segunda-feira, 29 de abril de 2013

ON DANGEROUS GROUND (1952)


por João Bénard da Costa

O ano de distribuição deste filme não coincide com o da sua produção. On Dangerous Ground, feito logo após In a Lonely Place, estava concluído a 10 de Maio de 1950, embora aguardasse a luz do dia, nas prateleiras de Hughes, durante quase dois anos.

Na pré-história deste filme, aparece, de novo, o grande amigo de Nick, John Houseman, homem de mil ofícios (rádio, teatro, cinema) e com quem Ray colaborara estreitamente nos seus anos de rádio, durante a guerra. John Houseman foi, também, o homem que levou Nick Ray para Hollywood e foi o produtor do primeiro filme dele: They Live by Night.

Ligado nesses anos à RKO por contrato, Houseman não estava nas melhores relações com Hughes e sobretudo com o braço direito deste, Sid Rogell. É ele quem conta: "Logo no princípio do ano (1949) comecei a receber 'scripts', cada um pior do que o outro, como possíveis bases para dois filmes que o contrato me obrigaria a fazer nos próximos dezoito meses. Em Março, mandaram-me uma coisa chamada A BED OF ROSES, que sabia tocar muito de perto o coração de Mr Hughes. Não tocava nada o meu" (e recorde-se que uma indirecta paixão de Hughes por Joan Fontaine foi a base de Born to be Bad, que Nick Ray teve que realizar). "Disse-o logo e seguiram-se alguns ameaçadores telefonemas, através do meu agente, em que, sem papas na língua, falaram de me cancelar o contrato. Em Junho, tornou-se-me claro que quanto mais depressa voltasse para Hollywood, melhor. Precisava absolutamente dos meus 1.500 dólares por semana. Por essa época, recebi duas encorajadoras cartas da Califórnia. Uma era de Raymond Chandler (...) a outra era de Nick Ray, que estava nessa altura a fazer o seu segundo filme com Bogart. Tinha acabado de ler um romance inglês - MAD WITH MUCH HEART - e estava doido por fazer um filme baseado nele, desde que eu fosse o produtor. Disse ao meu agente que anunciasse que voltava em Agosto".

Em Agosto de 49, quando Houseman voltou a Hollywood, percebeu o que o esperava. Em cima da secretária dele estava uma nota dum subordinado para Sid Rogell que dizia apenas isto: "MAD WITH MUCH HEART é um romance bem escrito, mas muito desagradável. Pode ser que os críticos o venham a achar uma produção 'de arte' e o elogiem, mas, comercialmente, vai ser um fracasso total. Por mim, acho que a RKO não o deve fazer". O despacho de Rogell para Houseman (que ironicamente observa que este certamente nunca leu o livro) era: "John - Estou inteiramente de acordo com este parecer. Agradeço-te e agradeço a Nick que esqueçam isso - Continua a esgalhar." Houseman estava habituado a coisas dessas. Mas a verdade é que também não gostou muito do livro. E pediu uma opinião a Raymond Chandler. Este respondeu-lhe (meu Deus, os escritores quando se metem em cinema...) que o livro era uma merda e que nunca ninguém faria um bom filme "daquilo". "O polícia é ridículo... a ceguinha completamente estúpida. E não há um diálogo que se aproveite."

Convencido, Houseman começou a trabalhar noutro filme The Company she Keeps, mas sem nenhum gosto. Nick, acabadas as filmagens de In a Lonely Place, insistiu com ele. Robert Ryan, que queria fazer o protagonista, também. E nos princípios de 1950, a RKO lá disse a Houseman que avançasse. Mas a grande e candente questão, para este, era não sentir "nem o entusiasmo criador, nem o profundo envolvimento pessoal que tinham iluminado o meu primeiro filme com Nick Ray".

Mas acabou por acontecer. Mad with Much Heart, diz Houseman, "foi de facto feito (made-mad) com muito amor. Além de Ray e Ryan, consegui a colaboração de Al Bezzerides para trabalhar no argumento. Bernard Herrmann jurou fazer a música". As filmagens começaram nos princípios de 1950. Só se mudou o título: Mad with Much Heart transformou-se em On Dangerous Ground.

Mais tarde Houseman escreveu: "Todas as virtudes que o filme tem se devem à realização de Nick - particularmente nos exteriores. Estes filmaram-se nas montanhas do Colorado, durante as últimas neves do ano e foram aproveitados para uma perseguição - primeiro de automóveis, depois a pé - que, mais tarde, foi musicada por Bernard Herrmann no que julgo ser a melhor música de filme alguma vez composta. Apesar de todas as suas fraquezas, On Dangerous Ground tem qualidades que justificam a sua frequente inclusão em retrospectivas, tanto da obra de Ray como da de Herrmann. Mas houve uma coisa em que a RKO teve razão: o filme não teve quaisquer lucros".

Nick Ray diria:

"On Dangerous Ground foi um fracasso total, mas continuo muito ligado a esse filme. Gostava de poder voltar novamente àquela história. Gosto dessa história, desse homem, um polícia e um polícia violento - para impedir ou evitar mais violência - e que só sente violência dentro dele. O homem que estudei para compor o protagonista (e em quem me impressionou a intensidade física e o comportamento) era um membro da Boston Violence Squad Police e continua a sê-lo. Era um solteirão que se alistou na polícia para arranjar dinheiro para mandar o irmão para o colégio e depois quis ajudá-lo a ser padre. O irmão veio a ser padre mas o tipo foi expulso da polícia por ser violento demais, o que ate era verdade. Depois virou-se contra outro género de violência - a violência puritana (do irmão) - que era incapaz de perceber. Pareceu-me que em tudo isto havia as pistas necessárias para um grande filme. Se não o foi, isso deve-se em parte ao argumentista e em parte a mim, porque não consegui explicar-lhe claramente a minha intenção. Era isso que eu queria voltar a fazer outra vez".

Se o não foi... Nick refere-se não só ao fracasso, como às dificuldades que teve com a distribuição da obra, que ditaram o atraso de dois anos. Mas On Dangerous Ground é um grande filme, embora à época da estreia tenham chovido ironias sob a "história da ceguinha" que desbotou até para o ultra-ridículo titulo que o filme teve em Portugal. On Dangerous Ground não é um filme sobre a "ceguinha" nem é um filme sobre "cegas paixões". É um filme que estabelece um raccord quase perfeito com o final de In a Lonely Place. Referindo-se a este, Ray disse que "no final desse filme, o espectador não sabe se Bogart se vai embora para se embebedar, para ter um desastre de automóvel, ou para ir a um psiquiatra. Todas estas soluções, e muitas outras, são possíveis, porque se aquele homem sai da opressão exterior, não escapou à angústia interior. Tem que resolver o seu problema, sozinho".

Pois bem: podemos supor, como outra solução, que tenha decidido seguir as pisadas do seu amigo Brub e entrar para a polícia. Robert Ryan bem pode ser, na primeira metade do filme, o sucessor de Bogart, homem minado por dentro, mad with much heart incapaz de aceitar o ódio que recai sobre a profissão que tem e a palavra que lhe colam, incapaz de confiar em quem quer que seja e mascarando (como quase todos os personagens de Ray) essa inadequação interior, essa divisão profunda, essa ferida que rói, com um redobrar da sua própria aparência, com uma assumpção até ao limite da máscara que lhe colaram ou deixou que lhe colassem. Desde o fabuloso travelling inicial nas ruas de Nova Iorque (depois tantas vezes imitado e expressamente citado no início de Taxi Driver) que somos atirados para o meio da violência, não se percebendo bem, no início do filme, se estamos entre polícias ou entre ladrões. Depois, alguns planos americanos ou grandes planos, vão-nos descobrindo alguns dos personagens desse grupo cuja indefinição permanece, até chegarmos a Robert Ryan, a mad with much heart. Voltamos ao travelling inicial e voltamos ao grupo; se Ryan se distingue dos outros é porque take it hard muito mais hard do que os outros, o que lhe vale censuras e ameaças de despedimento. "O que é que se passa com ele?", a pergunta é feita expressamente no filme como expressamente é sublinhada a sua imensa solidão (a casa, o único que não tem família, o único que parece apenas possuído pelo ódio). A sequência da conversa com o chefe da polícia é capital: ninguém escolhe ser polícia para que gostem dele, ele é o homem que assume até ao fim essa generalizada hostilidade. E a paga em redobrada moeda.

A primeira meia-hora do filme, no negro e na noite; é a descida aos infernos: o desespero donde salta a dolorosa violência de Robert Ryan. Até que o mandam para a Sibéria, literalmente. E, longe das ruas de Nova Iorque, nas neves e nas montanhas, Ryan vai encontrar alguém que confia tão literalmente como ele desconfia. A mulher cuja casa é invadida pelo exterior (o tal décor das árvores, citação expressa de Frank Lloyd Wright) e com a qual vai viver a mais griffithiana das histórias de amor. Não só porque atrvés de Ida Lupino relembramos a Lilian Gish do Broken Blossoms ou do Way Down East, como porque é a mesma interacção entre o espaço exterior e o tempo interior, entre o décor e as paixões, entre a morte e o amor. Ryan vê simultâneamente a imagem oposta à sua (o olhar como lugar de desconfiança é outro dos temas de Ray) e a imagem que reforça a sua (Ward Bond, ainda mais possuído pelo desejo de vingança do que ele) e é o conflito entre essas duas imagens e a sua própria o que mais o dilacera. Através do seu olhar dividido, entramos na casa de Ida Lupino e só vemos quem não pode ver depois de termos visto esse assombroso décor em que tudo se harmoniza: sinal de conhecimento e sinal de reconhecimento. Depois, todas as descobertas são possíveis: a de que a solidão é o destino de algumas pessoas, a de que só existe solidão quando se não comunga nessa solidão, a de que não é possível confiar em toda a gente nem desconfiar de toda a gente, a de que o "bandido" ferozmente perseguido era just a kid, a de que as vozes podem dizer mais que os olhares.

Entretanto, cai a noite (essa noite, momento único, momento perfeito, em que tudo parece possível, como em todos os filmes de Ray) e nasce o dia: o dia que traz a morte do miúdo (dividido também entre a confiança e a desconfiança), mas que não altera a confiança de Lupino. Na noite e no nevoeiro, há um décor que Ray reconstrói. No regresso à casa de neve e à montanha, tudo se tornou finalmente branco e finalmente pacificado.

E quem viu o filme nunca mais pode esquecer esse personagem do miúdo (o irmão de Ida Lupino) que não aparece mais de 10 minutos, mas é irmão gémeo do Bowie de They Live by Night ou do Nick de Knock on Any Door. A sua morte na neve (e depois o plano sublime em que Ward Bond lhe pega ao colo, quase tão sublime como o plano de The Searchers de Ford, em que John Wayne pega ao colo em Natalie Wood) é um dos momentos mais belos da história do cinema. "Just a kid", diz Bond, e todo o absurdo da violência aparece (ou se oculta) na marcha ritual em que o cadáver é trazido até ao abraço final de Ida Lupino. Já estamos "para além das estrelas". Ou seja, no cinema.

Se quisesse resumir tudo isto em duas palavras, diria (socorrendo-me do diálogo duma das mais geniais sequências) que On Dangerous Ground é um filme sobre o conflito entre quem , e por isso de tudo e todos desconfia, e quem não vê e por isso mesmo é obrigado a acreditar  em tudo e em todos. Como muito, muito mais tarde, diria Godard (ele que tanto amou este filme) as imagens iludem mas os sons não. E é pela voz e pela espantosa partitura de Herrmann (insólita e genialmente aproveitada por Ray) que a luz se faz no filme, no regresso de Ryan, com o último longo plano da neve. Um écran que abrira em negro, fecha em branco. Entre estas duas cores, tudo cabe.

in AS FOLHAS DA CINEMATECA - Nicholas Ray

sábado, 27 de abril de 2013

James Gray, NY Times, 2007



If We Own the Night seems to build toward a foregone conclusion, that is because predestination is its theme. This is, after all, the story of a black sheep’s inexorable return to the family fold.

“The movie is about fate,” Mr. Gray said. “I laugh when I hear people say it’s predictable. At the beginning of Henry IV Prince Hal turns to the audience and says, ‘I’m fooling around with my friend Falstaff now, but by the end of this play I will be the king.’ ” He added, “For me it comes from a view of history which is connected to class, where there’s a kind of helplessness to the way people’s lives unfold.”

We Own the Night not only deals explicitly with class — unusual in an American film — but also dares to insist that class mobility is a myth. “It’s so oppositional to the American idea of pulling yourself up by your bootstraps,” Mr. Gray said. “Maybe it seems like an ideological affront to some people.”

[…]

We Own the Night makes the most of seldom-seen locations, especially in the three action set pieces. To film a nerve-shredding drug bust, the production team found an actual stash house in Bedford-Stuyvesant, Brooklyn. The Bruckner Expressway in the Bronx is the scene of a rainy car chase reminiscent of The French Connection. And the final face-off unfolds in a patch of head-high reeds at Floyd Bennett Field, a former airport in Brooklyn. (One of the reasons it took years to get the film off the ground was Mr. Gray’s refusal to shoot any of it in Toronto.)

Like Mr. Gray’s other films We Own the Night strives for a heightened emotionality that often seems in conflict with its macho environment. “There’s surface subversive, where it’s worn on the sleeve,” he said. “Everyone wears a hat, the ending comes in the middle. What I prefer is where the subversiveness is almost a Trojan horse and is deeper within the film,” as in classical Hollywood cinema.

“There’s a repression about that period I find amazing,” he added. “You’ve got the ‘A’ story and then beneath that something totally at odds with it. You have a movie that exists on two planes.”

Mr. Gray is smart and neurotic enough both to complain about being misinterpreted and to know that he shouldn’t. He doesn’t want to sound defensive but can’t help griping about what he feels are wrongheaded criticisms.

To his chagrin the Variety review of his new movie called him out for using Blondie’s 1978 song “Heart of Glass” in the opening club scene. “The idea that if your film takes place in 1988 it should only have music from 1988 shows a totally limited sense of history and how history is an accumulation of details,” he said. “Is all your furniture from 2007?”

But he is most irked by the contention that his film is cop-glorifying, flag-waving or even pro-Bush, a connection some have made because of the Bushian ultimatum Mr. Duvall’s character issues to Mr. Phoenix’s: “Either you’re gonna be with us or you’re gonna be with the drug dealers.”

“That was a conscious George Bush comment,” Mr. Gray said. “But that’s not the filmmaker endorsing the behavior. One of the reasons Henry IV reverberated for me in the first place was the current White House.”

daqui

Double bill (XI)











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quarta-feira, 24 de abril de 2013








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Leone e a guerra





"The real film does not resemble the memory it left behind. There aren't three but four characters, and where it takes forty minutes to introduce the first three, it takes even longer to allow the fourth - the war - to creep into the picture and carry more and more weight. So much so that between the moment when we learn that the booty is buried in Sad Hill cemetary and the moment when we finally reach it, the word cemetary (and its image) has changed meaning. The film's undertaking is to remind us that in a cemetary there are more corpses of dead soldiers than buried treasure. How subtle is Leone's didactisism; there's no mention of a war, it's encountered in the course of the film and suddenly you realise it's been there for a long time and is horrifying." (Serge Daney sobre The Good, the Bad and the Ugly)

sexta-feira, 19 de abril de 2013

sexta-feira, 12 de abril de 2013