É pelo menos a ideia ferrenhamente defendida por um punhado de admiradores, espalhados um pouco por todo o lado, mas que talvez não sejam assim tantos. Compreender a obra de Carpenter - uma obra, admite-se, "furtiva" - é preciso. O que se segue é uma tentativa ludicamente didáctica (ou didacticamente lúdica) de apontar algumas razões - entre muitas outras possíveis - por que as 20 longas-metragens de John Carpenter nos parecem compôr uma das obras mais estimulantes e desafiantes das últimas décadas.
Com "Fantasmas de Marte", Carpenter assina a 20ª longa metragem de uma obra iniciada em 1974 com "Dark Star". Alguns desses vinte títulos foram grandes sucessos de bilheteira ("Halloween", de 1978, por exemplo), outros grandes fracassos. Quase todos, pelas mais diversas razões, se tornaram objecto de cultos particulares. Em conjunto, a obra de Carpenter aparece hoje como uma coisa subterrânea, espécie de inconsciente dos últimos 30 anos do cinema americano - e de vez em quando salta cá para fora e revela-se, numa mescla de assombração poética e exercício prático de crítica.
A coerência.
Não é forçosamente o valor essencial de obra nenhuma, mas a coerência da de Carpenter é impressionante. Mesmo nos seus filmes menos pessoais (os daquele período dos anos 80 em que se deixou enredar pela máquina dos grandes estúdios) há um método e um olhar. A definição de "autor" segundo Carpenter: "um artista que sabe mostrar em cada um dos seus trabalhos o seu próprio ponto de vista e os seus próprios interesses temáticos, independentemente dos detalhes da produção (actores, argumento, produtores, orçamento, etc)". Há quase 30 anos que é isso que ele faz, com muito ou pouco dinheiro, com histórias de fantasmas ou de extra-terrestres. Ou, como Carpenter também diz, "o importante é atravessar as aparências e saber ver o coração do filme".
O culto do género.
São muitos os vínculos de Carpenter ao cinema clássico americano. De entre todos eles, ressalta o culto dos géneros e dos seus respectivos códigos - muito provavelmente, é o último "cineasta de género" em actividade no cinema americano, e um dos poucos capazes de dar ao termo "género" um sentido contemporâneo. O "terror" e a "ficção científica" são os genéros que, em aparência, dominam a sua obra. Mas no "coração" de muitos dos seus filmes está o "western", cujos códigos se sobrepoem subtilmente aos do "terror" e da "fc". Até nos detalhes: em "Fantasmas de Marte" há comboios, "saloons", minas, localidades com nomes como Shining Canyon, tribos de índios, etc...
O espaço.
É o grande tema de Carpenter, tal como o era na mitologia do "western" clássico. Seria possível reduzir a "intriga" de todos (ou quase todos) os filmes de Carpenter nestes termos: há um grupo de homens (ou de mulheres, como é o caso de "Fantasmas de Marte") e há um espaço que é preciso defender ou conquistar. O enclausuramento (como em "Veio do Outro Mundo", de 1982), o sitiamento ("Assalto à 13ª Esquadra", de 1976), o desbobinar de um território labiríntico ("Nova Iorque 1997", de 1981), a ocupação de porções espaciais (as casas de "Vampiros", de 1998), assim como o avanço no terreno (a sequência do desfiladeiro em "Fantasmas de Marte"), tornam-se elementos narrativos nucleares no desenho, simultaneamente tão abstracto e tão palpável, desta obsessão temática.
O Scope.
Para filmar o espaço, é preciso ter espaço. Serão muitas as razões para que Carpenter filme sempre em scope, formato de que ele é hoje, também, um dos derradeiros cultores. Algumas dessas razões serão puramente estéticas - Carpenter também é um esteta, que precisa do ecrã largo para exprimir a sua sensibilidade (e sensualidade) plástica. Fora isso, no entanto, a amplitude do scope é ilusória: Carpenter serve-se do espaço do scope para o negar, como se o que se ampliasse fosse a clausura, como se se aplicasse uma lupa à exiguidade dos espaços (por exemplo, dos corredores e das pequenas cabinas de "Fantasmas de Marte"). É por aqui que funciona a manipulação psicológica do espectador: vê-se muito (ou julga-se ver muito) para os lados, mas há um opressivo e sistemático bloqueamento da profundidade.
A política.
Carpenter é um paranóico, adepto de variadas teorias da conspiração e possuidor de uma férrea desconfiança de todas as instituições. As ameaças, nos seus filmes, são sempre de cariz totalitário, estejam elas já instituidas ou em vias disso. Em "Fantasmas de Marte" o sistema político vigente é dado em pequenas notações, mas é clara a descrição de um ambiente ultra-controlador do indivíduo. No filme mais paranóico de Carpenter ("Eles Vivem", de 1988), em que todo o mundo estava controlado por extra-terrestres que mantinham os cidadãos numa espécie de hipnose, havia uma cena de pancadaria que durava quase uns absurdos dez minutos. Mas eram dez minutos necessários: tratava-se de uma luta em que uma personagem tentava convencer outra a "abrir os olhos". Luta dura e demorada, evidentemente.
A subversão.
Ao totalitarismo, Carpenter não opõe a democracia - que, pelos seus filmes, parece ser sempre um caminho para a ditadura. O que ele opõe é a mais completa anarquia. O filme mais anarquista de Carpenter é "Fuga de Los Angeles" (1996), que terminava com Kurt Russell a "apagar", literalmente, a civilização contemporânea, obrigando a um recomeço, a um radical "back to basics". O cinema e, mais abrangentemente, a "indústria do espectáculo" não escapam à mira de Carpenter: por que será que os seus vilões (dos sósias de Michael Jackson em "Fuga de Los Angeles") aos "fantasmas" de Marte têm a aparência e a espessura de vedetas MTV e, em grupo (de novo, os "Fantasmas de Marte"), se movem em movimentos coreografados de videoclip ("Thriller", por exemplo)?
Os excluídos.
Não é de estranhar, portanto, que os heróis de Carpenter venham do lúmpen da sociedade, e sejam quase sempre condenados (Snake Plissken, o herói das fugas de Nova Iorque e Los Angeles), escorraçados, figuras remetidas voluntariamente ou não para as margens da sociedade. É como se Carpenter visse neles, paradoxalmente, o último reduto da ausência de corrupção (pelo dinheiro, pelo conforto, pelo estatuto, pela vaidade), e neles encontrasse um sentido de lealdade e justiça (em tudo semelhantes aos de muitos anti-heróis do western clássico) essencial para que a "revolução" se possa dar.
O pragmatismo.
Outra fórmula básica a que se podem reduzir as intrigas do cinema de Carpenter é esta: ficar parado equivale a morrer, é preciso então agir. "I believe in staying alive", diz Ice Cube em "Fantasmas de Marte". É esse cúmulo do individualismo que o faz mover, o que não o impede de reconhecer que o seu interesse possa coincidir com o da "comunidade". Mas não há sacrifícios nem idealismos nas personagens de Carpenter: há que salvar a pele, e tanto melhor se isso ajudar a salvar a pele a outros.
O moderno classicismo.
O cinema de Carpenter não é um cinema de "ruptura" com o clássico, mas a prova de que a transição da idade clássica para a moderna pode ser apenas uma questão de continuidade. Que Hawks e "Rio Bravo" (o filme desse ano de 1959 que culminou uma década em que a saturação do clássico parecia ir desembocar, pelas mãos de Hawks, Hitchcock ou Ford, em qualquer coisa que afinal terá terminado com eles, com o cinema dos "grandes mestres") sejam referências fundamentais em Carpenter, eis um dado que também se presta a uma leitura simbólica: Carpenter transporta o facho de outra época, sem nostalgia, com progressismo, e sempre consciente do legado de que se quis fazer depositário.
5 comentários:
Talvez por gostar demais da carreira do Carpenter até ao "Eles Vivem", sempre olhei para este filme um pouco de lado. Mas pensando bem, este é daqueles filmes que vai ganhando força com o passar do tempo, e se descobre mais a cada visionamento. Grande Carpenter. É talvez o meu realizador preferido, seguido de perto pelo Sam Fuller.
O meu filme favorito do Carpenter é da fase "pós-They Live". O "Escape From L.A.". O "Ghosts of Mars" é dos que menos me diz, mas vou-lhe dar outra oportunidade. De resto, acho que fora o Halloween, não houve nenhum filme dele que tivesse sido bem recebido na altura da estreia. Tiveram sempre que passar uns quantos anos...
O Fuller é um cineasta extraordinário.
Este texto é fabuloso. Dá tanto vontade ver e rever todos os filmes do John Carpenter como de ler e reler todas as críticas do Luís Miguel Oliveira.
Verdade. Também te aconselho, se ainda não leste, o livro que a Cinemateca dedicou ao Carpenter, coordenado pelo Luís Miguel Oliveira.
Não li, não. Hei-de estar de olho nele na Feira do Livro deste ano, que as edições da Cinemateca são um bocado para o carotas.
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