por Serge Daney
Houve um caso Cimino, cineasta desmedido, fascinado pelos paradoxos da identidade americana. Há agora um caso Stanley White, polícia puro e duro. Inventando White, Cimino traça com um bulldozer o perfil psicológico do homem instalado no ressentimento.
A ambição de Cimino nunca foi pequena. Dar aos outros e a si próprio o sentimento de tudo começar do zero. Como se o cinema nada tivesse ainda mostrado e como se não se tivesse visto ainda nada. Verdadeira ambição de cineasta. É a ela, a essa mistura de exactidão naturalista e de amplificação delirante, que devemos as imagens da guerra do Vietname em The Deer Hunter, o Oeste revisitado de Heaven's Gate e a Chinatown de Year of the Dragon. A mais de meio século de distância, Cimino reencontra-se com os pioneiros do cinema americano. Os que, de Griffith a Vidor, tiveram como único tema o "nascimento de uma nação", a sua.
Que dizem os pioneiros? Que não se é americano mas que se torna americano. Que esta mudança tem de ser merecida e que nem todos têm direito a ela. Tomemos os Negros: Griffith exclui-os e Vidor coloca-os no apartheid de um filme étnico (Hallellujah). Ora há algo de Vidor em Cimino. Como King, a sua vontade de situar sempre as suas personagens em termos de relações de classe, faria dele um cineasta "social", quase marxista, se não existisse um ideal que esbate as lutas de classes e os ódios tribais: o indivíduo-feito-americano. Sem esse ideal, o muito famoso "melting pot" não seria senão uma mentira ou, como Cimino gosta de mostrar, um furioso "fighting pot", um combate.
Pode-se ser um pioneiro do cinema americano em 1985? Na altura em que Michael Cimino começou a fazer filmes, "ser americano" era mal considerado. A derrota do Vietname é também uma derrota do ideal. A trajectória da epopeia "Nascimento de Uma Nação" começou a regredir. Lá onde se deixou de se tornar americano, tornou-se tribal, o "God bless America" do fim de The Deer Hunter tinge-se de desespero. Cimino está pronto a trabalhar num "Renascimento de uma nação". Mas quem serão os excluídos desta vez?
Cimino fala muito do "sonho americano". Existiu alguma vez e, se sim, porque se perdeu inexplicavelmente? Surgiu então a questão do ressentimento: "de quem será a culpa?". A culpa é dos Vietnamitas, soprava The Deer Hunter. É a sua barbárie (de raiz) que "acordou" a barbárie dos soldados americanos. É o outro vietnamita o responsável pelo ideal US ser calcado aos pés. Como nos pátios de recreio onde ecoa o eterno "foi ele quem começou!".
Se (é ainda apenas uma hipótese) há uma decadência americana e se, como defende Octávio Paz, "ela constitui para eles |os Americanos| a porta de entrada na história", se mesmo "ela lhes traz o que eles sempre procuraram: a legitimidade histórica", Cimino é o cineasta que acompanha esta decadência e também o que a mais trabalha. Pela primeira vez, alguém conta a segunda história dos Estados Unidos. Uma epopeia, certamente, mas a do ressentimento. O fim do sonho americano liberta as tribos americanas. Algures, entre a reanimação ascética do sonho e a exibição folclórica das tribos, oscila Cimino.
Year of the Dragon é pois a continuação lógica de The Deer Hunter. Dez anos passaram e Stanley White (Mickey Rourke) é o polícia exaltado que "fez o Vietname" e que não regressou. Delirante mas metódico, conduzindo uma guerra pessoal, evidentemente racista. Porque esta guerra já não releva da metafísica conradiana (no fundo que "outro" inconfessável sou eu?) mas de um exorcismo securitário, de uma cruzada de polícia zeloso, tendo macerado em excesso o ódio de si mesmo.
Stanley White, náufrago polaco do sonho americano, declara guerra aos que não tendo nunca (na realidade) feito aquele sonho, não naufragaram. Já não estão lá, no Vietname, mas prosperam aqui, em Nova Iorque, e são também amarelos: os Chineses. Há bem uma mafia chinesa para desmascarar mas há principalmente uma maneira chinesa de alimentar - quem sabe? um outro sonho. Um sonho que não deveria nada ao tornar-se-americano mas tudo a esse detestável hábito dos Chineses de não se tornarem nada porque são chineses e que há muito tempo eles estão "na história".
O ressentimento tem mais truques no bolso. Cimino diz que os chineses são "bons vivants" (um pouco como os italianos) e que gosta deles. White, por seu lado, gostaria de os proteger da sua máfia mas ninguém pede a sua protecção. o "milieu" chinês de Year of the Dragon é visto como uma contra-sociedade que escandalosamente marcha por si só. Come-se bem (restaurantes), joga-se noite e dia (casinos), trafica-se (pó) e encontra-se ali lindas raparigas como Tracy Tzu, a jornalista por quem Stanley se apaixona: uma rapariga rica e com a "classe" que Stanley não tem. Inversamente o "milieu" branco é visto como um cordão fúnebre de triste hipocrisia, de sexo falhado, amizades glaucas e familiaridades rançosas. Dito de outro modo: a virtude vive mal e o vício desenvencilha-se bem.
"Alguém se diverte no lugar de outro... Não há, nunca houve outra questão política senão essa, a relação das pessoas com o prazer" disse algures Pierre Legendre. Não há divisão de trabalho sem divisão (inconsciente) do prazer. Stanley White é aquele a quem esta dupla divisão torna louco. "Prendam essa gente!" grita ele no fim do filme no decorrer de uma duvidosa apoteose cujo sentido é que as coisas iriam melhor se cada um (polícia, jornalista) fizesse o seu trabalho. Mas esta moral não o isenta do seu fracasso pessoal porque bo fundo de si mesmo ele imputou já este fracasso ao que imagina ser o triunfo do outro. Porque cada um "goza em seu lugar". Estamos bem no coração da estrutura racista, sobre a sua vertente "hard" (bem conhecida na Europa). Se Stanley White goza tão pouco e tão mal do sonho americano, não será porque os outros - os Chineses - se "aproveitam" desse sonho de que o roubam? Um herói ascético como White, visto que perde tudo o que tem. Tudo? Não, visto que lhe resta ainda o medo de "ser apanhado".
Nos seus filmes precedentes, Cimino aperfeiçoara uma forma assombrosa de dilatar e contrair o tempo. Assombrosa porque muito pouco hollywoodiana, muito próxima do sistema "olho de ciclone" de Pialat. Em cada cena de Year of the Dragon há, no meio, uma zona de calma e repouso. Como uma vontade de fazer a paz ou uma trégua no interior da ideia fixa. De cada vez, contudo, Stanley White recupera e parte de novo com uma violência acrescida. Como se esses momentos de paz fossem uma armadilha do diabo para o fazer esquecer a sua missão. Tão bem que, formalmente, debaixo do fogo pirotécnico da acção imparável, germina a monotonia do que se tornou em Cimino um truque narrativo em acordo (hélas) com a monotonia do herói.
in Ciné Journal 1981-1986, Cahiers du Cinéma,cop.,Paris, 1986
(Tradução de Manuel Cintra Ferreira)
(Retirado do catálogo "Michael Cimino - O Último dos Mavericks" publicado pela Cinemateca Portuguesa)
A ambição de Cimino nunca foi pequena. Dar aos outros e a si próprio o sentimento de tudo começar do zero. Como se o cinema nada tivesse ainda mostrado e como se não se tivesse visto ainda nada. Verdadeira ambição de cineasta. É a ela, a essa mistura de exactidão naturalista e de amplificação delirante, que devemos as imagens da guerra do Vietname em The Deer Hunter, o Oeste revisitado de Heaven's Gate e a Chinatown de Year of the Dragon. A mais de meio século de distância, Cimino reencontra-se com os pioneiros do cinema americano. Os que, de Griffith a Vidor, tiveram como único tema o "nascimento de uma nação", a sua.
Que dizem os pioneiros? Que não se é americano mas que se torna americano. Que esta mudança tem de ser merecida e que nem todos têm direito a ela. Tomemos os Negros: Griffith exclui-os e Vidor coloca-os no apartheid de um filme étnico (Hallellujah). Ora há algo de Vidor em Cimino. Como King, a sua vontade de situar sempre as suas personagens em termos de relações de classe, faria dele um cineasta "social", quase marxista, se não existisse um ideal que esbate as lutas de classes e os ódios tribais: o indivíduo-feito-americano. Sem esse ideal, o muito famoso "melting pot" não seria senão uma mentira ou, como Cimino gosta de mostrar, um furioso "fighting pot", um combate.
Pode-se ser um pioneiro do cinema americano em 1985? Na altura em que Michael Cimino começou a fazer filmes, "ser americano" era mal considerado. A derrota do Vietname é também uma derrota do ideal. A trajectória da epopeia "Nascimento de Uma Nação" começou a regredir. Lá onde se deixou de se tornar americano, tornou-se tribal, o "God bless America" do fim de The Deer Hunter tinge-se de desespero. Cimino está pronto a trabalhar num "Renascimento de uma nação". Mas quem serão os excluídos desta vez?
Cimino fala muito do "sonho americano". Existiu alguma vez e, se sim, porque se perdeu inexplicavelmente? Surgiu então a questão do ressentimento: "de quem será a culpa?". A culpa é dos Vietnamitas, soprava The Deer Hunter. É a sua barbárie (de raiz) que "acordou" a barbárie dos soldados americanos. É o outro vietnamita o responsável pelo ideal US ser calcado aos pés. Como nos pátios de recreio onde ecoa o eterno "foi ele quem começou!".
Se (é ainda apenas uma hipótese) há uma decadência americana e se, como defende Octávio Paz, "ela constitui para eles |os Americanos| a porta de entrada na história", se mesmo "ela lhes traz o que eles sempre procuraram: a legitimidade histórica", Cimino é o cineasta que acompanha esta decadência e também o que a mais trabalha. Pela primeira vez, alguém conta a segunda história dos Estados Unidos. Uma epopeia, certamente, mas a do ressentimento. O fim do sonho americano liberta as tribos americanas. Algures, entre a reanimação ascética do sonho e a exibição folclórica das tribos, oscila Cimino.
Year of the Dragon é pois a continuação lógica de The Deer Hunter. Dez anos passaram e Stanley White (Mickey Rourke) é o polícia exaltado que "fez o Vietname" e que não regressou. Delirante mas metódico, conduzindo uma guerra pessoal, evidentemente racista. Porque esta guerra já não releva da metafísica conradiana (no fundo que "outro" inconfessável sou eu?) mas de um exorcismo securitário, de uma cruzada de polícia zeloso, tendo macerado em excesso o ódio de si mesmo.
Stanley White, náufrago polaco do sonho americano, declara guerra aos que não tendo nunca (na realidade) feito aquele sonho, não naufragaram. Já não estão lá, no Vietname, mas prosperam aqui, em Nova Iorque, e são também amarelos: os Chineses. Há bem uma mafia chinesa para desmascarar mas há principalmente uma maneira chinesa de alimentar - quem sabe? um outro sonho. Um sonho que não deveria nada ao tornar-se-americano mas tudo a esse detestável hábito dos Chineses de não se tornarem nada porque são chineses e que há muito tempo eles estão "na história".
O ressentimento tem mais truques no bolso. Cimino diz que os chineses são "bons vivants" (um pouco como os italianos) e que gosta deles. White, por seu lado, gostaria de os proteger da sua máfia mas ninguém pede a sua protecção. o "milieu" chinês de Year of the Dragon é visto como uma contra-sociedade que escandalosamente marcha por si só. Come-se bem (restaurantes), joga-se noite e dia (casinos), trafica-se (pó) e encontra-se ali lindas raparigas como Tracy Tzu, a jornalista por quem Stanley se apaixona: uma rapariga rica e com a "classe" que Stanley não tem. Inversamente o "milieu" branco é visto como um cordão fúnebre de triste hipocrisia, de sexo falhado, amizades glaucas e familiaridades rançosas. Dito de outro modo: a virtude vive mal e o vício desenvencilha-se bem.
"Alguém se diverte no lugar de outro... Não há, nunca houve outra questão política senão essa, a relação das pessoas com o prazer" disse algures Pierre Legendre. Não há divisão de trabalho sem divisão (inconsciente) do prazer. Stanley White é aquele a quem esta dupla divisão torna louco. "Prendam essa gente!" grita ele no fim do filme no decorrer de uma duvidosa apoteose cujo sentido é que as coisas iriam melhor se cada um (polícia, jornalista) fizesse o seu trabalho. Mas esta moral não o isenta do seu fracasso pessoal porque bo fundo de si mesmo ele imputou já este fracasso ao que imagina ser o triunfo do outro. Porque cada um "goza em seu lugar". Estamos bem no coração da estrutura racista, sobre a sua vertente "hard" (bem conhecida na Europa). Se Stanley White goza tão pouco e tão mal do sonho americano, não será porque os outros - os Chineses - se "aproveitam" desse sonho de que o roubam? Um herói ascético como White, visto que perde tudo o que tem. Tudo? Não, visto que lhe resta ainda o medo de "ser apanhado".
Nos seus filmes precedentes, Cimino aperfeiçoara uma forma assombrosa de dilatar e contrair o tempo. Assombrosa porque muito pouco hollywoodiana, muito próxima do sistema "olho de ciclone" de Pialat. Em cada cena de Year of the Dragon há, no meio, uma zona de calma e repouso. Como uma vontade de fazer a paz ou uma trégua no interior da ideia fixa. De cada vez, contudo, Stanley White recupera e parte de novo com uma violência acrescida. Como se esses momentos de paz fossem uma armadilha do diabo para o fazer esquecer a sua missão. Tão bem que, formalmente, debaixo do fogo pirotécnico da acção imparável, germina a monotonia do que se tornou em Cimino um truque narrativo em acordo (hélas) com a monotonia do herói.
in Ciné Journal 1981-1986, Cahiers du Cinéma,cop.,Paris, 1986
(Tradução de Manuel Cintra Ferreira)
(Retirado do catálogo "Michael Cimino - O Último dos Mavericks" publicado pela Cinemateca Portuguesa)
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