segunda-feira, 29 de junho de 2020

Um olhar sobre Raoul Walsh


por Jean-Claude Biette

Ao longo de toda a produção de Raoul Walsh podemos observar um conjunto de traços comuns a muitos filmes de Hollywood do período áureo anterior ao separatismo conquistador da televisão, quando o reinado dos géneros, como o western, o filme de aventuras ou o filme de guerra (para citar apenas aqueles em que Walsh realizou os seus melhores filmes) tinha tido tempo de correr riscos, de avançar livremente, de encontrar regras, de se tornar mais denso, de se tornar mais clássico, de perdurar em majestade finita.

Nessa altura, a narrativa opunha-se à dramaturgia num duelo[1] em que esta última era a parceira antagónica privilegiada, ao passo que o projecto formal, quase minoritário a cada novo passo, não ultrapassava a aplicação correcta, ou elegante, na melhor das hipóteses, de um certo número de convenções tacitamente aceites por todos, produtores, realizadores, actores, técnicos, público e crítica do período anterior a qualquer política de autores. Desde o fim do cinema mudo, a câmara tem a missão de fazer esquecer a sua presença para que o mundo representado, visto e ouvido no menor dos filmes, graças a uma complexa e pesada aparelhagem técnica (a narrativa e a dramaturgia são também técnicas, por mais antigas que sejam), com a obscuridade da sala a completar a autentificação do brilho ou da intensidade do filme, surja tão verosímil como o real natural, como se o real se pusesse de repente, nesta condensação de acções encadeadas, de movimentos múltiplos e de mudanças de perspectiva, a contar histórias e a produzir dramaturgia.

Foi esse o credo tácito do cinema hollywoodiano, que durante muito tempo se exprimiu nesta língua comum, antes de começar no início dos anos 40 a perder um pouco da sua segurança de uma grande comunidade.

Orson Welles como elefante branco e Jacques Tourneur como térmite, foram os primeiros a incomodar o formigueiro. Em breve, outros cineastas fariam ponto de honra secreto em modificar as palavras e, a seguir, as frases da linguagem comum utilizada, que se perpetuaria no pós-guerra: Samuel Fuller, Nicholas Ray ou Anthony Mann, cujo estilo, a escolha dos ingredientes dramatúrgicos e a liberdade conquistada para as suas personagens são a afirmação de que o cinema mudava, que podia e queria ser novo. Na sua maturidade próxima, Run of the Arrow, Johnny Guitar e The Far Country, para tomarmos apenas o western como exemplo, são filmes ainda enraizados na crença de que um género é uma coisa suficientemente flexível e viva para poder acolher os desvios ideológicos e existenciais que separam as gerações. Esta tomada de poder estilístico sobre a "realidade" anterior inocentemente aceite por todos como linguagem universal de Hollywood (visto que Hollywood é quase o universo) terá, além disso, permitido que jovens críticos e futuros cineastas estabelecessem algumas referências preciosas (à custa de ver pouco Ford e ainda menos Walsh); e a televisão preparava a sua ascensão enquanto os géneros declinavam lentamente. Quando só o cinema reinava, os géneros estavam lá para estabelecer na sociedade uma repartição de territórios com fronteiras: alguns tinham a função de falar das realidades da altura, outros tinham a função de as fazer esquecer. Entre a função do género e o objecto daí resultante existia toda a distância que separa um bom realizador de um autêntico encenador ou de um cineasta. Assim, as preocupações de uma época podiam ser exprimidas por um desvio de cineasta (por vezes favorecido por um argumento, quando não o era por uma produção) dentro de um género em que elas não tinham lugar. É o caso do mccarthysmo codificado em westerns como Johnny Guitar ou ainda Silver Lode de Allan Dwan.

Nos anos 40, todos os filmes de Walsh atingem o cumprimento feliz do seu programa narrativo dentro dos limites consentidos - na melhor das hipóteses, ou ditados, no pior dos casos - pela casa de produção, a Warner Bros. Deste modo, os filmes - de mar, de guerra, de aventuras, westerns - cujo actor principal é Errol Flynn têm em comum o facto de, quer tenham sido realizados por Walsh ou por outro (digamos, por exemplo, Curtiz), contarem uma história combinando acções e peripécias segundo um encadeamento no qual as raras pausas reservadas à dramaturgia - ou seja, um tempo para que os actores dêem algum livre curso a uma interpretação controlada - estão previstas de modo a que a acção seja retomada de forma ainda mais vigorosa. Talvez se deva a esta época a pouca teorização que Walsh exprimiu quando dizia que o cinema era "acção, acção, acção", coisa que qualquer outro realizador poderia ter dito.

O primeiro filme de Walsh da série Flynn foi They Died with Their Boots On, em 1941, e o último foi Silver River, em 1948. Esta série inclui, no meio de filmes menores, dois outros grandes filmes, Gentleman Jim (1942) e Objective, Burma! (1945). Nos intervalos desta série, Walsh roda também outros filmes sem Errol Flynn, dos quais pelo menos um se afasta muito: a obra-prima que é Pursued (1947).

Quando se tenta distinguir os traços característicos do conjunto dos filmes que ele realizou entre 1915 e 1964, reflexo amplificado do cinema hollywoodiano ao longo da sua evolução, podemos ver que há algo de pessoal em muitos deles, excelentes mas muitas vezes menores e enclausurados na encomenda, tal como na longa vintena de filmes realizados entre 1941 e 1964, que, de longe, os ultrapassam: um equilíbrio, que parece resultar mais da natureza do autor do que de uma arte deliberada, entre a truculência e a distância. Com efeito, Walsh dá às suas personagens não só um lugar preciso numa sociedade, um carácter identificável de que os actores produzem a imagem exacta, mas reduzindo, sem o afirmar, o heroísmo (no sentido neutro de herói do filme) até ao nível do comum destino humano, afecta-as com uma relação pessoal com a vida, que se inscreve a cada passo numa representação do mundo de forma única, como num quadro que, a partir do momento em que o expomos ao lado dos precedentes, manifesta também a grande variedade do pintor.

No conjunto da obra de Walsh, cada filme é, na sua duração dramatizada, no enredo encantador que os espaços desenham, uma representação do mundo, um teatro não falado do universo, o receptáculo ocasional de uma harmonia pouco segura. Combatem-se duas forças, muitas vezes dentro da mesma personagem: a truculência (o impulso associal para o mundo) e a distância (o estado alerta dos solitários, a consciência daquilo que afasta do todo e do que pode aproximar do outro). Isso dá muita liberdade aos actores e às actrizes. O próprio Walsh foi actor durante a sua juventude e era talvez ao seu conhecimento do teatro shakespeariano, subjacente à maior parte dos seus filmes, que ele devia esta singular aptidão para sentir em cada filme que, na medida em que se ele compõe de elementos materiais sempre diferentes (história, género, actores, cenários, espírito do tempo e interdições de representação), não tinha outra opção senão produzir uma representação do mundo única, incessantemente recomeçada, incessante e inevitavelmente diferente.

Supondo que a visão que Walsh tinha do mundo era una e avessa à evolução, ele procedeu, contudo, nesta perspectiva de representação, muitas vezes de um filme para outro, a ligeiras deslocações de registo no desempenho dos actores, como se, tendo em conta a soma dos elementos singulares de que se compõe, cada filme pedisse um reajustamento da tonalidade dramática que teria ditado uma grande poética das representações do mundo. Podemos observar esse aspecto na maior parte dos seus filmes a partir de meados dos anos 40. Isso começa pela simples variedade dos caracteres psicológicos interpretados por Flynn nos sete filmes que Walsh e o actor levaram a cabo juntos: foi nessa altura que Walsh se tornou um grande cineasta. O realizador tinha desde há muito tempo o génio das distâncias, uma maneira única não só de lançar os actores e de encontrar um ritmo, mas também de reflectir o mundo na sua encenação desde o ponto de vista das distâncias físicas e do ponto de vista das distâncias morais, materializando-as umas sempre no espaço das outras. Mas, mais tarde, os frente-a-frente nos olhares, nas frases e nos silêncios que interiorizam a narrativa em Band of Angels (1957), The Naked and the Dead (1958), Esther and the King (1960) e A Distant Trumpet (1964) têm uma beleza definitiva que não se conhecia na sua produção dos anos 40, assim como as paisagens a perder de vista das montanhas, dos bosques, das margens e do mar em Colorado Territory (1949), Distant Drums (1951) e Sea Devils (1953) reanimam um pouco da antiga poesia do mundo.

Como explicar - e será possível explicá-lo? - que até ao fim dos seus dias de actividade, ou quase, ele tenha frequentemente realizado um filme menor antes ou depois de um filme inesquecível? "Quandoque bonus dormitat Homerus[2]", poderia ter-nos sussurrado o general Alexander Quait em A Distant Trumpet (1964), esplêndido ponto final da sua obra. Podemos adivinhar como nasce a indiferença em certos filmes de Nicholas Ray, tanto estes surgem directamente de uma inspiração emotiva que age ou não age; em Walsh é mais difícil: o ofício tem uma parte sólida e constante nos seus filmes, há nele um realizador desperto. Mas um êxito do ofício não nos ensina nada de essencial, no filme, sobre aquele que com ele se regozija. É nos momentos em que Walsh é plenamente cineasta que um bom filme sem êxito como Along the Great Divide (1951) pode elucidar-nos o que é que lhe faltou para que o seu filme fosse o que poderia ter sido. O argumento é tão denso e cheio de intenções que ele o obriga a lutar incessantemente para dar vida a personagens que não a querem e que têm dificuldade em desembaraçar-se dela. Algumas boas cenas isoláveis reavivam o desentolar de um filme cujos termos dramatúrgicos (as relações de filiação regularmente declinadas são um desafio às capacidades interpretativas dos actores - Kirk Douglas e Virginia Mayo - para inscreverem uma verdade sustentável no tempo) podem, ainda, ter consistência no interior de uma sequência, mas que têm dificuldade em substituir-se umas após as outras e em assegurar uma sedimentação real da narrativa. O recurso à psicanálise frustra-se, ao passo que quatro anos antes aureolava discretamente Pursued com uma complexidade suplementar. A fraqueza do argumento encontra-se também no facto de não ser deixado nenhum tempo dramatúrgico entre as sequências, o que permitiria, quanto mais não fosse através da sombra trazida por algumas elipses, fazer viver esta história sem privá-la da sua dureza.

Na medida em que Walsh realizou um grande número de obras, por vezes várias no mesmo ano, os grandes filmes surgem apenas quando se encontra o bom equilíbrio, não só entre truculência e distância (o que nunca falta e que torna atractivos os seus filmes menos bons), mas sobretudo entre os imperativos categóricos da narrativa e as necessidades opostas (que forçam um abrandamento da acção que faz avançar a narrativa) de dilatação dramatúrgica. Quando este equilíbrio (que deve ser, graças ao "duelo", um ligeiro desequilíbrio) não é achado, é aos constrangimentos erróneos da produção e à ideologia espectacular das companhias que se devem as falhas que revelam subitamente os preconceitos de uma época, pois o génio de Walsh não deixa de ser exercido, tanto nesta arte de dirigir uma narrativa nitidamente mais depressa do que a velocidade de cruzeiro do espectador, como na arte de interrompê-la para abrir as perspectivas da dramaturgia, mas sem se furtar a fazer a junção entre ambas. É verdade que alguns argumentistas lhe convinham mais do que outros. O mesmo acontece com os actores, os operadores, e talvez alguns técnicos cujo trabalho continua a ser difícil de caracterizar exclusivamente através do visionamento dos filmes.

Se, pelo contrário, tomarmos em consideração Silver River (1948), filme cujo tema é a prata na sua relação mais material com a guerra (a da Secessão), com o funcionamento de uma cidade mineira (Silver City, pontuada por uma visita do presidente Grant) e com as relações entre um militar despromovido por ter tomado a iniciativa de queimar os cofres de dinheiro de que os nortistas poderiam vir a apoderar-se, McComb (Errol Flynn), e um casal de empresários mineiros cujas bases sentimentais deixam a desejar, os Moore (Bruce Bennett e Ann Sheridan), podemos ver que a relação entre a narrativa e a dramaturgia está bem preparada pelo argumento que, ao criar paralelamente ao trio de protagonistas duas personagens com um papel inversamente simétrico, dá o que fazer a Walsh, que lhes confia, de uma forma assimétrica, como veremos, a responsabilidade dinamizadora do filme: ao primeiro, um chantagista humilhado por McComb, "Banjo" Sweeney (Barton MacLane), dá-lhe o comportamento intempestivo das intervenções violentas, ou seja, a acção; ao segundo, um advogado alcoólico sem clientes contratado por McComb, John "Plato" Beck (Thomas Mitchell), atribui-lhe a insinuação moral que envenena uma outra zona da narrativa com a história bíblica de David, que manda para o combate o marido da mulher que ele deseja.

Graças a esta estrutura clara e bem dirigida, Walsh está bastante livre para estabelecer à sua maneira o diálogo e o relance dialéctico entre a narrativa e a dramaturgia, de modo que se no fim a narrativa leva a melhor, deixando-nos a possibilidade de interpretar o sentido, o realizador terá, contudo, sido obrigado a passar pelos abrandamentos de ritmo da dramaturgia, que conferem ressonância às decisões dos protagonistas, estimulados simultaneamente pelo amor e pela ambição (McComb e Georgia Moore).

Talvez seja justo observarmos que neste duelo entre narrativa e dramaturgia que atravessa um bom número de filmes, em que uma ou a outra conquistam o poder, consoante os casos, é aquela que perde que provoca as cenas mais marcantes de um filme. É justamente nessa medida que aquela que não é a regra favorece os momentos de excepção. Adopto de boa vontade o termo, proposto por Pierre Léon, de cena insubmissa*. Podemos também reparar que frequentemente nos filmes de cineastas uma ou várias sequências fogem ao registo geral do filme, não só pela sua tonalidade, na condição de que o terceiro termo (o princípio formal) permaneça minoritário, mas também pela sua escrita visual ou pelos seus cortes. Assim, em Silver River, há três sequências encadeadas no decurso das quais os elementos da narrativa diminuem a favor da dramaturgia. Primeira: McComb e "Plato" Beck contemplam uma vasta extensão de planaltos ladeados por montanhas ao longe, património futuro, com um castelo por construir, do ex-militar cuja fortuna cresceu porque ele decidiu alterar as regras do jogo em proveito próprio. No momento em que ambos abandonam o lugar, um homem ferido de morte vem até junto deles e cai a seus pés, a tempo de avisá-los de que os índios Shoshoni (que nunca veremos no filme) o atacaram. McComb leva o corpo no seu veículo e pede ao advogado silêncio sobre a questão dos índios. Segunda sequência: o marido da mulher cobiçada, proprietário mineiro, anuncia ao seu associado, McComb, que parte imediatamente para o território Shoshoni para lá chegar antes dos outros prospectores de jazidas. Perante o olhar do advogado, McComb permanece mudo. Terceira sequência: no grande bar vazio anexo à sala da cena anterior, assim que o marido atravessa a sala, o advogado recomeça a beber e, embriagado, recrimina McComb (que curiosamente costuma beber leite). Acaba por esbofetear o seu patrão e amigo, que cai e, enquanto o outro o levanta, o coloca sobre uma mesa de jogo, da qual retira o forro para o cobrir, ele lança-lhe um último aviso, recordando-lhe a história do rei David. Os planos destas três sequências têm uma amplitude que lhes é própria. Agora carregada de drama, a narrativa recupera os seus direitos. Desta forma, a crónica histórica, impulsionada por relações económicas em permanente movimentação, recebe o contributo de possantes dados individuais que cumprem a sua encarnação, em primeiro plano. McComb é uma das grandes personagens criadas por Walsh. O substituto de Errol Flynn será, mais tarde, Clark Gable. Era uma época - a dos filmes a preto e branco realizados para a Warner - em que Walsh, por vontade própria ou não, tinha sabido aceitar esta vitória final da narrativa, conferindo-lhe um sentido pelo lado da ambiguidade. Há três excepções em que se vê a dramaturgia levar a melhor sobre a narrativa: Pursued (1947), Colorado Territory (1949) e White Heat (1949).

Nesta regulação pelos géneros, em que alguns jovens cineastas - Fuller, Ray e Mann, para citá-los de novo - realizam também westerns, produz-se uma compressão temporal ambivalente, pela qual as regras que definiam os géneros em cada produtora serviam também para realizar uma filtragem, mais ou menos apertada, na representação do presente e do passado para um público mundial, com uma espécie de inconsciência colectiva acerca daquilo que neles se trama de História, quando esta, por si só, ocupa, a cada passo, a realização de um objecto de espectáculo. Enquanto os jovens cineastas, depois de Citizen Kane, conferem aos seus filmes um afastamento implícito em relação ao género, convidando a uma percepção moderna de acontecimentos antigos assombrada pela descoberta dos campos de extermínio, pela memória de Hiroxima e envenenada pelo mccarthysmo, que lançou o fogo da histeria em Hollywood, os cineastas mais velhos, como Ford, Dwan ou Walsh, que aprenderam o cinema junto de Griffith, trazem ao género, tal como ele se redefine a cada momento no presente, uma anterioridade fundadora - eles representam a História que têm, e que, se não foi vivida e observada, foi pelo menos recolhida junto de testemunhas directas ou através da escuta de uma transmissão oral - que, ao submeter o filme aos apelos do presente, o arrasta na direcção das fontes ainda vivas do passado. Assim se foi construindo uma tradição real dessa coexistência de um fundo sedimentário de épocas, sem que se tomasse consciência de se tornar uma tradição. Hawks, que trabalhava num presente perpétuo, não devia sentir-se retido pelo passado nem atraído por um futuro intangível. Enquanto Griffith permanecia como o grande cineasta da aurora do século XX, impedido de chegar à claridade do dia, DeMille terá sido o único cineasta do século XIX: é ao facto de ele ter efectivamente rodado filmes no século XX que devemos o seu estranho exotismo erótico.

Walsh sabia, em cada rodagem, onde encontrar a verdade apresentável das personagens. Um conhecimento experiente das paixões guiava-o na senda escarpada que vai das personagens aos actores e, depois, dos actores às personagens, sem que ele deixasse de observar o mundo. Toda a sua obra se desenvolveu em estruturas restritivas, por vezes tão prosaicas que em Hollywood quase ninguém nesse vasto domínio - a não ser Ford - suscitou tanta poesia possante e pudica. A violência das paixões na sua obra é sempre gerida pelo segredo bem guardado da distância certa. Walsh conhecia também o segredo da repartição dos planos para chegar a uma dramatização infinita no espaço.

O uso da cor e, mais tarde, do cinemascope permitiu que o seu cinema pudesse modificar um dia as proporções da luta entre a narrativa e a dramaturgia. Então, na maior parte das vezes, é a dramaturgia que leva a melhor, sem que a narrativa, tornada um discreto agente do contexto referencial, viesse alguma vez a sofrer com isso. Exemplos esplêndidos de cenas insubmissas - aqui, portanto, de expressões repentinas da narrativa: em The Revolt of Mamie Stover (1956), o ataque a Peal Harbor, ou ainda, em Band of Angels (1957), as três narrativas (a narrativa «marítima» e as duas narrativas de Hamish Bond). O cinemascope terá induzido nos anos 50 um abrandamento da acção: The Tall Men (1955), por vezes no limite da paralisia contemplativa, põe em destaque as relações interiores das personagens. Isoladas no espaço desse amplo ecrã, elas deslocam-se sem pressas, tal como o fariam num palco. O corte do plano torna-se mais raro. Estamos no Teatro do Cinemascope. Enquanto Clark Gable (será uma ironia propositada de Walsh?) marca o seu lugar na distância que o separa ainda de Jane Russell por estas palavras reiteradas: "I dream small" ("Eu sonho em pequeno"), o filme, por seu lado, continua majestosamente a ver o mundo em grande.

[1] V. «Une règle de trois», in «Le gouvernement des films», Trafic, nº 25, Primavera 1998.
[2] «Por vezes o bom Homero dormita» (Horácio, Ars Poetica)
* N. do T. «Scène rétive», no original em francês.

Trafic, nº 28.
Tradução de Jorge Filuzeau Garcia

in «Raoul Walsh», Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, Lisboa, 2001 [org. Manuel Cintra Ferreira].

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