sábado, 26 de janeiro de 2019

TODAS AS BOBINES DE RAOUL WALSH.


por Philippe Garnier

A Cinemateca de Paris apresenta uma retrospectiva opulenta do realizador. 

Os filmes mudos e os primeiros falados de Raoul Walsh distinguem-se pela sua diversidade extraordinária. «Fazia-se um filme de boxe, depois qualquer coisa com um toureiro, um filme no circo, um western, uma comédia, uma ópera sem cantora, um filme de gangsters, as pessoas iam muito ao cinema.» Em cinquenta anos, Walsh fez mais de cem filmes; foi capaz de oferecer variedade. Mas também se poderia falar das misturas de tonalidade em praticamente todos os seus filmes. Talvez seja isso, com uma certa melancolia, que caracteriza melhor o cinema deste veterano tão mais difícil de louvar dado as suas proezas técnicas não serem facilmente identificáveis. Mesmo no fim de uma obra tão radiosa como Gentleman Jim, Walsh não hesita em tornar tudo mais lento com a chegada de John Sullivan, o campeão caído. Ward Bond é tocante nessa sequência; mas, para além disso, é este momento que valoriza todos os outros e volta a pôr o filme em perspectiva: Jim Corbett também vai ter de ceder um dia o seu cinto de ouro. 

A energia dos filmes de Walsh, como apontam Tavernier e Coursodon, vem menos da montagem que do ataque dos planos, e sobretudo das mudanças de ritmo. Assim, antes do delírio final de White Heat, Cagney passeia-se pelos bosques com um longo monólogo. 

Entre os seus confrades mitómanos (Ford, Hawks, Von Stroheim, etc.), Walsh talvez seja aquele que teve a juventude mais colorida (cowboy, filmando Pancho Villa em Juarez e interpretando-o para Griffith; também o primeiro a filmar no Tahiti). É sem dúvida por isto que ele se contentava com corridas de cavalos como distracção. Quem mais poderia filmar um gangster sentado sobre os joelhos de sua mãe, ou gabar-se de ter sido cegado de um olho por uma lebre (que passou à frente do pára-brisas, numa estrada do Nevada onde ele rodava e interpretava In Old Arizona em 1929)? 

Na senda de Ford. O nome de Walsh evoca o western, que ele aborda mais tarde, com filmes como Colorado Territory (1949), Tall Men (1955), Um Rei e Quatro Rainhas (1956), até ao seu último filme, A Distant Trumpet (1964). Passam-se dez anos entre a sua primeira tentativa importante (The Big Trail, 1930) e Comando Negro. Há boas razões para isto e chamam-se todas John Ford. 

Com The Big Trail, Fox e Walsh tentam arrebitar um género abafado com meios colossais, filmando em 70 mm em sete Estados do Oeste, com um actor principal desconhecido. John Wayne fazia pequenos papéis com Ford, mas Walsh deu-lhe a sua oportunidade. Devido a um argumento com defeitos como os actores, o filme, apesar dos seus momentos altos, é um fracasso ­de que Walsh vai demorar tanto tempo como Wayne a recuperar. Antes de se juntar à Warner, Walsh ainda vai fracassar com Comando Negro. O suficiente para fazer esquecer que foi ele quem lançou Victor McLaglen (em O Preço da Glória). Ford vai-se apressar a pôr o irlandês em Mother Mchree, e na sua trupe para o resto da sua carreira. 

Os anos 30 são nefastos para Walsh: Me And My Gal oferece belas trocas de palavras entre o polícia Tracy e a empregada Joan Bennett, e encontrámos-lhe a mesma naturalidade em The Bowery, em que Walsh explora aquele que é sem dúvida o seu filão favorito, as histórias das ruas na viragem do século. Sente-se a sua afeição por este período em The Strawberry Blonde ou Gentleman Jim, desde The Regeneration (1915), em que reencontra a Nova Iorque da sua juventude. 

A exaustividade da retrospectiva parisiense permite verificar a reputação pouco aliciante de outros filmes. Sailor's Luck é vulgar e monótono. Going Hollywood é uma brincadeira. Em 1937, Walsh realiza Hitting a New High, o seu nadir artístico. Acção e ralenti. Chegado à Warner, produz em cadeia os filmes: They Drive by Night, High Sierra, The Strawberry Blonde, Manpower et They Died with their Boots on­ num ano e meio. O resto é conhecido: Objectivo Burma, Colorado Territory, a obra-prima White Heat, sem esquecer a sua incursão pelo film noir (Pursued é um western freudiano: a fotografia arqui-negra de James Wong Howe, com a mesma voz-off resignada, o mesmo Mitchum que desacelera a acção com a sua interpretação sonâmbula). 

Isto não impede Walsh de fazer maus filmes: não se pode fazer um filme de guerra mais repugnante do que Fighter Squadron, e a sua passagem pela Universal é tão boa como os guiões e actores da casa, o que quer dizer que não é terrível. Mesmo nos seus últimos filmes, ele retoma um dos temas que lhe deram sucesso a partir de O Preço da Glória: a rivalidade de dois homens tanto no amor como nos negócios. Os Implacáveis são exactamente o contrário: humanos. Gable é obstinado, Ryan, abastado e paciente, e vai ser Jane Russell a decidir. Se Cagney, Gable e Bogart são os seus actores favoritos, se foi capaz de impulsionar Virginia Mayo até a transformar fugazmente em boa actriz (e numa cabra em White Heat), é finalmente em Jane Russell que vai encontrar uma mulher à altura dos seus Tall Men, título original de Os Implacáveis*. 

Mas é o seu período mudo que continua a ser o mais apaixonante. A sua arte está já contida no seu primeiro filme Fox em 1915, rodado no Lower East Side de Manhattan. Para lá das convenções vitorianas de The Regeneration, encontrámos uma complexidade na forma de mostrar a «conversão» do menino mau, interpretado por Rockliffe Fellowes. Ele reforma-se, ansiando pelos prazeres simples. Os momentos altos abundam: um incêndio num barco com os passageiros a atirarem-se à água. As cenas de luta são de uma vitalidade admirável, bem como uma sequência, que Keaton deve ter visto, em que o vilão zarolho «Skinny» tenta fugir por estendais de secar a roupa atados entre dois edifícios. Filme maravilhoso. 

Natural. Os outros mudos são quase todos espantosos de tão naturais. Mas nenhum ao nível de Macaco Falante, de 1927, em que Walsh se aventura por território Tod Browning. Jacko ganha a vida na pele de um grande macaco. No final, a heroína Olive Borden recebe num armário a companhia de um macaco que julga ser Jacko mas é um orangotango evadido. 

Se um dos prazeres de Walsh era mandar foder a censura, o seu plano pousado sobre a porta fechada do armário tem de ficar como o ponto culminante da sua carreira.

*título francês de Tall Men, mantido e traduzido por entrar na construção das frases desse parágrafo.

in  «Toutes les bobines de Raoul Walsh», Libération, 23 de Março de 2001.

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