There's a bluebird in my heart that wants to get out
Charles Bukowski, em Bluebird
"Sail Forth! Steer for the deep waters only.
Reckless, O soul, exploring, I with thee, and thou with me;
For we are bound where mariner has not yet dared go.
And we will risk the ship, ourselves, and all.”
Walt Whitman, in Passage to India - excerto recitado no filme por William Collier Jr.
Do tempo em que os filmes tinham pouco mais de uma hora mas nos diziam tudo. Hoje tentam-nos todos "dizer tudo", não falta realizador que o tente fazer. A diferença, para mim, é que não há em Vidor uma opinião sobre os acontecimentos, a trama parece resolver-se por si e há espaço para as coisas existirem sem segundas intenções. Posso citar as três montagens urbanas que servem de prelúdio, interlúdio e poslúdio à acção em si, que dizem que "as coisas hão-de continuar", que o mundo não pára. Ou seja, a aleatoriedade disto e nisto tudo. Podia ser qualquer outra coisa, podia ser noutro sítio, mas é isto e é aqui. Numa rua de Nova Iorque onde se desbarata e coscuvilha a torto e direito.
"A trama parece resolver-se por si" mas precisa sempre de alguém para a trabalhar. Como? Sabendo de cor o texto. O filme é uma adaptação de uma peça, a estrutura estava delineada, já, mas não saiu um trabalho académico sobre o texto. Porquê? A primeira prova de que Vidor compreende tudo o que está em causa (e que é um dos picos da sua inteligência emocional neste filme) é o regresso do miúdo a casa (antes disto e a espaços, os vizinhos diziam barbaridades sobre a mãe dele estar a ter um caso): a chorar, acabou de andar à porrada, chega e diz aos pais que ninguém lhe pode dizer aquilo, ninguém lhe pode dizer aquilo; Plano amorce, miúdo de costas, pai à esquerda e mãe à direita do plano. "O que é que ele te disse?", pergunta o pai e depois silêncio, o miúdo olha para cima, para a mãe, corta para ela, que baixa a cabeça, e depois para o pai, que percebe tudo. Triangulação soberba e em silêncio disse-se tudo. O plano na mãe é também o plano mais apertado destes primeiros vinte minutos, que quer dizer o quê, exactamente? Há controlo sobre as hierarquias e dos enquadramentos. Eles também contam estórias. Controlo sobre a cadência de tudo isso.
O encontro nocturno entre Rose (Sylvia Sidney) e Sam (William Collier Jr.) é o segundo pico da inteligência emocional de Vidor (o terceiro já aí vem). Aquela conversa nas escadas do prédio. Ele só pensa nela. Vai tudo para dentro dormir e estão lá eles, um para o outro, a falar. Da prisão que é aquele mundo, da felicidade que afinal é tão simples, só é é preciso arriscar um bocadinho. Não dizem tudo porque são interrompidos, primeiro pelo vizinho que está à espera do médico e depois pelo pai de Rose (o mesmo pai de há bocado), que a quer em casa. E levantam-se. Ele pede-lhe um beijo de boas noites e ela dá-lho. E caia eu aqui sem sentidos se não é o beijo mais terno da história do cinema. "You wait and see. You're gonna do big things, someday, i got lots of confidence in you". Jura de amor de seres tão frágeis, seres humanos que só vêem beleza à frente dos olhos. E que são esmagados pelo turbilhão que é a cidade de Nova Iorque...
Terceiro pico: (Até aqui já se anunciou várias vezes que ia haver desgraça, das más línguas às cordialidades mordazes entre vizinhos) Vai tudo ao trabalho. O pai disse no dia anterior que ia numa viagem de negócios. Entra uma violinista no prédio. Steve, o amigo da mãe, circunda as redondezas e esta chama-o da janela porque quer falar com ele. Entra e Sam sai, ao mesmo tempo. Ouve-se um violino a ser afinado. Sam vê a mãe de Rose a fechar a perciana e vai-se sentar, pensativo, nas escadas. O violino começa a tocar, acompanhado ao piano, um prelúdio de Chopin, que se mistura com as rotinas diurnas do bairro. "Olás" e carros, "entrares" e "saires", falatório e vendas de rua. A música pára e há um grande plano de Sam, horrorizado, quando vê o pai a voltar ao prédio. O mundo desaba e esta pequena divagação musical era a calmia absoluta que antecede qualquer desgraça. E esta foi criada apenas por maus olhados e desconfianças. Porque não se chega a saber se a mulher andava a trair o marido ou não.
Outro apontamento, não sei se foi a cópia que eu vi, mas até faz sentido porque o sonoro estava a começar nesta altura (o filme é de 31), mas o som do filme por ser especialmente rudimentar, tem um efeito demolidor. Quando o miúdo (o irmão de Rose) vem de patins pelo passeio logo no princípio do filme e atravessa a rua, forma-se logo uma sensação de grande instabilidade e desconforto. Uma brusquidão que parece dizer que qualquer coisa de terrível pode acontecer a qualquer momento. Os patins no chão, as buzinas, as obras e já muito no fim, os tiros em off. Coisas que doem, mesmo.
A coisa não acaba bem, é um pré-código, mas é justo o final que diz que "o tempo dirá". "Loving and belonging aren't the same thing": O último sacrifício de Rose, a rapariga que se fez mulher pelas circunstâncias, depois de ter perdido tudo...
E fica tanto por dizer...
Está aqui, inteiro.
"A trama parece resolver-se por si" mas precisa sempre de alguém para a trabalhar. Como? Sabendo de cor o texto. O filme é uma adaptação de uma peça, a estrutura estava delineada, já, mas não saiu um trabalho académico sobre o texto. Porquê? A primeira prova de que Vidor compreende tudo o que está em causa (e que é um dos picos da sua inteligência emocional neste filme) é o regresso do miúdo a casa (antes disto e a espaços, os vizinhos diziam barbaridades sobre a mãe dele estar a ter um caso): a chorar, acabou de andar à porrada, chega e diz aos pais que ninguém lhe pode dizer aquilo, ninguém lhe pode dizer aquilo; Plano amorce, miúdo de costas, pai à esquerda e mãe à direita do plano. "O que é que ele te disse?", pergunta o pai e depois silêncio, o miúdo olha para cima, para a mãe, corta para ela, que baixa a cabeça, e depois para o pai, que percebe tudo. Triangulação soberba e em silêncio disse-se tudo. O plano na mãe é também o plano mais apertado destes primeiros vinte minutos, que quer dizer o quê, exactamente? Há controlo sobre as hierarquias e dos enquadramentos. Eles também contam estórias. Controlo sobre a cadência de tudo isso.
O encontro nocturno entre Rose (Sylvia Sidney) e Sam (William Collier Jr.) é o segundo pico da inteligência emocional de Vidor (o terceiro já aí vem). Aquela conversa nas escadas do prédio. Ele só pensa nela. Vai tudo para dentro dormir e estão lá eles, um para o outro, a falar. Da prisão que é aquele mundo, da felicidade que afinal é tão simples, só é é preciso arriscar um bocadinho. Não dizem tudo porque são interrompidos, primeiro pelo vizinho que está à espera do médico e depois pelo pai de Rose (o mesmo pai de há bocado), que a quer em casa. E levantam-se. Ele pede-lhe um beijo de boas noites e ela dá-lho. E caia eu aqui sem sentidos se não é o beijo mais terno da história do cinema. "You wait and see. You're gonna do big things, someday, i got lots of confidence in you". Jura de amor de seres tão frágeis, seres humanos que só vêem beleza à frente dos olhos. E que são esmagados pelo turbilhão que é a cidade de Nova Iorque...
Terceiro pico: (Até aqui já se anunciou várias vezes que ia haver desgraça, das más línguas às cordialidades mordazes entre vizinhos) Vai tudo ao trabalho. O pai disse no dia anterior que ia numa viagem de negócios. Entra uma violinista no prédio. Steve, o amigo da mãe, circunda as redondezas e esta chama-o da janela porque quer falar com ele. Entra e Sam sai, ao mesmo tempo. Ouve-se um violino a ser afinado. Sam vê a mãe de Rose a fechar a perciana e vai-se sentar, pensativo, nas escadas. O violino começa a tocar, acompanhado ao piano, um prelúdio de Chopin, que se mistura com as rotinas diurnas do bairro. "Olás" e carros, "entrares" e "saires", falatório e vendas de rua. A música pára e há um grande plano de Sam, horrorizado, quando vê o pai a voltar ao prédio. O mundo desaba e esta pequena divagação musical era a calmia absoluta que antecede qualquer desgraça. E esta foi criada apenas por maus olhados e desconfianças. Porque não se chega a saber se a mulher andava a trair o marido ou não.
Outro apontamento, não sei se foi a cópia que eu vi, mas até faz sentido porque o sonoro estava a começar nesta altura (o filme é de 31), mas o som do filme por ser especialmente rudimentar, tem um efeito demolidor. Quando o miúdo (o irmão de Rose) vem de patins pelo passeio logo no princípio do filme e atravessa a rua, forma-se logo uma sensação de grande instabilidade e desconforto. Uma brusquidão que parece dizer que qualquer coisa de terrível pode acontecer a qualquer momento. Os patins no chão, as buzinas, as obras e já muito no fim, os tiros em off. Coisas que doem, mesmo.
A coisa não acaba bem, é um pré-código, mas é justo o final que diz que "o tempo dirá". "Loving and belonging aren't the same thing": O último sacrifício de Rose, a rapariga que se fez mulher pelas circunstâncias, depois de ter perdido tudo...
E fica tanto por dizer...
Está aqui, inteiro.
5 comentários:
Posso perguntar como viste? É dos filmes que mais quero ver... Aliás, tenho o objectivo de ver todo o King Vidor que conseguir, muito por causa dos mudos "The Crowd" e "The Big Parade" - mas também "The Fountainhead".
Está em domínio público, pode-se fazer download aqui.
Tenho que ver o "The Fountainhead", já ando a adiar há imenso tempo...
E eu tenho de ver este que também já ando a adiar à muito tempo. E o teu texto deixou-me em pulgas. Já vi o Sorcerer e é um filmão sem dúvida.
Este é muito, muito bom. Eu já o andava para ver desde que o José Oliveira e o João falaram do filme nos blogs deles. E valeu a pena. Ainda não vi o Wages of Fear, do clouzot, o Sorcerer parece que é um remake desse. Só filmes para ver, só filmes para ver... hehe
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