segunda-feira, 28 de outubro de 2013

SUSANA (1951)


por João Bénard da Costa

Susana foi um dos raros filmes de Buñuel exibidos em Portugal nos anos 50, ao que parece sem qualquer objecção por parte da censura (que nessa década proibiu Los Olvidados, Subida al Cielo, El, Cela s'Appelle l'Aurore, Nazarín e La Fièvre Monte à El Pao). Que se saiba, nenhuma censura de nenhum país levantou problemas à exibição deste filme. Ora, paradoxalmente, esta é das obras mais subversivas de Buñuel, e Susana a primeira figura da linhagem erótica que, no futuro, daria La Joven, Viridiana, Le Journal d'une Femme de Chambre, Belle de Jour, Tristana, Cet Obscur Objet du Désir.

Esta tolerância com Susana não se deve a qualquer liberalismo de momento ou a qualquer distracção dos censores. Deve-se à suprema habilidade de Buñuel no uso da antífrase, ou seja em construir um filme cujo texto diz exactamente o contrário do seu contexto. Para o espectador desprevenido ou inocente (e os censores não costumavam ser particularmente argutos) não há filme mais moral: uma não casta Susana (Susana, a Perversa, foi o título do filme em França) tenta fazer o mal numa santa e unida família. Consegue fazer vacilar muita gente, mas, no fim, a sua perversidade é descoberta e castigada e a paz e a harmonia voltam a reinar. O bem triunfa sempre. A moral também. Só que todos os substantivos e adjectivos de conotação ética usados no período anterior (moral, casta, perversa, mal, santa, unida, castigada, paz, harmonia, bem) são a colocar entre todas as aspas possíveis, porque tudo é o contrário do que parece ser. Talvez não haja na história do cinema, ou na história de qualquer arte, muitas fintas à censura tão hábeis como Susana, outra das obras culminantes de Buñuel. É conhecida a admiração que Buñuel tinha por Sade, que expressamente evocou em L'Âge d'Or, com o episódio das Cento e Vinte Jornadas de Sodoma, representando o chefe das orgias sob os traços de Cristo. Entrando no sistema, Buñuel já sabia que não se podia permitir graças dessas (só nos anos 60 e 70 voltou a poder ser tão livre e tão explícito). Mas Susana é uma obra que me parece relevar especificamente do universo de Sade, concretamente de Justine ou les malheurs de la vertu. À sua maneira (que evidentemente censura alguma toleraria), Sade também praticou nessa obra a antífrase: na dedicatória inicial a Constance, "a sua boa amiga", diz-lhe que o livro é "à la fois l'exemple et l'honneur de ton sexe (...)""Ce n'est qu'à toi qu'il appartient de connaître la douceur des larmes qu'arrache la vertu malheureuse, détestant les sophismes du libertinage et de l'irréligion" (...) e que a sua finalidade é alcançar "une des plus sublimes leçons de morale que l'homme ait encore reçue".

Quem conheça o livro e as "lições de moral", percebe a antífrase de Sade, já que os "malheurs" da "virtuosa" Justine só existem para permitir as famosas descrições eróticas do autor, erotismo acentuado pela "inocência" e pela "virtude" da protagonista ao contar a sua vida ou como, tantas vezes, se teve que tornar "catin par bienfaisance et libertine par vertu". Quando esses "malheurs" terminam e Justine pode viver em paz no seio da família, tornou-se "sombria, inquieta, sonhadora" e acabou por ser fulminada por um raio.

A "virtude" de Justine é o equivalente da "perversidade" de Susana, filme que bem podia ter como subtítulo "les bonheurs de la perversité". Tudo começa como Justine acaba. Leia-se a descrição da tempestade final em Sade e tem-se a descrição da assombrosa sequência inicial de Susana: "L'éclair brille, la grêle tombe, les vents sifflent, le feu du ciel agite les nues, il les ébranle d'une manière horrible; il semblait que la nature ennuyée de ses ouvrages, fut prête à confondre tous les éléments pour les contraindre à des formes nouvelles". Só que a tempestade inicial na cela do reformatório onde prenderam Susana "para a ensinar a ser boa", não termina com um raio que a parta, mas com o "milagre" (primeira das supremas ironias) que lhe permite a fuga. Invocando Deus, de quem é criatura, e cujos desígnios são impenetráveis, Susana vê as barras da janela partirem-se e permitir-lhe a liberdade. Com fundo de arsenal demoníaco (trovões, raios, chuva) arrasta-se como a cobra bíblica, empapada em chuva (e, assim, com as formas mais ostensivamente sublinhadas) até à quinta paradisíaca onde a irão receber.

Ao inferno sucede-se o céu, e o espantoso décor exprime claramente que Susana, anjo exterminador, passou de um a outro. O mundo dos santos não lhe irá resistir. A imagem do paraíso (a quinta evoca-o expressamente) começa a perder-se quando ela se aproxima. Inexplicavelmente, o potro morre à nascença. O "mal" chegou. No final, Buñuel procede à antífrase contrária: quando a vida na fazenda se tornou um "inferno" (devido à presença de Susana); quando Jesus, pai e filho (não estou a falar da Santíssima Trindade, mas não juro que Buñuel o não estivesse) se sucederam à porta do quarto de Susana (ou dentro dele); quando a própria e virtuosíssima D. Carmen espancou Susana; quando todos estiveram quase a assassinar-se uns aos outros; a polícia chega, prende Susana e, em cinco minutos, o inferno volve-se no paraíso inicial. A mãe repreende suavemente o filho por começar a comer antes do pau (noutro sentido, também começara, sem que com tanta doçura o censurassem) e a família reúne-se amorosamente à mesa, sob o olhar contente da criada, como se nada se tivesse passado. Patinhos e cordeirinhos voltam a passear e a égua restabelece-se, por encanto. Cinco minutos, disse eu. Em termos de filme é talvez menos, o que torna mais inverosímil tal desfecho que só funciona pelo contraste implacável com tudo o que aconteceu, desde a fuga de Susana até à segunda prisão. Ninguém, com o mínimo de juízo, pode tomar a sério tal desfecho e, menos do que todos, Buñuel, que só o utilizou por redução ao absurdo, para implacavelmente desmontar aquela farsa de "paraísos" e "infernos", tão contíguos e tão afins. O realizador lamentou, em várias entrevistas, não poder ter sido mais irónico no final. Ainda bem que o não foi: essa implacável secura é o efeito mais subversivo, o "quantum satis" deste conto imoral transformado em conto moral (ou vice-versa).

Muitos anos depois, Pasolini, no Teorema, serviu-se de uma figura análoga para dizer o mesmo. Mas o seu ambíguo anjo é muito menos explosivo e subversor que Susana, a das aranhas, dos caldos e do nome casto.

E, já que falei de nome casto, por aí começo na breve análise do filme de que ainda apenas se citaram os "parágrafos" inicial e final. Na sequência da sedução de Alberto (entre livros e referências culturais) este explica-lhe o significado do nome de Apolo e exemplifica com o dela que quereria dizer castidade. Será extrapolar, pensar que se chama Jesus o primeiro seduzido (entre galinhas, como em Los Olvidados), o que a vende por trinta dinheiros e o que a denuncia à polícia? A pergunta fica, mas é de bom tamanho.

Mas, se aí se pode estar a fantasiar, não o estamos certamente quando pensamos nos lugares de sedução (galinheiro, poço); quando vemos Guadalupe de arma na mão ser igualmente seduzido; ou na inadjectivável (ó céus!) sequência em que os ovos se esmagam e a gema escorre pelas pernas de Susana, manchando-a a ela e a Alberto. Ou na simbologia religiosa (cruzes, santos) tão subversiva com a erótica (a oração ao crucifixo!). Ou no chicoteamento de Susana pela doce D. Carmen. Ou no súbito beijo que o marido dá à mulher, perfazendo a posse por interposta pessoa. Ou nas mãos entaladas nas portas. Mais uma vez - repito: para uma erótica assim é preciso remontar a Sade.

Dois parágrafos finais: o primeiro para Rosita Quintana, absolutamente genial. Houve quem risse (e talvez ainda hoje) dos seus trejeitos e do seu permanente gesto de baixar o decote. Quem ironiza, esquece a importância da figura da repetição na imagética surrealista e esquece o que o crítico mexicano José de La Colina observou a Buñuel na "entrevista-fleuve" que com ele fez: "De cada vez que Susana abre o decote para seduzir um homem parece parodiar a frase de Goebbels: 'Sempre que oiço a palavra moral, tiro as mamas para fora'". Boa ou má actriz (pouco importa) Rosita Quintana, entre as aranhas, os galos, as éguas e o bando de perús, é uma das mais extraordinárias presenças eróticas não só da obra de Buñuel como da história do cinema.

Por fim, há que notar como o estilo de Buñuel muda neste filme, em correspondência com o que faria em filmes futuros de sentido análogo: abandonando a fixidez da câmara (tão típica, por exemplo de L'Âge d'Or ou de Los Olvidados), cortando com o plano-sequência (são raros neste filme), a "respiração" da objectiva é um rodopio constante, saltando de personagem em personagem, de plano em plano, e ligando-os a todos no vórtice comum deste "abismo de desejo". Vórtice que é ainda o equivalente do final da narração da Justine de Sade: aí se fala do "voyageur égaré" que "voit en tremblant les sillons de la foudre". Neste filme tudo é viagem, perdição e visão fremente. Por muito que pareça o contrário, ou precisamente porque parece o contrário.

in AS FOLHAS DA CINEMATECA - Luis Buñuel

2 comentários:

Loot disse...

O cinefiesta vai homenagear o Buñuel este fim do mês :D

Que realizador maravilhoso.

Abraço

João Palhares disse...

Pois, eu sei. É pena é não os passarem no Porto, também, como no ano passado.

É grande, sim senhor.

Abraço