terça-feira, 3 de agosto de 2021

CIDADE NAS TREVAS (1956)


Sabe-se que Fritz Lang, tal como Alfred Hitchcock (e não é a única coisa que os aproxima, pois ambos começaram na Europa e durante o mudo, ambos preparavam os filmes meticulosamente, deixando muito pouco ao acaso e recusando a improvisação durante as rodagens, além de partilharem muitas obsessões temáticas), coleccionava recortes de jornais como forma de inspiração e pesquisa de material e temas para os seus filmes. Quando Peter Bogdanovich, no seu livro de entrevistas ao realizador austríaco (Fritz Lang in America) lhe perguntou porque é que gostava de trabalhar a partir de jornais, Lang respondeu-lhe que “eu acho que os filmes não são apenas a arte deste século, mas sim, e impondo uma palavra de Abraham Lincoln, a arte ‘do povo, para o povo, pelo povo.’ Foi inventada mesmo na altura certa – quando as pessoas estavam prontas para uma arte das massas. (Sabe, por acaso, o que é que fazia mesmo propaganda ao modo de vida americano? Os filmes americanos. Goebbels percebeu o enorme poder dos filmes como propaganda, e eu temo que mesmo hoje as pessoas não saibam que meio de propaganda tremendo os filmes podem ser.) Mas de qualquer maneira, onde é que vamos buscar o nosso conhecimento da vida? Aos factos, não à ficção. Naturalmente, podem-se aprender uma data de coisas em romances e em peças, mas é sempre visto através dos olhos doutro homem. Não se esqueça que nesses dias não havia televisão: hoje quando há um motim, nós vêmo-lo; Pelo Vietname, podemos ver o que é uma guerra na selva. Antes disso, as actualidades levavam bastante tempo a chegar aos cinemas, e só os jornais é que eram notícia fresca. 
 
“Um realizador devia saber tudo. Um realizador devia-se sentir em casa num bordel – o que é muito fácil – mas também se devia sentir em casa na Bolsa – o que já é um bocado mais difícil. Devia saber como se comporta o duque de Edimburgo, como se comporta um trabalhador e como se comporta um gangster. Agora, eu diria que é impossível aprender isto tudo por experiência. Mas a melhor coisa a seguir a isso é ler jornais – mesmo se não forem objectivos, pode-se aprender a separar as coisas objectivas das subjectivas.” 
 
Quando deu com o guião de While the City Sleeps, Lang mostrou ao argumentista, Casey Robinson, um artigo sobre um assassino em série que tinha deixado a mensagem “Please catch me before I kill more” no espelho da casa de uma das suas vítimas, o caso real que tinha inspirado o autor do livro The Bloody Spur, Charles Einstein, que tinha sido a base para o argumento de Robinson (no livro, o assassino escreve “help me for God’s sake” e no filme, “ask mother”). 
 
Sabendo da sua crença que um realizador devia saber tudo sobre o mundo que o rodeia, não é com grande surpresa que descobrimos que Lang aplicava o mesmo princípio ao cinema. Como muitos realizadores austro-húngaros em Hollywood (Otto Preminger, Billy Wilder, Michael Curtiz), Lang acreditava muito mais no guião, na preparação e na pré-produção do que em potenciais descobertas durante a rodagem (como faziam Hawks, Chaplin e Ford com extraordinários resultados), e dirigia os seus actores em conformidade. Joan Bennet, que trabalhou com ele em The Woman in the Window (1944), Scarlet Street (1945) e no fabuloso Secret Beyond the Door (1948), numa carta a David Overbey[1], escreveu que “um dia normal com Fritz Lang como realizador só era normal num aspecto: era invariavelmente controlado como só ele conseguia. Para mim, isto era extraordinário. Ele era minuciosamente meticuloso, com uma compreensão completa do sentido que tinha tomado, do que queria exactamente e de como queria que os seus actores interpretassem, de modo preciso. A minha confiança nele era absoluta e inquestionável. Não havia demonstrações, discussões ou análises de personagens. Fritz dizia ao elenco dele o que queria — e era assim. Era fanático pelo realismo. Tal como o facto de me ter exigido a mim e a Michael Redgrave que fizéssemos o próprio plano de correr através da casa em chamas em Secret, o único momento assustador que eu tive em Scarlet Street foi a cena do esfaqueamento. Eu não me importava de ter tido um duplo se não fosse a insistência de Fritz pela verdade e a minha confiança nele e na sua integridade. Fritz era um realizador exigente, mas trabalhar com ele valeu bem a experiência. Como bem sabes, as técnicas de câmara dele eram distintas, originais e revolucionárias na indústria de cinema. Ela tinha um — suponho que se possa chamar um truque — que parecia usar só comigo. Ele normalmente ficava atrás da câmara durante a rodagem e fazia sinais com as mãos na minha direcção para pequenos movimentos que melhoravam os ângulos de câmara. Foi o único realizador com quem trabalhei que fazia isto, e embora parecesse ser uma fonte de aborrecimentos para outros com quem trabalhei, aceitei-o de bom grado devido à confiança consumada na sua habilidade.” 
 
Apesar de Lang não ter começado por dispor do controlo que gostaria quando chegou a Hollywood em 1934, mal-habituado às mordomias que lhe prestavam nos estúdios da UFA (não lhe impunham limites de orçamento ou tempo, chegava aos estúdios em grande pompa e circunstância, não mostrava complacência nenhuma para com técnicos e actores, de quem exigia exactamente o mesmo que exigia de si próprio), o realizador foi conseguindo impor-se por lá quando os estúdios perceberam que os seus métodos lhes poupavam dinheiro. Ao preparar as posições de câmara com antecedência para cada dia de filmagem (e convém lembrar que Lang trabalhava sobretudo em estúdio, que de outra maneira não o poderia fazer), sabendo tudo o que ia filmar, organizava as filmagens de forma a reduzir as mudanças de luz e de equipamento ao mínimo possível, tendo ainda tempo para repetir planos até estar completamente satisfeito e ganhando a confiança dos seus técnicos e dos seus actores por estes o verem a trabalhar no duro e acreditarem que as exigências a que os submetia se justificavam sempre com o resultado final (e abundam testemunhos semelhantes ao de Joan Bennet[2]). 
 
While the City Sleeps é o penúltimo filme de Lang em Hollywood, expressão pura desse método já cimentado, estudo profundo das relações de poder e influências numa empresa de comunicação, a New York Sentinel, posta à prova pela raiva homicida do “Lipstick Killer”, interpretado por John Drew Barrymore, Jr. Como nos filmes de Alfred Hitchcock, sabe-se de antemão a identidade do assassino, oportunidade para entrar na sua mente e ver também como reagem aos seus actos as pessoas que o rodeiam (um desfile de enormes estrelas de Hollywood: Dana Andrews, George Sanders, Ida Lupino, Vincent Price, Rhonda Fleming, Mae Marsh, Thomas Mitchell). Foi o que moveu e interessou Lang em M (1931), A Casa à Beira do Rio (1950) e no filme que mais se aproxima deste, A Gardénia Azul (1953). Em Lang, as compulsões homicidas parecem sempre um sintoma de um mal maior, de que os espectadores incautos ou os investigadores responsáveis participam sempre. A caça ao assassino em While the City Sleeps é só uma desculpa para os jornalistas avançarem na sua carreira por todos os meios possíveis, à custa de chantagens, subornos, intimidações, seduções, facadas nas costas ou pactos com o diabo e para o dono da companhia os ver esfolarem-se por isso como se assistisse à versão moderna dos jogos romanos da sua cabina privada, ficando como prova disso mesmo o plano pormenor dos três amendoins, a que ele dá os nomes dos seus jornalistas – plano a que João Bénard da Costa chamou o “mais sombrio” do “filme mais perverso da obra de Lang.”[3]  

Nos filmes de Fritz Lang, e este não é excepção, mostra-se o que o mundo faz às entranhas dos homens, pergunta-se se não as corrói por dentro e se não os transforma. Em While the City Sleeps, pergunta-se também se o olhar de um pivot de telejornal, quando vê o trinco da porta da namorada e o destrava para depois poder entrar, não é igual ao de um assassino a fazer o mesmo quando entrega as compras a uma mulher que não conhece e, a seguir, mata. Se essa cena serve para a personagem de Dana Andrews descobrir como é que esse primeiro homicídio aconteceu, o relevo dado ao olhar do jornalista não pode ser inocente. Como não é inocente a cena em que o “Lipstick Killer” se faz passar pelo personagem de Andrews, tornando-se no seu duplo, tal como antes o jornalista fora duplo do assassino (duas faces da mesma moeda?). Nem como nada é inocente neste filme tão perverso e que vai tão fundo na difícil demanda por saber o que vai na cabeça dos homens quando caem nas ciladas da ambição.

[1] in «Fritz Lang» de Lotte Eisner, Da Capo, Nova Iorque, 1986, pág. 376.

[2] Toda a informação relativa aos métodos de trabalho de Fritz Lang está no livro essencial dedicado ao cineasta e escrito por Lotte Eisner, historiadora e arquivista fabulosa que, durante a 2ª Guerra Mundial e a grande custo, ajudou Henri Langlois a salvar bobines de filmes, guiões originais ou objectos usados durante várias rodagens para gerações futuras.

[3] in «As Folhas da Cinemateca - Fritz Lang», Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1996, pág. 146.

in «Uma Viagem Pelo Cinema Americano», OLIVEIRA, José, PALHARES, João, A.23 Edições, 2018.

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