quarta-feira, 31 de março de 2021

ME AND MY GAL (1932)


Na senda e dentro do espírito de filmes como Parada do Amor e The Smiling Lieutenant de Ernst Lubitsch, Street Scene de King Vidor, Over the Hill de Henry King, ou ScarfaceTiger Shark de Howard Hawks, todos realizados entre 1929 e 1932, na transição do mudo para o sonoro e com o comboio da vida a bater nos microfones e nas lentes sem um freio ou um filtro que fosse, também Albert Edward (depois re-baptizado "Raoul") Walsh se atirou sem medo às falas e aos sons, como já tinha feito dois anos antes com The Big Trail, e deu-nos este maravilhoso Me and My Gal.

Talvez não haja nada de muito específico a aproximar esses filmes a não ser essa sensação de urgência provocada pela adaptação a uma nova técnica: vozes a picar, rádios enormes a estatelarem-se no chão, carros a passar a toda a brida pela estrada, corpos aos tropeções e aos pinotes para fora dos enquadramentos, sem aros nem marcações. Uma confusão de todo o tamanho, uma beleza sem fim. Era como se o amor e o crime nunca tivessem sido filmados, como se nunca tivessem sido vistos, contados ou sequer inventados. Atravessava-se um carro ou movia-se um barril e de repente estava tudo em jogo, uma mulher e um homem piscavam o olho um ao outro e fazia-se luz de novo, num cantinho entre as trevas. O sorriso enérgico e o convite para os copos de J. Farrell MacDonald, com uma vontade demasiado pronunciada, com uma gargalhada demasiado histérica, situa-nos sem sombra para dúvidas nesses anos da crise de todas as crises, onde uma das opções possíveis era beber copos cravados ou fiados durante a manhã, a tarde e a noite e chamar a polícia porque os peixes nos tinham roubado o isco ("Whaaa... What're you gonna do about it?"), como faz o bêbado de Will Stanton, num overacting assumidamente irritante, entre o ridículo e o sublime, verdadeiro como os dias.

Nova Iorque, 1932. Pescadores, arruaceiros, cuspidores de curta e longa distância, polícias e ladrões, empregadas de café, empregadas de bancos, veteranos de guerra paralíticos, gangsters com e sem charme, bebedores de cerveja profissionais, bêbados ingleses de fala arrastada, bêbados irlandeses com discurso de maratona, bons meninos e maus rapazes, meninas que hesitam entre uns e outros, uma câmara inventiva e galopante que se aventura pelos cais, balcões, escadarias, sofás, prisões, sótãos, caves, mesas e cofres por que todos circulam sem fazer quaisquer juízos de valor, irreversivelmente apaixonada pelas suas vidas e pelas suas contradições ("Whatever you do, lay off the coffee."; "All right, Captain... Hey, Al! Get me a cup of coffee."). Cortes bruscos e revelações repentinas. Cai um pedaço do tecto, surgem cinco homens em contra-picado, dois com óculos protectores escuros, recortados e enquadrados por um quadrado dentro do quadrado do cinema. A imagem treme, o assalto continua. Pragmatismo dos pioneiros, se lhes chamam imagens em movimento, que se movam, na acepção mais pura do termo: há dezanove dias, temos bons actores e imensas peripécias, vamos tirar o máximo proveito disso tudo.

E então a lição esculpida a pedra, assumida como certeza absoluta se nos lembrarmos dos beijos de Joan Bennett e Spencer Tracy em cima do balcão do café, deitando abaixo as chávenas e as travessas que por acaso lá estavam, o pé levantado dela, a perna oscilante dele, o peixe na cara do inglês, a atitude sempre defensiva do pescador sem peixes mas que bebe como um peixe, Joan Bennett de braços cruzados atrás da janela, Joan Bennett a endireitar-se com a anca no corrimão, Spencer Tracy e os chapéus, as centenas de acenos que atravessam os espelhos da alma, a alegria como sistema de reacção e defesa contra a adversidade: para fazer cinema é preciso estar apaixonado pela vida, sobretudo quando é difícil.

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