Conheci o blog do José Oliveira quando estava no secundário, ainda longe de
tudo, meio perdido com esta coisa do cinema e dos filmes, que via por não
conseguir fazer as coisas como fazia toda a gente lá na escola, para alguma pena
minha. Era o remédio para essas falhas todas. Devo ter faltado a umas aulas ou
chegado atrasado por ficar a ver filmes na televisão até às tantas da madrugada.
Bizarrias do Carpenter ou do Cronenberg não faltavam. À Quarta havia o Dia C,
no Bragashopping, os filmes eram todos a 2 euros. Talvez eu e o Zé nos tenhamos
cruzado pelos corredores do Cinemax nesses anos sem o saber, para ver
qualquer filme do Anderson ou do Tarantino ou do Scorsese ou do Clint
Eastwood, quem sabe. Mas na altura fiquei surpreendido porque não sabia que
era possível falar assim sobre filmes - o choque não foi muito diferente do que
senti a ler as folhas da Cinemateca do João Bénard da Costa, pouco antes ou na
mesma altura. Havia uns livros cá em casa.
Já não consigo separar isso, também, da decisão de tentar isto do cinema, a
memória funciona assim. Lembro-me de ver ligações para os blogs do Felipe Medeiros, do Bruno Andrade, do Sérgio Alpendre, do Daniel Pereira,
comentários do Álvaro Martins, do João Gonçalves ou do Francisco Rocha (e depois ir dar também aos blogs deles) e aos poucos ir-se
abrindo um mundo novo e onde via uma espécie de resistência às tendinhas,
câmaras, aos lopes, augustos e vasconcelos deste mundo. E descobria o Hawks, o
De Palma, o Gray, o Coppola, o Moretti, o Fuller (depois o Cimino, o Fulci, o
Argento, o Pedro Costa, o Manuel Mozos, o Brisseau...)... Daí para o Pai Natal
(depois para o Ato Falho e para o Terça-Feira) foi um pequeno passo. Na altura
não tinha maneira de o ver mas já torcia pelo Zé por ter tanta razão e tanta fúria
na razão no que escrevia. Era assim que se tinha que escrever, era assim que se
tinha que encarar o mundo. Com coragem.
Depois vieram a Foco e os Encontros Cinematográficos, ainda na Guarda, que foi
quando o conheci através da Sabrina. Comecei a ver as curtas dele. O Dá-me uma
Gotinha de Água (2013) foi o primeiro que tocou, e muito. Com o Zé Lopes, a
Marta Ramos e a Maria Petersen numa espécie de cerimónia, lindíssima. O sol
parece que os vê e reduz o brilho em sinal de respeito mesmo antes de
começarem a cantar e deixa-os brilhar aos três. E o Zé estava lá para filmar isso.
E se calhar esteve lá o tempo que foi preciso para filmar isso. O Maio Maduro
Maio (2014) veio um bocado depois e é outro desses milagres, uma travessia
pelo espaço, pelos tempos e pelas memórias e com um plano longo e prodigioso
numa seara que mete o Sokurov todo num canto, e perdoem-me o sacrilégio mas
é nisso que acredito. Depois o Saddle the Wind, o Fala do Homem Nascido, o
Longe...
E antes disso tudo, Braga (2010). Oito planos que correspondem a quatro dias e
a quatro noites, olhando para as idas e vindas e passeios e melancolias e
correrias e deleites das pessoas que passaram à frente das lentes da câmara do
Zé, nesses dias. Um exercício de paciência de quem não passa sem querer olhar
para as coisas como merecem ser olhadas nem sem tentar retirar uma verdade
disso. Primeiros sintomas do que vem depois, quando o Zé já consegue encher os
seus planos com a beleza dos seres humanos. Primeiro, então, a beleza das
rotinas urbanas, seguindo máximas Lubitschianas e Fordianas. Lubitsch dizia
para filmar montanhas mas já não é possível, eram outros tempos. A máxima
aplica-se então a tentar encontrar o melhor ângulo e a melhor aproximação ou a
melhor distância para descrever movimentos. Ford costumava sentar-se com o
filho (se não me engano, não encontro a história, vai tudo de memoria) durante
umas horas e tentar descobrir, olhando para as pessoas que passavam, qual seria
a sua ocupação. Posturas e caras e modos de atravessar as ruas mostravam
sapateiros, banqueiros, advogados ou professores. Exercícios para depois se
filmar o mais difícil, o rosto humano. O plano do espelho de Longe talvez
carregue todo esse trabalho, perfeitamente concentrado e diluído.
E a ficar com um dos planos de Braga, fico com o dos miúdos a correr em círculo
na fonte da Praça do Município. Pensa-se sempre, muito mal, que para filmar
movimento a câmara se tem que mexer mas se neste caso se mexesse o
movimento era anulado e o plano, sim, tornava-se fixo, parado, chato. Assim,
como o Zé o filmou, está cheio de vida. O mesmo para o da ponte aérea à beira do
Braga Parque, demencial e caleidoscópico. Ainda o da ruela das Frigideiras,
triste, melancólico...
Antes da poesia, a prosa, que é como dizer: antes de Dá-me uma Gotinha de
Água, Maio Maduro Maio e Longe, Braga.
(texto publicado no Jornal do ciclo DAR A VER, realizado no Fundão)
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