terça-feira, 29 de janeiro de 2019

A Grande Aventura de Raoul Walsh


por Peter von Bagh

Depois das homenagens a Josef von Sternberg, Frank Capra, John Ford e Howard Hawks, eis o nome que representa a aventura e o cinema puro, a acção e a meditação, o espectáculo e o silêncio: Raoul Walsh (1887-1980). Como escreveu Jean Douchet, os filmes de Walsh são “uma aventura interior”: “Este shakespeariano apaixonado é um realizador intensamente fisico porque descreve acima de tudo o tumultuoso mundo mental”. O nosso programa é composto por uma selecção de filmes mudos, importantes por serem frequentemente negligenciados, e de alguns tesouros do período sonoro, a partir da magnífica aventura em formato panorâmico de The Big Trail de 1930.

Walsh foi um rebelde solitário em Hollywood: recusou a rede de segurança dos ‘argumentos de ferro’ e criou ondas de ideias "intraduzíveis". Era um guardião leal (sem o controlo e o prestígio de um Ford ou de um Hawks) do coração puro e irredutível da época de Griffith, e modernista por instinto. Ainda que tenha trabalhado sempre dentro do sistema, estava mais próximo do espírito de Stroheim ou de Ingram e regressava sempre ao sonho original da liberdade criativa.

O seu amigo Errol Flynn descrevia esta postura como um “entusiasmo fundamental” por “todas as coisas simples da vida: respirar, comer, beber, pescar, fruir, festejar e todas as outras coisas que começam por f”. Walsh interpretava do modo mais natural, espontâneo e relaxado fosse que género fosse, infringindo as convenções: este estado de felicidade indisciplinada é um elemento essencial nos seus filmes.

Sabia tratar o filme de acção (os westerns, os filmes de guerra) esvaziando-o completamente de acção. Tinha um sentido do absurdo admirável: só num filme de Walsh é que se pode ler a legenda, “a melhor guerra a que já assisti”, e só Walsh é que pode fazer passar frases como “Charmaine estava fascinada pela visão dos soldados que caminhavam para a morte” mantendo uma seriedade profunda. A guerra, um tema frequentemente desencarnado, inspira em Walsh uma inimitável dialéctica de farsa e de náusea (como em O Preço da Glória). Os homens são carne para canhão, não há metas escondidas e idealizadas. Walsh sabe ser igualmente duro com a sociedade e com a natureza humana, seja um ringue, uma empresa comercial ou a primitiva acumulação de dinheiro numa cidade do Oeste. Mas por baixo desta dureza palpitam um erotismo e uma vitalidade que incutem energia a tudo: actores, géneros, trama. Para não falar do sentido concreto da natureza, descrita frequentemente como um espaço maravilhoso atravessado pela emoção de uma morte grotesca.

A fantasia futurista de O Ladrão de Bagdad, com os seus cavalos alados, diz tudo sobre o boom financeiro e as ilusões dos anos vinte. As crises histéricas que caracterizam muitos filmes tardios exibem a crueldade em que a riqueza americana se radica: com as suas histórias de psicopatas, Walsh foi um observador lúcido da neurose do século, que também teve o seu declínio no equivalente romântico de amor e morte.

Walsh tinha um talento extraordinário para a observação do ambiente social. Como escreveu Manny Farber, sabia “tornar poético um ambiente pequeno-burguês melancólico e ferido”. Farber acrescenta que Walsh é “primo do Renoir de Toni, do Vigo de O Atalante, do Brassaï fotógrafo de estrada: um primo dedicado às pessoas, mais vivaz e divertido do que os seus equivalentes franceses”. Poucos souberam evocar a acepção do vigésimo século de modo tão belo e tangivelmente vivo.

in «La Grande Aventura di Raoul Walsh», Cineteca di Bologna, 2012 [org. Peter von Bagh]

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