domingo, 6 de junho de 2010

Ainda "Kiss Me, Stupid"



KISS ME, STUPID
BEIJA-ME IDIOTA

Thank heaven for Mr. Billy Wilder

(da crítica do Times, quando da estreia londrina do filme)

Kiss Me, Stupid (o título é a última frase do filme e o exacto equivalente do "Nobody is Perfect" do Some Like it Hot ou do "Shut up and deal" do The Apartment) foi a mais acidentada produção dos anos de glória wilderianos. Os acidentes começaram quando Peter Sellers que devia fazer o papel de Spooner (imaginem-no) teve um grave problema cardíaco (o primeiro) e foi obrigado a deixar o "plateau" ao fim de três semanas de rodagem. Ray Walston, memorável pelo seu "Diabo" na peça e no filme Damn Yankees (Stanley Donen, 58) e que já aparecera em The Apartment como um dos frequentadores da casa de Lemmon, foi chamado à pressa para o substituir. Não sei como seria Sellers. Mas Walston é a cópia conforme (ainda mais crua e ainda mais cruel) do Tom Ewell do The Seven Year Itch. Logo que o vemos a dar lições de piano com a t-shirt com Beethoven, nos lembramos desse outro marido, com quem compartilha uma imaginação não menos delirante e um quotidiano não menos baço. Ao outro, entrava-lhe Marilyn pela casa abaixo; a este, trouxeram-lhe Kim Novak, de umbigo à mostra, Polly the Pistol chamada. E bem se podia chamar Polly la Douce, como a sua Irma, a que Shirley deu jeito e feitio.

Mas estou a pôr o carro adiante dos bois, na pressa de ir ao filme. Estava a falar de acidentes e desses o menor foi o da substituição de Sellers por Walston.

Mal o filme ficou pronto (e Wilder gastou rios de dinheiro a reconstituir em estúdio a rua da vilória da Nevada, réplica correcta e aumentada da da Rua Casanova de Irma La Douce) saltou-lhe em cima a catolicíssima Legião da Decência. Desta vez, para eles, Wilder fora longe de mais e, "sic", tinha produzido um filme sórdido, tão repugnante estética como eticamente. "Diálogos impúdicos e sugestivos, um lúbrico tratamento de sexo conjugal e extra-conjugal, uma mórbida atracção pela libertinagem, obrigam a condenar este filme por absoluta imoralidade".

Nos anos 60, ao contrário dos anos 50, esta pia veemência já não era habitual. A United Artists estremeceu e recusou-se a distribuir o filme. Wilder - num gesto sem precedentes - cortou a cena da "roulotte" em que Dean Martin e Felicia Farr iam para a cama ao som do "Oh, Sophie", cantado pelo papagaio, e chamou os dois actores para re-filmar a que agora se vê. E vemos efectivamente Dean Martin a adormecer como um anjinho. Só que ninguém nos jura (não ficámos lá para ver e o papagaio, que ficou, continua a cantar) que Dean Martin tenha dormido toda a noite. Tudo nos leva a concluir pelo contrário e a elipse acaba por ser bem mais maldosa.
Como era óbvio, não foi tal corte que acalmou as Ligas. A letra dada ao filme (C) queria dizer "Condemned" e Monsenhor Little, porta-voz da tal liga, advertiu 40 milhões de católicos que não podiam ver o filme sem cometer mortal pecado. Podia funcionar como chamariz, mas até não funcionou. Em contraste com Some Like it Hot (designação de Wilder para o "oscar") The Apartment ("oscar" do melhor filme em 1960 e "oscar" para Wilder), Irma La Douce (designação de Shirley Maclaine) e - todos - enormes sucessos comerciais, Kiss Me, Stupid foi um flop e teve, na América, péssimas e irritadas críticas. Só na Europa lhe fizeram justiça.

A razão não está, como se disse, no "miscast" de Dean Martin ("almost repellent in his leering") ou na do "harsh and ugly" Ray Walston. Fundamentalmente, a razão está no retrato desapiedado e implacável que Wilder dá da América provinciana (que era preciso sempre tratar com carinho) e da mulher americana, figura sacrossant em sociedades matriarcais. Apesar de tudo, Seven Year Itch, The Apartment ou Irma La Douce eram sobretudo sátiras ao homem, com Marilyn e Shirley a desencaderem imediatas "simpatias". Aqui, nem Felicia Farr (demasiado tonta e demasiado tronco - lá está o molde demasiado explícito e demasiado "sugestivo") nem Kim Novak (coisas de umbigos) salvam as mulheres casadas de se parecer demais com putas e as putas de se parecer demais com mulheres casadas. Essa identificação é que era insuportável. Cherchez la Femme. E não falo já (será preciso?) da única mãe do filme, essa que vemos na penumbrosa sequência em que Zelda prefere ir para Kim Novak ou para os copos do que ficar mais tempo a ouvi-la (tudo o que Orville dissera dela, era pouco). "I`ve been pursued for years by that nasty word - vulgarity", disse um dia Wilder, que acrescentou: "They object not to the vulgarity in my art, but to the lack of art in my vulgarity". Tinha razão para se irritar. Kiss Me, Stupid, o filme por que mais o atacaram, é a obstinada recusa a embelezar um mundo arrepiantemente sórdido. Nesse sentido, é um dos mais cáusticos olhares sobre alguma sociedade americana, precisamente a que mais bem tratada costuma ser.

E, agora, abram muito os olhos e os ouvidos, porque Wilder, em ajuste de contas, não perde pitada.

Ainda o genérico está a correr (em Las Vegas) e já um travelling nos atira dum carro para um anúncio de A Place in The Sun, filme de George Stevens sobre a "tragédia americana". Não vamos visitar esse filme, mas dean Martin em "show", um "show" que bem pode ter inspirado Herman José para o Estebes (nem faltam as coristas a dar à perna). Não há de facto nada mais repelente, mais abrilhantado e mais estúpido do que esse Dino (atenção à origem italiana) de que Dean Martin vai personagem de antologia. Em corpo inteiro (reparem no "gag" dos criados, digno de Lubitsch) está o "american swinger" a que uma só noite de castidade dava as tais dores de cabeça.

No seu desvio para Nevada - em rota para Hollywood - há algumas insinuações e a história do isqueiro não é inocente.

Depois vamos para outras dores de cabeças. As de Orville J. Spooner, a quem a colecção de camisolas (Beethoven, Bach e Brahms) não tiravam os ciúmes. "If the music be the food of love, play on". Mas quando lhe davam os "ataques" não ouvia Rachmaninoff, como o seu irmão gémeo do "itch", mas o som do órgão que tocava na Igreja. É com esse acorde que expulsa "the male Lolita", enquanto obviamente Felicia Farr é demasiada areia para a sua camioneta.
É então que o espantoso gordo - seu "brother in distress" - interrompe a viagem de Dino e o faz andar de casa de banho em casa de banho a trautear-lhe "Monas Lises". E logo que surge a ideia da noite para Dino, o que Dino vê da "mulher do anfitrião" é uma fetichizada genitalia. Para um "sex-maniac" não está mal, entre os duches e as garrafas de Chianti. A simbologia é excessiva para Spooner que se lembra de Cagney e vai buscar uma toranja ao frigorífico. Mas nem isso funciona e o único recurso é a troca de mulheres.

Não vou desenvolver: essa troca vai bastante mais longe do que Spooner alguma vez vez imagina, para satisfação das duas e - por fim - para satisfação dele também. "This is the way of all flesh".

Poe Why, por Where, e por What começam as últimas perguntas que ainda tenta fazer, na noite do triunfo e das televisões, quando Kim Novak passa de carro. Como única resposta, obtém o "kiss me, stupid".

E só peço ainda que reparem na cadeia de três lugares ("conversadeira", chama-se em Portugal) na constipação de Kim Novak, nas "small moons", na história da lagosta, no pedido de Felicia Farr para ouvir e "Melancholic Baby", no papagaio e nas notas.

E o filme que começou com Dino a cantar acaba com Dino a cantar. Todos retiraram daquela noite a quatro alguma satisfação. Polly teve a ilusão de ser Mrs. Spooner; Mrs. Spooner teve a sensação de ser Polly; Spooner teve a ilusão de ser Gershwin; Dino teve várias sensações e nenhuma dor de cabeça. Todos tiveram a inteligência da sua estupidez e a estupidez da sua inteligência.

Coisas que acontecem a quem, ao chegar a Climax, se descobre sem combustível. Coisas de néons, "bang-bang" e papagaios com muito boa memória.

Kiss Me, Stupid: um humor de perdição. Thank heaven for Mr. Billy Wilder.

João Bénard da Costa

* Do "nobody`s perfect" ao "kiss me, stupid", passando pelo "shut up and deal", Wilder era um exímio e metódico contador de histórias. A sua autoria está até no genérico, porque desde 51 que as pessoas sabem ao que vão: a uma produção e realização de Billy Wilder (e co-argumento, também)... Para já não me seduzem as superficialidades (que diz Bénard serem só aparentes, porque escondem uma subversão demolidora) de "Sabrina" e "The Seven Year Itch" e não morro de amores por "Some Like It Hot", que é facilmente o mais acessível dos Wilders...

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