"Jaime" (1974)
"Recordações da Casa Amarela" (1989)
"A primeira vez que vi a cidade de Lisboa, pensei comigo: Esta terra é como uma dama que tem que ser engatada com muito jeito. Nada de pressas, nada de deitar a mão antes do tempo, é preciso andar devagarinho com olho vivo e não cheirar-lhe os pés. É preciso, sobretudo, um homem lembrar-se que nasceu numa aldeia de pategos e aprender a aguentar-se.A minha vizinhança foi quase toda corrida da cidade. Vieram com uma pressa tamanha que bateram com o nariz no primeiro muro e ficaram espalhados por aí. Verdade seja que eu também não tenho uma morada para cartão de visita, mas é por cautela. Tenho tempo de passar a melhor poiso. Nunca gostei de pressas, os meus vizinhos devem desconfiar de mim porque nunca me ouviram dizer que estava à rasca. Desaproveito não saberem fazer nada senão queixarem-se uns dos outros...Na cidade ainda se diz "Ó patego, olha o balão" mas quem anda metido na construcção civil é que sabe onde andam os pategos, quanto custam os balões. Ainda não há como um homem ter nascido patego para levar à confiança a gente da cidade"
"Verdes Anos" (1963)
"Não consegui pregar olho esta noite, tenho o corpo cheio de bagas vermelhas. Coço-me com a ponta dos dedos, ao de leve, para não provocar feridas. Se meto a unha (e é uma tentação), estou feito.Seriam três da manhã quando saí para a rua - a cabeça latejava por dentro, já não podia mais. Ainda os sentia a passear em cima de mim, a esfregar as patinhas de satisfação. Esforçava-me por não fazer bulir um pentelho e de repente, Zás, acendia a luz, sacodia os lençóis e punha-me a vasculhar a cama toda que nem doido. Nem um, nem um finalmente esborrachado entre as minhas unhas que esguichasse sangue por todos os lados. Só se aventuram às escuras os cobardes e mesmo assim devem vir camuflados, cobertos pelos pós das frinchas e dos recantos afiados do quarto. Largar um fósforo a isto tudo, atear fogo à palha podre do colchão e dançar de alegria no meio das labaredas enquanto os ouço (crack, crack) a estalar como castanhas ao lume.A humidade vinda do rio encharcava-me os ossos, deixei de ouvir as badaladas da Sé. Acabou-se me o tabaco, o que ainda assim foi o pior de tudo. A comichão já não me incomodava muito, a não ser nas costas das maõs. O ardor nos tomates só começou mais tarde - pela manhã, se não estou em erro. Rabiei durante não sei quanto tempo, não se via vivalma, nem um ladrão de carros para dar dois dedos e cravar um cigarro. Por fim lá topei uma padaria aberta. As carcaças caíram-me na fraqueza - o costume.Tenho um pacote de manteiga escondido no meu quarto. Aposto que a puta da velha não o encontra nem que vire tudo do avesso. Já não caio noutra: "Senhor João, o quarto não tem serventias". A velha descobriu um cacho de bananas podres por cima do guarda-fatos e foi um pandemónio. Não volto a comprar bananas da Colômbia, compram-se ainda verdes e dois dias depois estão completamente podres..."
"Recordações da Casa Amarela" (1989)
É ver os dois hospícios nos filmes do Reis e do Monteiro e o guarda a espreitar para a cela de João de Deus por uma abertura circular esculpida na porta de madeira (citação ao início do filme de António Reis, parece-me). É ver os dois monólogos de abertura (desabafos) com a cidade de Lisboa como ponto de partida (e, depois, de chegada) nos inícios dos filmes do Rocha e do Monteiro, outra vez. O travelling inicial no "Verdes Anos" só acompanha parte da voz em off, mas o de "Recordações" ressuscita-o. Cita, também, a cena final ("Ah, minha senhora"), curiosamente...
A Lisboa que Rocha e Monteiro representam deixa de ser a de Revista dos anos 30 e 40 (safam-se o "Douro, Faina Fluvial" e o "Maria do Mar", de Oliveira e Barros, respectivamente - era o que eles, Lopes / Vasconcelos / Monteiro / Rocha, diziam) para se tornar numa de pesadelo e de enorme convulsão social (e cultural), a verdadeira e real Lisboa.
Júlio e João de Deus são, então, duas faces da mesma moeda, derrotados no jogo do amor tanto por culpa deles como da própria cidade e seus habitantes. O Júlio da segunda parte de "Verdes Anos" não é o mesmo da primeira (o mesmo para Deus e não será demais apontar que no filme de Monteiro há uma ressureição), as suas acções não são explicadas nem, sequer, explicáveis - a elipse temporal que separa a primeira e segunda partes de "Verdes Anos" é, aliás, das mais terríveis da História do Cinema (sim, da História do Cinema). É ver, ainda, como Rocha filma os encontros de Júlio e Ilda - antes da elipse, todo e cada um desses encontros parece o primeiro (espontaneidade, liberdade, serenidade) e depois, cada um o último - até um o ser, mesmo...
Sobre o filme do Monteiro escreverei mais umas coisas: é o meu preferido da trilogia (como não podia deixar de ser, vi os outros e agora tenho de ver, à força toda, o "Quem Espera por sapatos de Defunto...."), se bem que algo me diga que o "Comédia de Deus" é o que preferirei daí a uns anos quanto mais não seja por me parecer o mais enigmático dos três, o que mais segredos parece resguardar; ai, as alusões a Rivette ("aquilo que é, é", diz Lívio a João de Deus), a Minnelli, a Murnau, a Stroheim, a Dostoievsky, etc; O plano que aqui postei é retomado em "Bodas de Deus" mas em reverso, da esquerda para a direita, para César Monteiro tudo tem o seu negativo e não existe, aliás, sem ele: o sagrado e o profano, o amor e a perversão, a virgem e a puta, a Cultura e a cultura, Schubert e Barreiros; Bénard da Costa diz (e João de Deus, também, nas "Bodas"), que "João César pagou (para ver, como no poker), sabendo que só Deus pode ver tudo e que esse é o princípio essencial da tragédia", e o princípio essencial da trilogia, necessariamente... Por fim, a comédia trágica ou a trágica comédia lusitana que César teceu é um dos melhores filmes dos anos 80, como o "Verdes Anos" é dos 60 e o "Jaime" dos 70. Assim, sem grandes dúvidas...
Sobre o "Jaime", e pedindo muita desculpa, dou a palavra ao César Monteiro, no próximo post... mas não sem antes dizer que é coisa poderosíssima. Essencial, também...
"Vai e dá-lhes trabalho"...
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