma fala, ‘Wa-wa . . . ’ mas seja como for está presente. Ela preenche os pequenos papéis, de pessoas mais velhas, às vezes com sotaques carregados, uma grande mímica, e entre estar deitada ou sentada no chão, passando por exercícios incríveis, nunca ociosa, ocupando-se com tarefas físicas difíceis, com as pernas torcidas por baixo da anca, enlaçando as botas altas dela literalmente por trás das costas, os olhos cegos dela a fitar um canto escuro, alcançando tudo, os olhos vazios dela a nunca desviar-se daquele canto escuro. Entretanto, os outros lêem, toda a gente de forma literal, excepto Anne Bancroft, tendo criado e interpretado o papel durante mais de um ano, que se senta a tricotar, sem um guião à frente, audível por pouco mas firmemente articulada como Annie Sullivan.” Ele acrescenta, “No final da leitura: lágrimas nos meus olhos.”[13]
Avakian, que antes tinha montado notícias e documentários, abordou The Miracle Worker com o cinismo de um jornalista. “Ele disse, ‘Este filme é sobre o quê?’” lembra Penn, “e eu entrei numa longa conversa sobre como é essencialmente linguagem, e a linguagem é a essência da civilização em que depois se pode expressar a experiência que nos ocorreu que se pode transmitir a outra pessoa que não esteve lá, e foi assim que a civilização se conseguiu construir... ’ et cetera. E ele disse, ‘Ah, queres fazer um bom filme!’O Aram era assim!”
Penn usou o filme para redescobrir o meio do cinema. “Numa peça, quase tudo tem de ser articulado oralmente,” salienta ele. “Quando apareci para rodar o filme nunca me ocorreu que não precisávamos daquelas coisas todas; só precisávamos de o mostrar.”
A banda sonora do filme reforça a experiência emocional. Tinha sido pedido ao compositor Laurence Rosenthal para criar música incidental para a versão teatral, mas Penn considerou que a peça não precisava disso e retirou-a durante as apresentações em Filadélfia. “Eles dispensaram-me,” brinca Rosenthal, acrescentando rapidamente, “quando decidiram fazer o filme, o Fred e o Arthur acharam que, embora se possa fazer uma peça de teatro sem música, não se pode realmente fazer um filme como este sem música.” Rosenthal voltou para musicar o filme: “O Arthur estava absolutamente determinado em nunca ceder a qualquer impulso que produzisse uma impressão de sentimentalismo. Não queria chorar as pedras da calçada; queria manter a coisa objectiva e verdadeira sob o pressuposto completamente correcto de que a própria estória está tão carregada de impacto emocional que não se tem de ceder a isso.”
De forma instrutiva, a banda-sonora de Rosenthal simboliza o arco narrativo de Helen e Annie. “Aquilo que eu estava mesmo a tentar fazer era, de alguma forma, capturar o sentimento de viver num mundo de silêncio e escuridão,” diz ele, representando as duas mulheres pelo “vazio daqueles dois clarinetes e a série de progressões decrescentes e urdidoras que faz parte do tema.” Notavelmente, enquanto professora e discípula se unem no final do filme, os seus dois temas fundem-se. “Quando ela deixa os pais e volta para Annie e aponta para ela e quer saber, ‘Quem és tu?’ ‘Professora,’ nesse momento pode-se ver só a centelha duma lágrima a sair do olho de Helen. Lembro-me de Aram Avakian dizer, ‘Aquilo é uma lágrima de 1 milhão de dólares.’ É a primeira vez que se sente este tipo de emoção a vir da criança. O público fica sempre absoluta e completamente despedaçado com toda essa cena.”
Que era exactamente o que Penn queria evitar, segundo Rosenthal. “Senti realmente que o Arthur estava tão absorto na ideia de que o filme não se devia tornar sentimental que continuava a segurar as rédeas da música,” diz ele, “e mesmo na cena da bomba, fiz da forma que ele queria; marcámo-la, e eu não concordei totalmente com a marcação. Ele disse, ‘Vamos tirar a música aqui.’” Fizeram-no, e a cena—tal como da primeira vez que Penn a rodou—ficou morta.
Apercebendo-se disto, os criadores do filme agendaram outra sessão de composição e gravaram uma ponte musical. Os resultados, apesar do voto ascético de Penn, comoveram o público durante décadas. Mas primeiro tinha de se comover a United Artists.
“A UA foi ambígua,” diz Penn. “Quando terminássemos a montagem, o cerimonial era mostrarmo-la a Arthur Krim e Robert Benjamin e a David Picker. Assim o fizemos, e eles disseram, ‘Dêem-nos uns cinco minutos.’ Eles saíram para a sala de entrada e voltaram e disseram, ‘Muito bem, vamos distribui-lo.’ Não muito depois disto, Penn e Gibson marcaram uma projecção para a estrela deles, que trouxe com ela o homem que se tornaria seu marido depois de uma corte de dois anos: Mel Brooks.
The Miracle Worker foi vendido no modo de plataforma da altura: uma estreia em Nova Iorque a 23 de Maio de 1962, seguida de cidades-chave, e depois uma estreia alargada em cinemas de bairro a 28 de Julho de 1962.
A conversa dos Prémios da Academia começou quase imediatamente e continuou até ao final do ano. Duke and Bancroft venceram, efectivamente, Óscares, e Penn, Gibson e a figurinista Ruth Morley receberam nomeações. Bancroft, no entanto, não pôde aceitar o dela em pessoa. Ia aparecer nos palcos em Nova Iorque em Mother Courage e viu a cerimónia na televisão com o noivo, Mel Brooks. A estatueta de Bancroft statuette foi aceite na sua ausência por Joan Crawford.
Há, no entanto, uma nota de rodapé ignominiosa para a tripla coroa de The Miracle Worker. Em 1979, a NBC e a companhia de Melissa Gilbert, a Half-Pint Productions, refizeram a propriedade como um filme para a televisão. Desta feita Patty Duke, com trinta e dois, interpretou Annie, e Gilbert, da série popular da televisão "Little House on the Prairie", interpretou Helen. Foi realizado por Paul Aaron e produzido nominalmente por Fred Coe, embora rapidamente se tenha tornado aparente que Coe tinha sido contratado pelo nome, não pela competência. “Trouxeram o Fred e humilharam-no,” diz Penn categoricamente. “O Fred dizia, ‘Não, a cena não é assim,’ e eles diziam, ‘Então, o que raio é que ele está aqui a fazer?’ Ele era um homem muito orgulhoso e um produtor maravilhoso, e eles quebraram-lhe o espírito.”
A 29 de Abril, com menos de uma semana para rodar o filme para a televisão, Coe foi levado para o hospital com um aneurisma da aorta. Morreu no dia seguinte, depois de nomear o produtor executivo Raymond Katz para o substituir. Tinha sessenta e quatro anos.
Penn acredita que foi a forma como o pessoal da televisão tratou Coe que levou à sua morte. Mas a triste verdade é que ele já estava morto, destroçado pelo álcool, por um coração debilitado, e por ser relegado à sombra por uma indústria que tinha ajudado a criar e que já não reconhecia a dívida que tinha para com ele. Efectivamente, quando Cecil Smith do Los Angeles Times entrevistou Coe no exterior de Simi Valley para The Miracle Worker, o outrora dominante produtor avançou que a indústria tinha mudado ao ponto de “já não a reconhecer muito.”[14]
[1] Helen Keller, The Story of My Life (Nova Iorque: Doubleday, Page, 1903).
[2] John Albert Macy casou-se com Anne Sullivan em Maio de 1905, e eles os três—Anne, John e Helen—viviam juntos em Wrentham, no Massachusetts. Geraram-se tensões com este acordo e as suas interdependências inconstantes são dramatizadas por Gibson em Monday After the Miracle (ver capítulo 15).
[3] Dorothy Herrmann, Helen Keller: A Life (Chicago: University of Chicago Press, 1999).
[4] Wood, Arthur Penn (revisto).
[5] Os sapatos de ténis característicos de Penn foram o resultado de uma vez deslizar para fora do palco enquanto ensaiava uma peça. Daí em diante, o realizador favoreceu a tracção em relação à tradição.
[6] Patty Duke, Call Me Anna (Nova Iorque: Bantam, 1987)
[7] Weekly Variety, 16 de Agosto de 1961.
[8] Sem saber que Penn e Gibson estavam a fazer o filme, François Truffaut tinha tentado comprar os direitos. Rejeitado, fez um filme similar em termos de temperamento, The Wild Child, em 1970, reclamando a Charles Thomas Samuels em Encountering Directors (1 e 3 de Setembro de 1970) que o filme de Penn era inferior à autobiografia de Keller porque Gibson o tinha escrito e produzido simultaneamente, enquanto defendia Penn por “traduzir a ideia de outro homem.”
[9] Seminário no American Film Institute, 30 de Janeiro de 1970.
[10] A juventude aterradora de Annie no asilo é evocada por material aumentado super-granuloso e áudio ecoante.
[11] Entrevista Schickel-Penn (interpolado).
[12] Interpolado de Gary Crowdus e Richard Porton, “The
Importance of a Singular, Guiding Vision,” Cineaste (1993).
[13] Ross Baker, com Fred Firestone, eds., Movie People: At Work
in the Business of Film (New York: World, 1972).
[14] Citado in Krampner, Female Brando.
in «Arthur Penn - American Director», de Nat Segaloff, The University Press of Kentucky, Lexington, 2011.
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