segunda-feira, 19 de abril de 2010

Buñuel e Cinema...


A propósito de uma aula (onde pareceu haver discussão - pareceu):

Dizer, sobre "Un Chien Andalou", ser experimental e manifesto artístico de um cineasta em plena liberdade, evocar a semiótica e merdas dessas, é dizer menos que nada.

Que estava livre para fazer o que muito bem entendesse e experimentar formas, sabia o Buñuel muito bem. Se ele, aliás, estivesse estado na aula de hoje, era bem capaz de nos mandar a todos para o caralho e com as sílabas todas (sim, porque ele não era cordial nem sequer boa pessoa).

Porque achar que a apreensão do Cinema (e da Arte em geral) se dá nos domínios do explicável é a coisa mais aberrante do mundo e acho os exageros de alguma crítica e não só, por demais enervantes. E é por isso que mais vale dizer de um filme que tenhamos adorado, “foda-se, puta-que-pariu de filme”, do que “pô-lo num saco” e o catalogar, reduzindo-o a palavras e a expressões redundantes.

É experimental, é radical? Não, é Buñuel, é Cinema, com toda a complexidade que esses nomes pedem e implicam - e inadjectivável é o melhor dos adjectivos. São imagens, planos em confronto interno e à beira da destruição, sugerindo a heresia, a anarquia e a rebelião, é Cinema que recusa ser denominado mas ao qual, infelizmente, deram um nome. Isto é dizer pouco, mas mais do que “experimental”, “surrealista” e “revolucionário”, ainda assim.

Temos de abrir os nossos olhos! Porque, de resto, o que significa a mais icónica imagem de “Un Chien Andalou”? Abre os olhos, abre os horizontes, vê o novo Cinema: Na mais cruel e literal das formas, é verdade, mas isso mesmo, ainda assim, porque não é por acaso que é Buñuel (nos primeiros minutos do seu primeiro filme) a desferir o golpe de navalha, é tudo simbólico. “Preparem-se para o meu Cinema”...

O admirável paradoxo; é preciso “não ver” um bocado para “ver”, finalmente. Cegar para ver, ignorar para compreender: “Now that I am blind, I can see”. Muito obrigado, Luis Buñuel. Por tudo, mas pelo Cinema, principalmente. O Teu Cinema...

8 comentários:

Flávio Gonçalves disse...

Penso que te consigo perceber. O transcendente é inefável - lembro-me sempre disso quando estou a escrever sobre um filme que adorei ou amei para o resto da minha vida. Tudo o que diga, ou escreva, é insuficiente. Tenho medo, e muitas vezes esse medo confirma-se, que mutile a essência das películas, por isso muitas vezes eu nem escrevo. Mas reflicto, e muito, sobre elas. Mesmo que, a fim ao cabo, se restem a uma experiência ultra-sensorial (ou surrealista?). :)

João disse...

"E é por isso que mais vale dizer de um filme que tenhamos adorado, “foda-se, puta-que-pariu de filme”, do que “pô-lo num saco” e o catalogar, reduzindo-o a palavras e a expressões redundantes."

E mais nada!

Álvaro Martins disse...

Concordo plenamente.

João Palhares disse...

Não há mal algum em reflectir, há é com a catalogação e com a "preguiça mental", com a pseudo-análise e com alguma crítica. E fazer justiça a um filme, plenamente, acho que é impossível...

"Ainda hoje fico muitas vezes siderado com as críticas que leio em certas revistas de cinema. (...) Um dia tive um encontro com estudantes de cinema numa universidade em Viena; tive que pedir que me explicassem umas cinco ou seis vezes o termo 'desconstrução' até perceber de que é que me estavam a falar. E devo confessar que ainda hoje não estou certo de ter compreendido o que se estava ali a passar..."

John Carpenter

"Detesto o pedantismo e o jargão. Já me aconteceu rir até às lágrimas ao ler alguns artigos dos Cahiers du Cinéma. Na cidade do México, tendo sido nomeado presidente honorário do Centro de Capitación Cinematográfica pela Escola Superior de Cinema, um dia fui convidado a visitar as suas instalações. Apresentam-me quatro ou cinco professores. Um deles é um jovem bem vestido, corando de timidez. Pergunto-lhe que disciplina ensina. Ele responde: 'a semiologia da imagem clónica'.
Apeteceu-me assassiná-lo".

Luis Buñuel

"Sim, admiro especialmente o último filme de Rossellini (...). Porquê? Ah, agora é que tudo se torna mais difícil. Não posso invocar-vos o arrebatamento, a emoção, a alegria. É uma linguagem que vocês não admitem como explicação. Mas espero que, pelo menos, a compreendam."

Jacques Rivette

Back Room disse...

Concordo.

Completando a ideia do Flávio, o cinema, como qualquer arte, é inefável.

Mas é difícil depois não cair em certos vícios e lugares comuns. Também já disse por aí que sou completamente contra dizer-se que uma obra de arte é superior a outra e, no entanto, já o fiz em conversa imensas vezes, naturalmente.

João Palhares disse...

O Rivette e o Godard diziam que as melhores críticas a filmes são outros filmes. Por exemplo, acho que não há melhor crítica ao "Rio Bravo" do que o "Assault" do Carpenter e o filme do Hawks já era uma crítica ao "High Noon" (a melhor, também) e à televisão, também, mas isso é outra história. Mas quando em dúvida, interjeições e palavrões, é o que eu defendo, eheh...
E vai aparecendo, Back Room... :)

JB disse...

Eh, eh, essa do «now that i'm blind I can see» foi repescada do meu blogue. Esse filme é muito bonito, já agora.

Não me parece que o cinema seja mais inefável do que outra coisa qualquer. Nada é inefável e tudo é inefável, porque a linguagem é sempre uma aproximação dos conceitos que procura exprimir. É o que me cheira.

A chave, para mim, está em entender que, quando estamos a escrever sobre cinema, estamos a escrevermo-nos. Se uma crítica reproduz lugares-comuns, significa que o autor não está a escrever-se, mas a escrever o outro, o que é uma patetice, mas só é mau para ele, não para nós.

É uma questão estética. Os filmes que gostamos e os que não gostamos, os textos que gostamos e os que não gostamos. A verdade escapa-nos sempre, necessariamente.

Também revi este filme há pouco tempo numa aula, e acho um piadão, por acaso. De resto, gosto das tuas palavras sobre o corte do olho e do Wagner também.

João Palhares disse...

Ainda não vi o "Seventh heaven" mas, sim, fui ao teu blog, eheh

Essa noção de que nos estamos a escrever quando criticamos um filme agrada-me muito. Algumas das melhores críticas falam mais sobre o crítico do que sobre o filme em si, da experiência e do gosto e não da verdade, inevitavelmente. Falar sobre um filme e, nesses meandros, perceber, entender e descobrir coisas sobre nós próprios, a auto-descoberta pela Arte.

E Wagner e Buñuel são do caralho! :)