terça-feira, 7 de julho de 2020

UNCERTAIN GLORY (1944)


1944 – USA (102') Prod. ● Warner (Robert Buckner) ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Laszlo Vadnay e Max Brand a p. de uma história de Joe May e Vadnay ● Fot. Sid Hickox ● Mús. Adolph Deutsch ● Int. Errol Flynn (Jean Picard), Paul Lukas (Marcel Bonet), Jean Sullivan (Marianne), Lucile Watson (Sra. Maret), Faye Emerson (Louise), James Flavin (capitão das guardas móveis), Douglas Dumbrille (comissário), Sheldon Leonard (Henri Duval). 

França, 1943. Condenado à morte por múltiplos roubos e um homicídio, Jean Picard, um malfeitor endurecido, avança para a guilhotina. Um ataque aéreo à fábrica vizinha dá-lhe a possibilidade de fugir. Vai para casa de Henri, um antigo cúmplice, para lhe pedir dinheiro e documentos falsos. Seduz a amante dele illico presto fazendo-se passar por um grande resistente. Parte com ela para Bordeaux onde o seu velho inimigo, o inspector Bonet, que o persegue há quinze anos, o apanha e lhe põe algemas. Bonet foi informado por Henri. No comboio que os leva para Paris, Picard e Bonet descobrem que depois da sabotagem de uma ponte a Gestapo aprisionou cem reféns e os vai executar se o sabotador não se entregar. Picard pensa subitamente que preferia morrer diante do pelotão de fuzilamento com as honras do que sob o cutelo da guilhotina. Sugere a Bonet que o permita fazer-se passar por esse sabotador. Salvaria assim a vida de cem inocentes. Bonet ao princípio recusa, pensando numa armadilha, depois a ideia percorre-lhe o espírito. Picard e Bonet instalam-se no hotel da vila onde os reféns foram capturados. Bonet prepara a eventual rendição de Picard à Gestapo e anuncia aos seus superiores que Picard se afogou durante uma tentativa de fuga. Picard torna-se Jean Émile Dupont, sabotador e resistente. O prazo fixado pela Gestapo até à execução dos reféns termina em três dias. Picard suplica a Bonet que lhe dê esses três dias. Conheceu Marianne, uma jovem comerciante da vila, que convidou para um piquenique à beira da água. Bonet é levado a salvar o verdadeiro sabotador fazendo-o passar por um dos seus homens. O sabotador indica-lhe a ele bem como a Picard como fez para explodir a ponte apesar da vigilância dos alemães. Picard fará notar a Bonet que desperdiçou voluntariamente uma hipótese de se libertar deixando o sabotador escapar à Gestapo. Ainda vai deixar passar outras oportunidades para fugir. Mas uma noite, enquanto Bonet está doente, Picard desaparece. No mesmo momento os habitantes da vila preparam-se para executar um plano preparado há já algum tempo e que consiste em acusar Picard de ser o sabotador da ponte. O padre da vila desvia-os do seu projecto. Marianne avisa Picard do perigo e acompanha-o na fuga dele. São acolhidos por um casal de camponeses cujo filho é um dos reféns. Picard anuncia a Marianne que vai sozinho a Paris para procurar o dinheiro necessário para a partida deles para a Martinica. Na verdade, uma vez chegado a Paris, ele vai para a casa de Bonet que o acompanha à Gestapo. Os oficiais alemães estão cépticos em relação à confissão de Picard. Mas quando lhes descreve minuciosamente o método empregado para explodir a ponte, já não têm dúvidas de estar a lidar com o verdadeiro sabotador, e ele será executado. 

► O mais estranho e o mais sombrio dos sete filmes de Walsh com Errol Flynn. Walsh transporta para outro contexto e mistura sob outras proporções certos ingredientes dos seus heróis habituais. Muitos deles (e com Flynn à cabeça) flertam com a ideia de ser «um aventureiro sem fé nem lei». Aqui, estamos plenamente aí. Flynn é um ladrão e um assassino desde os primeiros minutos do filme. Não acreditamos nos nossos olhos. E no entanto, é mesmo ele, com a mesma elegância, com a mesma indiferença irónica, com a mesma ousadia devastadora, marcadas apenas com um toque de negro, como o filme no seu todo. Flynn vai enganar toda a gente de uma ponta à outra da intriga, para o mal como para o bem, encontrar-se incessantemente no sítio onde não o esperamos, surpreender aqueles que o conhecem melhor (e particularmente o inspector Bonet, que o persegue há quinze anos, uma espécie de Javert moderno). O herói walshiano não tem um lugar muito definido dentro da moral. Devido ao seu individualismo extremo, é difícil situá-lo nesse domínio e a maior parte das vezes permanece «para além do bem e do mal». Outro ingrediente, outra característica do herói walshiano: o seu amor pela vida, ligado indissoluvelmente à sua sedução e ao seu humor. Também existem em Jean Picard (acabado de «sair» da prisão, seduz a primeira mulher que se lhe apresenta: a assombrosa Faye Emerson). Só que tem apenas três dias para satisfazer esse amor pela vida. O humor existe, mesmo neste filme muito sombrio, de forma simultaneamente inesperada (ver a cena genial da falsa confissão de Picard a Bonet) e permanente, já que o herói joga aqui constantemente com o seu destino e o dos outros. Ficam a sua decisão final e o seu sacrifício. Como o conjunto do personagem, essa decisão tem qualquer coisa de impenetrável, e quase insondável. Pode-se arriscar uma hipótese. Morrendo dessa forma, o personagem triunfa duas vezes sobre a fatalidade. Uma primeira vez decidindo ele próprio a sua morte – a hora e o conteúdo (o argumento fornece-lhe dez oportunidades para fugir que ele não agarra). Uma segunda vez inventando, criando para si mesmo outro destino. Jean Picard, ladrão e assassino, torna-se Jean Émile Dupont, o grande resistente. E não só nas aparências: na realidade também, já que salva com essa morte cem reféns e o verdadeiro sabotador. Acrescenta mais um papel a uma existência diversa e bem cumprida. Está-se sempre em Shakespeare: «Each man in his time plays many parts...» (citado por Walsh no final da sua autobiografia). Também se pode ver um filme como um sonho que Picard tem debaixo do cutelo da guilhotina. Mas seja qual for a forma como se olhe para ela, a obra sublinha a modernidade do génio de Walsh. E herói ou anti-herói, Flynn é sempre igualmente admirável.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

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