sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

A DISTANT TRUMPET (1964)


É mais ou menos a meio de Along the Great Divide, de 1951, que o pequeno grupo encabeçado por Kirk Douglas é atacado por um bando de fazendeiros que querem vingança pela morte do filho de um deles – e que é quem os lidera. Querem que Douglas lhes dê Walter Brennan para o poderem enforcar. O irmão do fazendeiro abatido tenta surpreender o grupo de Douglas e Brennan por trás, por uma ravina, mas Douglas vê-o e vai ao seu encontro. Walsh filma os contornos e as medidas à ravina de tal forma que percebemos perfeitamente o que está em jogo, no que é de resto uma situação com percursos e pontos de vista muito complexos mas que Walsh consegue descrever de forma agudamente pragmática. Em Distant Drums, Objective, Burma! e The Naked and the Dead o nosso interesse, a nossa empatia pelas personagens e pelos seus destinos só podem resultar desse talento para tornar movimentos, demandas e missões perfeitamente visíveis e palpáveis. Demonstráveis. É o que não falta nas grandes sequências de embates entre índios e o exército em A Distant Trumpet, reflexo de uma enorme vontade de ilustrar (tentando ser o mais fiel possível) as grandes aventuras por espaços abertos que aparecem nos anais da nossa história. Quando lhe pediram para explicar como conseguia coordenar toda esta gente em todo este espaço, Walsh respondeu modesta e elipticamente (característica que partilhava com John Ford e Howard Hawks) que “I come from a large family”. 
 
Walsh sempre gostou dos espaços abertos e de filmar o máximo possível bem longe dos estúdios, que era outra maneira de fugir ao policiamento dos produtores e dos investidores e desfrutar da liberdade de olhar para os céus e para as montanhas cumprindo e alcançando os horizontes dos seus próprios desejos. Mas era também - como disse o falecido e eterno (tão próximo de Raoul Walsh, como viu muito bem Jacques Lourcelles) Michael Cimino a Bill Krohn em 1982 - porque “há uma corrente que flui quando se filma em exteriores que não se consegue atingir facilmente num estúdio: sais à noite para ir para casa, não trabalhas aos fins de semana, é quase trabalho de secretária. Algumas pessoas gostam disso; eu, eu gosto de me sentir longe de casa, satisfaz-me; consegue-se qualidades daí, texturas, que são duas vezes mais difíceis de conseguir em estúdio. E depois, em estúdio, não tens pessoas reais, tens figurantes profissionais, o que é completamente diferente. Em cada um dos meus filmes, usámos muitos locais e um número reduzido de actores. O estado de espírito das pessoas que vivem lá nunca foi mesmo mostrado nos filmes. Trouxeram uma característica excepcional ao filme. Por exemplo, na cena do casamento em The Deer Hunter, aqueles são os verdadeiros paroquianos; era muito difícil encontrar essa corrente, essa vida, de pessoas que tinham os hábitos de um figurante; podia-se obter um resultado perfeitamente satisfatório, mas não o mesmo resultado. Aquelas pessoas eram mesmo russo-americanos, que falavam mesmo a língua, dançavam mesmo aquelas danças, que passaram as vidas deles todas naquela comunidade, tinham certas expressões faciais. Não podias criar isso com figurantes profissionais.” 
 
Como soube Cimino, como souberam John Ford, Budd Boetticher e Anthony Mann e, claro, como soube Raoul Walsh, nas palavras de Victor Hugo sobre as ofensivas e contra-ofensivas de Quatrevingt-treize, imenso fresco sobre a Revolução Francesa, “a configuração do solo aconselha ao homem muitas acções. Ela é mais cúmplice do que se julga. Em presença de certas paisagens ferozes sente-se a tentação de desculpar o homem e de incriminar a criação, sente-se uma surda provocação da natureza; por vezes o deserto é nocivo para a consciência, sobretudo para a consciência pouco esclarecida (...), as matas sombrias, as silvas, os espinhos, os pântanos parados sob os ramos, têm nela uma influência fatal – ela sofre nesses lugares a misteriosa infiltração das más persuasões. As ilusões de óptica, as miragens incompreendidas, os desnorteamentos da hora ou do lugar, produzem no homem essa espécie de terror, meio religioso, meio bestial, do qual brota, em tempos comuns, a superstição, e nas épocas de violência a brutalidade. As alucinações contêm o facho que ilumina o caminho do assassino. Há a vertigem do bandido. Há nos prodígios da natureza um duplo sentido que deslumbra os grandes espíritos e cega as almas entorpecidas. Quando o homem é ignorante e o deserto é visionário, a obscuridade da solidão junta-se à obscuridade da inteligência – e produz abismos no homem. Certos rochedos, certas ravinas, certos taludes, certas clareiras sinistras ao entardecer, impelem o homem às acções loucas e atrozes. Quase se podia dizer que há lugares celerados.” 
 
Pode-se ver isto tudo na descida e elevação desesperada de Joel McCrea, dando as mãos a Virginia Mayo nessa aventura impossível, quimérica e belíssima que é Colorado Territory, quando as autoridades lhe fecham as saídas e o cercam no sopé da montanha que lhe dita o destino. Ou no final de The Big Trail, em que as grandes sequoias do Oregon que selam o amor de Wayne e Marguerite Churchill se sucedem ao gelado e abismal confronto daquele com as personagens de Charles Stevens e Tyrone Power, Sr. na floresta sombria. Como nos vales que recebem as movimentações de gado de The Tall Men ou nos verdes montes tosquiados pelo vento e percorridos pelos soldados atormentados de The Naked and the Dead... 

Mas insistir demais nisto, por muito fascinante que seja, pode eclipsar bastantes das outras coisas que atestam a genialidade de A Distant Trumpet: uma história que ao contrário do que se disse, e infelizmente ainda se repete, não tem nada de banal e arrisca intercalar destinos pessoais com movimentos em massa, situando-os e contextualizando-os nas grandes mudanças e transições históricas dos Estados Unidos da América; a bela cena na gruta, depois do resgate de Kitty pela mão do tenente Hazard, em que este cuida dela e ambos descobrem através desse isolamento temporário que no forte e na vida estão sozinhos a tempo inteiro; a flor que cresce no deserto (“a gentle reminder that life can exist in this god-forsaken place”) e é tantas vezes tema de conversa e é por tanta gente regada e tratada, como se ao fazê-lo estivessem antes a tratar de si mesmas e das suas próprias vidas, supersticiosamente; as conversas à noite no cimo do forte e sob as estrelas, lembrando o dito wildiano de Lady Windermere's Fan tão caro a Walsh e citado abertamente em The Man I Love (“We are all in the gutter, but some of us are looking at the stars”), em que Hazard e Kitty se vão dando por inteiro um ao outro; a extraordinária música de Max Steiner, irmão de armas de Raoul Walsh desde os tempos áureos da Warner, e os achados de imagem fabulosos de Walsh e William H. Clothier; a personagem de James Gregory, mentor, profeta, declamador de Virgílio, Tácito e Cícero que, com esse latim, inscreve esta aventura em quadros épicos...
 
O cinema diz-nos que um horizonte é uma coisa bela mas só se houver alguém que o atravesse e passe por grandes provações para o alcançar e para o merecer. Walsh, como muito poucos, conseguiu-o mostrar e faz agora parte dos elementos e dos astros que nos regem e velam por nós.

adaptado de uma folha de sala escrita em Julho de 2016 para uma sessão do Lucky Star - Cineclube de Braga, disponível aqui.

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