segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

RODANDO O PEQUENO GRANDE HOMEM


por Robin Wood

O sétimo filme de Arthur Penn, com estreia prevista para o Inverno de 1970, é O Pequeno Grande Homem, a partir de um romance de Thomas Berger.[1] O argumento é de Calder Willingham, o director de fotografia é Harry Stradling Jr., e as estrelas são Dustin Hoffman, Faye Dunaway, Richard Boone, e Martin Balsam. O filme é em Panavision, uma grande produção financiada pela CBS, e provavelmente vai ter cerca de duas horas e quarenta minutos de duração—o filme mais longo e mais caro de Penn até à data.[2] A rodagem terminou no Inverno de 1969, e no momento da redacção, Penn e a indispensável Dede Allen estão a “extrair” o filme da “matéria-prima básica” (a sua própria descrição do processo de montagem).[3] 

O romance de Berger é sobre um rapaz branco chamado Jack Crabb (Hoffman) criado durante cinco anos pelos Cheyennes (com os quais ganha o nome de Pequeno Grande Homem), depois empurrado pelas circunstâncias para a frente e para trás entre os Cheyennes e os brancos. Crabb, que afirma ser o único sobrevivente branco da Última Investida de Custer em Little Big Horn, conta a estória em pessoa em reminiscências divagantes, aos 111 anos de idade (no filme isto é actualizado para 121). A sua narrativa forma um romance picaresco e livremente episódico de mais de quatrocentas páginas, caracterizado por um humor brutal e irónico, abrangendo a maioria das figuras semi-históricas, semi-lendárias do Oeste—Custer, Wyatt Earp, Kit Carson, Wild Bill Hickok, Calamity Jane, Buffalo Bill—bem como inúmeras personagens fictícias, tanto índias como brancas. Ao longo da narrativa, Crabb adquire duas esposas, uma branca (uma rapariga sueca chamada Olga), outra Cheyenne (Sunshine[4]). O feito mais interessante do livro, através da alternância de Crabb entre o mundo dos brancos e o dos índios, é o desenvolvimento no interior de uma única consciência de uma perspectiva dupla—o mundo branco visto através de olhos índios e o índio de brancos. Isto pode ser difícil de realizar em termos cinemáticos, talvez, embora tanto Penn como o seu produtor, Stuart Millar, esperem que algo disso emirja. 

O guião de Calder Willingham parece um admirável qua argumento: livre e esquelético, proporcionando uma estrutura firme e diálogos fortes mas sem pretensões de auto-suficiência, deixando o essencial da criação de cada cena ao realizador. É um feito notável de compressão e reorganização. Das figuras semi-históricas, todas foram eliminadas menos Custer e Hickok; noutras partes, embora o ritmo alternante da narrativa se tenha mantido, a sua estrutura foi apertada pela imbricação de certas personagens para que ressurja no filme uma personagem anterior, enquanto que no romance aparece uma inteiramente nova. Por exemplo, em vez da sobrinha de Crabb, Amelia, que ele resgata de um bordel no último terço do romance, o filme traz de volta a Sra. Pendrake (Dunaway), a "mãe" branca de Crabb por adopção que revela muito rapidamente desígnios eróticos em relação a ele. Esta substituição, que aparentemente tem o consentimento entusiástico de Berger, proporciona um desenvolvimento bastante lógico para a Sra. Pendrake das primeiras cenas. O papel de Faye Dunaway permanece ainda assim relativamente reduzido: é o filme do Pequeno Grande Homem, e Hoffman aparece em todas as cenas. 

Outra mudança, embora menos chamativa no imediato, parece ainda mais importante. No romance de Berger, o Pequeno Grande Homem mantém-se até ao fim uma figura essencialmente passiva: mesmo quando é sacudido para a actividade deliberada, como o é pelo sequestro da sua esposa sueca por índios, ele não consegue sustentar o seu propósito. No guião, ele desenvolve gradualmente um comprometimento emocional forte à causa índia e no final é uma figura bem mais consciente e positiva do que alguma vez se tornará no livro, embora, sendo este um filme de Penn, ele afecte o desfecho dos acontecimentos apenas de forma confusa e irónica. A mudança torna-se perceptível primeiro na atitude do protagonista para com a caça ao búfalo: no livro ele junta-se ao massacre dos búfalos pela pele um tanto sem consciência; no guião é convidado e recusa, reconhecendo a dependência dos índios nas manadas de búfalos pela carne. O guião constrói um protesto apaixonado àquilo que foi feito aos índios. Pode-se criticar isso por tornar explícito aquilo que no romance é expresso de forma muito oblíqua, através da ironia. No entanto, acho que irá emergir de forma lógica do filme. Onde se pode acusar o guião é na suavização parcial do carácter dos Cheyenne, embora mais por omissão do que por verdadeira distorção. É muito a crédito de Berger que ele ganhe a nossa simpatia pelos índios sem nos poupar a qualquer um dos aspectos do seu comportamento que provavelmente chocarão a sensibilidade branca: depois das batalhas, por exemplo, as mulheres Cheyenne—esposas e mães gentis e ternas, talvez, nas suas vidas de todos os dias—saem com facas para mutilar os corpos dos soldados mortos. Detalhes como estes têm representação escassa no guião. A idealização “romântica” dos índios é um corolário perfeitamente lógico das atitudes sociais de The Chase e Bonnie e Clyde, mas a validade de qualquer idealização é enfraquecida por uma relutância em enfrentar as realidades mais duras e mais inquietantes do que quer que se esteja a idealizar. 

O filme foi rodado em Hollywood e em exteriores no Montana e Alberta. A convite de Penn, passei quatro dias em Calgary, a assistir à rodagem. O local de filmagens era a quarenta milhas de Calgary no sopé das primeiras encostas das Rockies, onde se tinham montado cerca de cinquenta tendas no interior da curva de um rio. A equipa tinha vindo para filmar cenas da vida numa aldeia índia, culminando no massacre no rio Washita quando Custer chacinou uma comunidade Cheyenne inteira—homens, mulheres, crianças, e até os póneis. Mas Penn tinha vindo ao Canadá pela neve, e quando eu cheguei não havia sinal dela: erva verde, sol brilhante, água efervescente, as Rockies claramente visíveis à distância, e toda a gente a olhar em redor de forma ansiosa atrás de sinais de nuvens carregadas. Penn, então, estava a rodar uma das últimas cenas do filme, em que Old Lodge Skins[5], o "pai" Cheyenne de Jack Crabb, interpretado por um chefe índio com setenta anos (Chefe Dan George) se prepara para morrer. Ele emerge, cego e envelhecido, da tenda e pede a Jack, que está coxo devido a feridas recebidas em Little Big Horn, para o conduzir pela montanha acima. Sente que não só a própria vida como o modo de vida do seu povo, os “Seres Humanos” (o nome dos Cheyenne para si próprios), e mesmo a própria raça estão a chegar ao fim. “Oh, vão levar tempo, mas os brancos vão eliminar os Seres Humanos, meu filho. . . Isto era um lugar perfeito até chegarem os homens brancos. Havia búfalo e caça por todo o lado. Os pastos eram verdes, a água doce e o céu azul.” Era a introdução ideal para o filme, um momento de uma intensidade pirandelliana extraordinária, as falas ditas pelo velho índio, a fazer-se de cego, contra um fundo de prados tão verdes como se poderia desejar e sob um céu azul na mesma medida, para as câmara apontadas para ele pelos americanos brancos sob a direcção de um americano branco. 

Caiu neve zelosamente aquela noite toda, e na manhã seguinte o local de filmagens estava transformado. As cores brilhantes tinham todas desaparecido. Sob um denso céu cinzento do qual continuava a cair neve intensamente, o rio corria de forma sombria por um mundo branco contra o qual se apoiavam as tendas pardas cobertas de neve e abetos negros. Dean Tavoularis, director de arte em O Pequeno Grande Homem (e antes em Bonnie e Clyde) disse-me: “As coisas índias podem parecer muito circenses e com ares de Dia das Bruxas. Nos tentámos atenuar as cores todas e harmonizá-las com o solo.” Eu vi Penn a rodar vários planos panorâmicos e de acompanhamento pela aldeia, com acções entrelaçadas bastante complexas—índios envolvidos em diversas actividades—em primeiro plano, a meia distância e em plano geral. Um plano de panorâmica, por exemplo, tem jovens índios a pescar no rio num plano geral distanciado; um índio a cavalo começa na margem do rio, serpenteia pela aldeia em plano geral médio, deslocando-se para fora e mais tarde de novo para dentro da imagem; emana fumo das aberturas das tendas; as crianças brincam e perseguem-se umas às outras na neve; um cavalo arrasta um carregamento de lenha em corrediças de madeira; a câmara apanha o cavaleiro outra vez enquanto ele cavalga para a direita. Os figurantes (todos índios norte-americanos) estão embrulhados em cobertores coloridos com o que parecem corantes naturais: marron baço, rosa sujo, azul intenso—as únicas cores além dos cinzentos, dos pretos e dos castanhos. A coloração moderada e o sentido de movimento constante no ambiente—os detalhes cuidadosamente organizados da vida índia—devem conceder às cenas na neve uma poesia visual comedida. 

Arthur Penn está o mais afastado possível da imagem estereotipada do realizador de cinema: o ditador vociferante colado com firmeza à cadeira do realizador e berrando ordens por um megafone. Levaria provavelmente algum tempo para um observador inexperiente decidir quem era o realizador no plateau de O Pequeno Grande Homem. Mas embora ele seja tão sossegado e não intrusivo (ouvi-o levantar a voz talvez duas ou três vezes em quatro dias, para pedir silêncio), cedo se percebe que Penn é omnipresente. Havia alturas em que ele estava ao meu lado, e depois, quando eu me virava, ele tinha desaparecido, e conseguia finalmente distingui-lo outra vez numa parte distante qualquer do plateau a reorganizar um detalhe com um técnico ou um actor. Penn não domina; ele permeia: discutindo e ensaiando com os actores; verificando a imagem pelo visor; reorganizando detalhes de maquilhagem, roupa e adereços; e discutindo pontos de movimento de pano de fundo que envolvem figurantes inexperientes com o seu assistente de realização, não se achando acima de dar uma mão para ajudar a deslocar uma tenda alguns metros. Acima de tudo, vemo-lo a ouvir e passamos a apreciar mais plenamente a natureza colaborativa da sua arte. Ele ouve sugestões de qualquer pessoa mas especialmente dos seus actores. No entanto, sente-se também que as verdadeiras decisões são sempre de Penn, que ele torna suas as sugestões dos outros adoptando-as e assimilando-as na sua própria noção de como o plano em questão deve ser. 

Penn consegue desempenhos tão maravilhosamente vivos dos seus actores porque os respeita. É provável que exista uma relação estreita entre o tratamento de um realizador para com os seus actores e a sua atitude para com as personagens que os actores estão a criar. Desta forma o apregoado controlo total de Josef von Sternberg sobre todos os gestos e expressões dos seus intérpretes está intimamente ligado ao sentido de fatalidade nos seus filmes. A qualidade das personagens de Penn, mesmo as muito secundárias (há cerca de dez bons exemplos só em Alice’s Restaurant), como pessoas que vivem e reagem espontaneamente, relaciona-se com o seu amor pelas contribuições espontâneas dos seus actores, a sua predilecção por encorajar a reacção não ensaiada. Dean Tavoularis tinha vindo para O Pequeno Grande Homem directamente de Zabriskie Point (1970). Naturalmente, como director de arte ele tinha achado mais gratificante trabalhar para Antonioni: foi-lhe dado muito mais que fazer. Mas falou de Penn com grande respeito e expressou bastante bem a diferença fundamental entre as abordagens dos dois realizadores: “O Arthur está bastante empenhado em conseguir aquele momento de verdade entre dois actores a percorrer uma cena. É muito interessante vê-lo a trabalhar, enquanto ele passa a cena em revista uma e outra vez até isso acontecer.” Para Antonioni, por sua vez, o director de arte é provavelmente um colaborador mais importante que os actores: ele “trata os seus actores como parte do todo visual—não há nenhuma da pesquisa por que o Arthur passa para fazer acontecer isso entre os actores.” Penn gosta de trabalhar com actores inteligentes que querem contribuir de forma activa para o filme, e eles gostam de trabalhar com ele. Ele falou de Marlon Brando, por exemplo, com o maior dos carinhos e dos entusiasmos. Brando tem a reputação de ser “difícil” com os realizadores, mas não houve claramente dificuldade alguma durante a filmagem de The Chase (com uma excepção bastante extraordinária: Brando não queria que Calder espancasse o assassino de Bubber Reeves—o momento para o qual todo o filme se direcciona). Mas actores como Brando e Dustin Hoffman são mais inteligentes e sensíveis, têm maior integridade artística, do que alguns dos realizadores para quem trabalham. Se Hoffman protestou, durante as filmagens de The Graduate (1967), que Mike Nichols estava a sacrificar a motivação e a realidade humana em prol de efeitos “giros” e fúteis, alguém pode negar que a vitória de Nichols no filme finalizado prova que o protesto é totalmente justificado? 

Em O Pequeno Grande Homem, Penn está a trabalhar dentro da tradição clássica de Hollywood a partir de um guião que não é seu: uma oportunidade admirável para observar a contribuição que um realizador pode dar durante a rodagem. Eu vi Penn a trabalhar na cena em que a mulher índia do Pequeno Grande Homem, Sunshine (Amy Eccles), apresenta as suas três irmãs, todas enviuvadas pelos brancos, com o objectivo de fazer com que o marido as aceite como mulheres adicionais. No guião, a cena decorre como se segue: 

EXTERIOR—TENDA DE JACK—SUNSHINE E JACK—DIA 

SUNSHINE (sente a barriga inchada): O teu novo filho hoje está a dar pontapés com muita força. Acho que quer sair e ver o pai dele. 
JACK: Diz-lhe para esperar até eu acabar o jantar. 
SUNSHINE: Eu digo-lhe, mas acho que não vai esperar muito mais. (fala para o bebé, seriamente) Fica aí, não saias até o teu pai comer. (de forma um pouco maliciosa) Ainda bem que tenho um marido forte e corajoso que traz tanta caça e comida para casa. 
JACK (alegremente): Mmmm-hmmm... 
SUNSHINE: O meu marido forte traz muito mais do que precisamos. 
JACK (sonolento): Ummm-mmm, cala-te, mulher. Estou a meditar. 
SUNSHINE (silenciosa por um momento, mas tem obviamente qualquer coisa importante para dizer): Há muitos Seres Humanos aqui, muitos bandos de muitos sítios. Mas é triste . . . muitos maridos foram eliminados pelo homem branco. 
JACK (com um ligeiro aborrecimento): O chocalho da tua língua incomoda-me, mulher. 
SUNSHINE: É triste porque muitas mulheres dormem sozinhas e choram. 
JACK (não propriamente indelicado, calmo e objectivo): Agora faz silêncio, ou bato-te. 
SUNSHINE (faz uma pausa): Sim, mas acho que as minhas irmãs estão aqui. 
JACK (abre os olhos): As tuas quê? 
SUNSHINE (humildemente): As minhas irmãs. Digging Bear[6], Little Elk [7], e Corn Woman[8]. Acho que estão aqui. 
JACK: Como assim, achas que estão aqui?! 
SUNSHINE (muito humildemente): Acredito que estão. Tu trazes muito mais comida do que precisamos. (Jack fica a olhar em consternação e Sunshine inclina a cabeça, a fungar) É muito triste. Elas não têm marido, e choram. 
JACK: Isso é uma pena! . . . Lamento. 
SUNSHINE: Digging Bear teve um bebé e perdeu-o, e a Corn Woman também. A pobre Little Elk nunca teve bebé nenhum. 
JACK: Está bem, que queres que eu faça em relação a isso? 
SUNSHINE (sorri): Eu sabia que ias entender. 

Não há detalhamento deste diálogo em grandes planos, planos de conjunto, etc., nenhuma indicação de posições ou ângulos de câmara. Penn rodou-o intacto um grande número de vezes utilizando cerca de quatro posições de câmara diferentes (e lentes diferentes) para que a cena fosse coberta em planos de conjunto médios de diferentes ângulos, em grande plano de Hoffman, e em grande plano de Amy Eccles (a rapariga chinesa que interpreta Sunshine). Ao todo, os actores percorreram a cena pelo menos umas doze vezes, não contando os ensaios. Este método de rodagem—que não é incomum no essencial mas é levado ao extremo por Penn—tem vantagens sob vários pontos de vista. Permite aos actores desenvolver os seus próprios desempenhos, descobrindo novas possibilidades de expressão e embelezamento; quando estão envolvidos intérpretes novos ou inexperientes (há muitos em O Pequeno Grande Homem), a repetição à frente das câmaras é mesmo a melhor forma de os ajudar a ganhar a confiança necessária para construir as suas caracterizações. Existe o perigo complementar de tédio para o intérprete experiente, mas como Penn me sugeriu, mesmo o tédio pode por vezes instigar os actores a impulsos repentinos, novos e espontâneos. A duração da tomada permite aos intérpretes sentir a continuidade da cena, sem ter os seus desempenhos fragmentados mais do que é necessário em grandes planos e planos médios predeterminados, etc. Para Penn e Dede Allen, quando montam o filme, o método proporciona uma enorme gama de escolhas: mesmo as tomadas falhadas podem fornecer fragmentos expressivos que podem ser utilizados. Começa-se a apreciar como é que a riqueza e a densidade concentrada de efeito em tantas cenas dos filmes de Penn são alcançadas. Todo este método de rodagem e montagem relaciona-se de forma muito interessante com os temas e as atitudes de Penn, a visão da vida que os seus filmes expressam. O comportamento dos seus protagonistas é sempre instintivo e empírico, na pior das hipóteses um desorientamento cego, na melhor (Annie Sullivan) um tacteamento criativo por expressão e controlo. Estão sempre demasiado envolvidos na luta da existência para a conseguirem dominar e ordenar externamente; em vez disso, perseguem os seus impulsos internos para aquilo que querem, mal sabendo o que é de antemão. A principal diferença entre os esforços deles e os de Penn é que os dele normalmente são bem sucedidos. 

Só se fizeram alterações mínimas ao diálogo de Calder Willingham à medida que a cena entre Jack e Sunshine se desenvolvia: por exemplo, Hoffman, a repetir os nomes das irmãs em incredulidade cómica. A única mudança de maior ao guião foi a decisão de Penn de rodar a cena na neve. Houve muita discussão no local de filmagens sobre a probabilidade dos índios cozinharem e comerem fora da tenda com neve a cair realmente. Eu acho que a licença, se é que o é, será justificada pelos resultados: vai intensificar o sentido da indianidade de Jack nesta fase da sua vida, a sua adaptação a uma existência dura e estóica. A comédia de superfície da cena vai ser contraposta pelo cenário dos ermos nevados desolados. Penn introduziu algum detalhe de pano de fundo dentro da cena—uma família índia exaurida a reunir-se na sua fogueira de cozinha em plano geral, velho estóico e crianças—que deve realçar este efeito. Ne decurso da rodagem, começaram-se a acumular pequenos toques do tipo que, aparentemente insignificante individualmente, concedem à cena carácter e particularidade. Em vez de ter Sunshine simplesmente a preparar o jantar, Penn pô-la a servi-lo e Jack a comê-lo: “Cala-te, mulher, estou a meditar” tornou-se no mais prosaico e prático “Cala-te, mulher, estou a digerir.” Caracteristicamente, Penn tinha rejeitado colheres índias autênticas em detrimento do efeito mais directamente físico de dedos embebidos em molho quente. Enquanto as tomadas se sucediam, o “estufado de búfalo” tornou-se mais quente e mais quente sobre o fogo; por fim Hoffman recorreu ao expediente de largar massas de neve para a comida para a arrefecer. Finalmente, Penn fez Amy Eccles raspar as sobras de volta para a panela com os dedos. E assim a cena começou a adquirir uma contiguidade física altamente característica juntamente com o seu tom de humor complexo e melancolia inquieta. 

No entanto Penn sente de forma muito intensa as limitações de trabalhar dentro da tradição clássica de Hollywood, mesmo ao ponto de negar a possibilidade de fazer de O Pequeno Grande Homem um filme verdadeiramente pessoal. Assistir à rodagem em Calgary torna fácil para mim entender a sua posição sem concordar necessariamente com ela. Vale ainda mais a pena provar esse argumento uma vez que, neste caso, não estão em causa as habituais tensões—domínio pelo produtor, interferência do estúdio—que se podem imaginar como ameaças para o trabalho dos realizadores de Hollywood. O produtor, Stuart Millar, um homem de charme e inteligência, é um amigo pessoal de Penn e obviamente que confia nele em absoluto. Millar, que está envolvido pessoalmente no projecto desde muito cedo, visita o plateau diariamente, mostrando o mais vivo interesse na rodagem, dando palmadinhas nas costas das pessoas de forma metafórica (e discretamente), mas sem nunca interferir. Há principalmente duas coisas que preocupam Penn—em conversa ele reverte para elas repetidamente: o grande peso da maquinaria, literal e metafórica, envolvida numa grande produção, e—por mais curioso que ao princípio possa parecer—o mero profissionalismo dos técnicos, peritos que têm as suas próprias formas altamente desenvolvidas mas ortodoxas e “anónimas” de fazer as coisas e ficam ressentidos se lhes pedem para as fazer de outra maneira. Qualquer coisa de pessoal e pouco ortodoxa que Penn desejasse fazer teria de ser aplicada contra bastante oposição, talvez uma parte pronunciada para quatro partes não pronunciadas. Percebe-se porque é que só um certo tipo de sensibilidade pode florescer na configuração tradicional de Hollywood: uma sensibilidade que, em primeiro lugar, se pode exprimir adequadamente a si própria em formas tradicionais e por meios tradicionais (o tipo de profissionalismo que Penn considera um obstáculo adequa-se obviamente a Hawks, por exemplo, perfeitamente) e que, em segundo lugar, está também isolada dentro de uma certa firmeza profissional. Não sonharia em descrever Ford, Hitchcock e Hawks como insensíveis, mas também não usaria a palavra “sensibilidade” para eles bem da mesma forma que o faria para Penn. Para um homem da sua sensibilidade, são os intangíveis que realmente contam: a sensação de estar rodeado por uma grande pressão de vontades não necessariamente hostis mas com um interesse puramente profissional e não criativo no seu trabalho. Perguntei a Harry Stradling o que é que achava de trabalhar para Penn. Ele disse que gostava bastante—Penn não pede muitos travellings. Stradling é um dos grandes operadores de câmara profissionais de Hollywood—o próprio Penn falou dele com respeito—mas para ele, como para o resto da equipa de mais de 150, O Pequeno Grande Homem é claramente apenas mais um trabalho, para ser executado com a maior eficiência possível e o mínimo envolvimento pessoal. 

Portanto o filme não surgirá como a afirmação pessoal directa que Penn gostaria de estar a fazer. No entanto parece-me que pode bem ser um trabalho mais pessoal do que ele imagina, envolvido como está em executar o guião de outro homem e frustrado pelo sentimento de limitações e obstáculos no caminho da expressão pessoal directa. Quando se considera as várias etapas na criação do filme, Penn é visto como o único factor constante. Escolha do tema: o romance de Berger pode não ter sido uma escolha inteiramente livre da forma como foram os temas de Mickey One e Alice’s Restaurant, mas nenhum deles foi de forma alguma imposto a Penn, e ele interessa-se há muito no projecto de fazer um filme sobre os índios e o seu destino. Para além disso, a figura central do romance revela algumas claras afinidades com os protagonistas de Penn. Perto do final do livro Jack diz a Old Lodge Skins (as falas não são utilizadas no argumento): “Avô, poucas pessoas têm a sua grande sabedoria. O resto de nós é muitas vezes apanhado em situações em que tudo o que conseguimos fazer é sobreviver, quanto mais compreendê-las. É assim comigo, Pequeno Grande Homem.” Se Billy Bonney tivesse sido mais articulado, podia ter dito o mesmo ao Sr. Tunstall, e (com uma condição semelhante) as palavras poderiam ter sido ecoadas por Mickey, por Bubber Reeves, por Bonnie e Clyde, por Alice, Ray e Shelly. Preparação do guião: Penn deixou claro que o argumento é do próprio Calder Willingham—ele contribuiu menos para o diálogo do que é habitual nos seus filmes. No entanto o guião brotou de consultas entre Willingham e Penn durante um período de anos. Rodagem: Penn, por mais restrições que possa sentir à sua liberdade, demonstrou-me de forma muito convincente que a sua influência permeia tudo. Montagem: Penn está a retomar o seu diálogo “frequentemente inflamado, mas sempre carinhoso” com Dede Allen. Há mais do que um tipo de filme de autor. 

As rushes de O Pequeno Grande Homem pareciam muito promissoras e geralmente muito típicas de Penn na sua vivacidade; algumas das tomadas longas eram tão belas que dei por mim a lamentar que fossem provavelmente fragmentadas na montagem, até começar a sentir, à medida que as tomadas se sucediam no ecrã, o impacto, a riqueza e a complexidade que a selecção e a montagem iriam dar. A escolha aparentemente simples entre tomadas alternativas de um posicionamento de câmara idêntico deve apresentar frequentemente grandes problemas. Vi as rushes de uma cena em que Jack e a sua esposa sueca Olga (outra estreante promissora, Kelly Jean Peters) assistem enquanto o recheio da sua casa é vendido em hasta pública, com Olga a chorar histericamente. Numa tomada anterior, e só numa, o vento soprou o cabelo de Olga para a frente da sua cara, dando-lhe uma aparência mais vulnerável; noutros aspectos a tomada era inferior a outras posteriores. Quais são as considerações que guiam as escolhas de um realizador? Eu fiquei ainda mais impressionado com as possibilidades que a montagem proporciona para controlar e mudar a ênfase emocional de uma dada cena, para aumentar ou diminuir a sua complexidade. Em plano médio, Olga parecia predominantemente uma criação cómica, com o histerismo a raiar a caricatura; em grande plano, encostada ao peito de Jack, embora não houvesse mudança detectável no desempenho em si, ela parecia genuinamente patética e perdida. 

A julgar pela força daquilo que eu vi, espero por O Pequeno Grande Homem com altas expectativas. Se o filme tem um defeito, penso que possa estar na concretização das personagens índias. Assim sendo, será um caso de um honroso quase-falhanço e não um desastre. Tomou-se um grande cuidado em relação aos detalhes da vida índia: Penn pareceu-me estar a capturar maravilhosamente todas as suas feições exteriores, a sua fisicalidade, a sua dureza, e a evitar com sucesso o meramente pitoresco. Foi agradável descobrir que certas personagens e pormenores do romance que parecem necessariamente estranhos ou alienígenas foram mantidos, notavelmente o “Contrário,” Younger Bear[9], um Cheyenne que foi eleito para fazer tudo ao contrário excepto lutar. Vi as rushes de uma cena em que, ao ir para o banho, ele se “lava” a si próprio com poeira e depois se “seca” no rio. Alguns dos figurantes índios mais velhos conseguiram lembrar-se de alguns “Contrários” da sua infância. Também há o heemaneh, ou índio homossexual, Little Horse[10], que se veste como uma mulher e ao qual se atribui um lugar honrado na sociedade Cheyenne. Na maior parte das adaptações de Hollywood, estas seriam as primeiras personagens a ser eliminadas. Mais uma vez, foi feita uma reflexão cuidadosa na escolha dos papéis dos índios: Old Lodge Skins, a esposa, Little Horse, duas das irmãs de Sunshine, são todos interpretados por índios autênticos. Quando se demonstrou impossível encontrar um índio adequado para um papel, Penn e Millar pegaram numa dica do final do romance de Berger, em que o envelhecido Pequeno Grande Homem, num lar de idosos, se queixa de westerns televisivos em que os índios são interpretados por italianos ou russos, e acrescenta: “Se as gentes do espectáculo acabam de ficar sem índios verdadeiros, deviam contratar orientais para interpretar esses papéis; porque há uma grande semelhança entre eles os dois, sendo primos afastados. Olhe para eles sem preconceito e vai ver o que eu quero dizer.” Mas para um artista, o cuidado e o pensamento não são substituto nenhum para a percepção intuitiva: por mais pesquisa que faça, por mais pormenores que trabalhe, continua a haver o problema de “concretizar” personagens que são o produto de uma cultura que não é a dele, que pensam e sentem com diferenças subtis. Inevitavelmente, as personagens Cheyenne falam inglês, mas para um realizador tão físico como Penn, a forma como uma personagem fala é inseparável da forma como se move, os gestos que faz, de todo esse sentido de vida interior que as personagens de Penn comunicam. O problema começa por ser verbal e rapidamente se transforma em muito mais. Assisti às rushes de uma cena perto do final do filme em que Younger Bear (um actor latino-americano espirituoso e intenso chamado Cal Bellini), a quem Jack tinha salvado uma vez a vida, diz a Jack, depois de o salvar do massacre de Little Big Horn, que estão quites por fim, e da próxima vez que se encontrarem, “posso-te matar sem me tornar má pessoa.” Houve muitas tomadas, e a disparidade entre elas era visivelmente maior do que em qualquer das outras rushes que eu vi, como se Penn e Bellini estivessem a tentar todas as execuções possíveis das falas numa tentativa algo desesperada para encontrar a certa. Podemos estar seguros de que Penn não nos vai dar “peles-vermelhas” estereotipados de Hollywood; resta saber se as suas personagens índias vão alcançar a mesma particularidade vivente que nos habituámos a esperar nos seus filmes.

[1] O Pequeno Grande Homem foi lançado nos Estados Unidos a 23 de Dezembro de 1970. (Nota dos editores)
[2] A duração real é de 139 minutos. Richard Boone não aparece no filme. (N. d. e.)
[3] Vejam-se os comentários de Penn no início da entrevista “Arthur Penn in Canada.” (N. d. e.)
[4] Raio de Sol. [Nota do tradutor]
[5] Peles de Antigas Pousadas. [N. d. t.]
[6] Ursa Que Cava. [N. d. t.]
[7] Pequena Cerva. [N. d. t.]
[8] Mulher de Milho. [N. d. t.]
[9] Urso Mais Novo. [N. d. t..]
[10] Cavalo Pequeno. [N. d. t.]

in «Arthur Penn», de Robin Wood, Praeger Film Library, Nova Iorque, 1969; republicado in «Arthur Penn - New Edition», de Robin Wood (com Richard Lippe; editado por Barry Keith Grant), Wayne State University Press, Detroit, 2014.

domingo, 20 de outubro de 2024

ALICE'S RESTAURANT (1969)


por Louis Skorecki

O senhor Edouard já não está com as fúrias. Foi o Jacques que disse. Primeiro pensámos que era uma brincadeira, mas tem ar de ser verdade. Jacques viu-o a sair do Classik, aquele cinema de bairro que faz noites com danças ao fim-de-semana. Estava a falar sozinho, a falar de Arthur Penn, ria sozinho. Caroline franziu a testa, disse que era muito preocupante. Não, disse Jacques, eu falei com ele, ele vai bem, está feliz da vida, é tudo. Estava a falar de Arthur Penn?, perguntei eu, isso não parece dele, sempre o detestou. Agora adora-o, disse Jacques num tom seco. Caroline franziu a testa, disse que era mesmo preocupante. Jacques disse que não. Porquê?, perguntei. Porque não, disse Jacques, irritado. Desde quando é que duvidam da minha palavra? Nós acreditamos em ti, disse Caroline, nós acreditamos em ti. Não, não acreditam nada, disse Jacques. O senhor Edouard adora Arthur Penn, acrescentou ele, está feliz, e é tudo. E foi-se embora sem dizer uma palavra. 
 
Uma hora depois, no café, voltamos a pensar naquilo que Jacques nos disse, até que o senhor Edouard entra como uma flecha. Não amar Penn, é um escândalo, diz ele como se soubesse que tínhamos acabado de falar sobre isso. Revi o Alice's Restaurant, esse filme que toda a gente acha uma palhaçada hippie, é um filme perfeito. Ficamos de boca aberta. O senhor Edouard detesta Dylan, detesta Arlo Guthrie que sempre considerou um Dylan de segunda, detesta o desleixamento hippie. O que é que se passa com ele? Até Lourcelles reconhece a importância de Penn, diz finalmente o senhor Edouard. Aí, fico perplexo. O Lourcelles?, pergunto eu, não estará enganado? O senhor Edouard saca calmamente o Lourcelles do bolso. Lê. «Com Alice's Restaurant e Quatro Amigos, Arthur Penn evidencia-se como o melhor cronista cinematográfico dos anos 60 e como o digno sucessor de Kazan.» Não haja dúvida, já não é o mesmo.

in «Libération», 21 de Novembro de 2005.

sábado, 28 de setembro de 2024

ALICE'S RESTAURANT (1969)


por Arthur Penn

O Passado inverno de 1968 agora parece ter sido uma época romântica e inocente. A opinião sobre a guerra no Vietname parecia-se estar a consolidar numa oposição efectiva; o senador McCarthy fez soar a nota e os jovens preencheram a melodia com a resposta lírica deles à sua campanha. Robert Kennedy anunciou e LBJ retirou-se. Houve um sentido de poder doce e novo a encher os jovens.

Foi nessa altura que falámos pela primeira vez em fazer um filme de Alice's Restaurant. Na primeira noite, Arlo e um bando de miúdos da igreja reuniram-se na nossa casa. Fumámos alguns, e quando falámos sobre o recrutamento eles soltaram uma torrente de estórias sobre as suas experiências físicas e psicológicas nos exames de recrutamento. As suas "provocações" pareciam ter sido a sua arma mais eficaz. Tinham-nas armado aos pais, às escolas, aos polícias e aos avaliadores do recrutamento.

As provocações eram irreverentes, bizarras, grosseiras, mas, acima de tudo, solitárias. Cada miúdo contestava o direito de um governo que nunca formou a forçá-lo a combater uma guerra a que se opunha. Cada miúdo sozinho com a sua provocação.

A gravação de Arlo foi reconhecida pelos membros da sua geração como a balada das suas posições. As regras de uma sociedade restritiva podiam ser usadas contra essa sociedade. Era uma provocação maciça.
I'm sittin' here on the bench...
I mean I'm sittin' here on the
Group W bench, 'cause you want to know
if I'm moral enough to join the army,
burn women, kids, houses and villages
after bein' a litterbug.[1]
Era uma sociedade que era eminentemente digna de provocações.

Fumámos mais alguns, depois o Arlo tocou "Amazing Grace" durante cerca de duas horas e nós cantarolámos, cantámos, gritámos ou acompanhámos. Depois eles foram-se embora.

Eu fiquei com uma sensação de ter visitado a minha própria juventude, mas com algumas diferenças. A independência deles era mais flamejante do que a nossa tinha sido. Eles tocavam uns nos outros com uma tranquilidade e um prazer público que nos teria aterrorizado nos anos quarenta. Cada uma destas crianças tinha tido o seu encontro com a polícia. Alguns até tinham sido encarcerados, o que teria sido impensável nos meus anos de recrutamento. Afinal, teria entrado nos nossos cadastros, esses documentos sagrados e invisíveis que nos identificavam ao nosso governo.

Além disso, a minha juventude era de orientação urbana, e eu ansiava pela vida na cidade. A política também era muito mais clara nessa altura. O trabalho era bom, o capital era mau. Na altura ninguém imaginava alguma vez que o trabalho se poderia tornar abusivo, excludente e racista. A Espanha era a nossa dor constante. Finalmente, quando Hitler marchou, nós soubemos o nosso destino e marchámos contra ele. Foi tudo bastante simplista, quando se olha para trás. Claro que a forma dos nossos protestos era colectiva. A suspeita em relação a grupos não era forte. O ideal soviético era o único ideal, para o bem ou para o mal. Virou-se para o mal.

As canções de Woody Guthrie tinham enchido a minha juventude. Eram colectivas no sentimento, e deram-nos a sensação de que éramos muitos, por todo o país, enquanto as ouvíamos, cantávamos e fazíamos amor ao som delas.

Arlo e os amigos queriam estar fora da cidade. Queriam-se mover juntos à sua maneira e isso era para longe da política, das cidades, de exigências para aderir e ser convencionalmente identificado.
I don't want a pickle,
I just want to ride my motorcycle,[2]
diz Arlo.

"Alice's Restaurant Massacree" de Arlo era uma provocação musical. O som parecia-se com o de Woody mas a intenção era diferente. Onde Woody procurava militar, Arlo atacava através do ridículo:
Walk into the shrink wherever you are,
just walk in and say,
"Shrink, you can get anything you want
at Alice's Restaurant" and walk out.
    You know, if one person, just one
person does it they may think he's
really sick... and they won't take him.
And if two people do it, in harmony,
they may think they're both faggots
and they won't take either of them.
    And if three people do it... can
you imagine three people walkin' in
and singin' a bar of Alice's Restaurant
and walkin' out... they'd think it's
an organization!
    And can you imagine fifty people a day?
I said, "Fifty people a day!" walkin'
in and singin' a bar of Alice's Restaurant
and walkin' out?"
    Friends, they may think it's a movement.
And that's what it is, the Alice's
Restaurant Anti-Massacree movement.
And all you gotta do to join is to
sing it the next time it comes around
on the guitar... with feelin'.[3]
Um movimento!

As palavras ressoavam da minha juventude.

Aí estava o nosso filme, pensámos nós. O Venable e eu começámos no argumento e falámos com o Arlo, o Ray, a Alice, a mãe do Arlo, a mãe da Alice, amigos do Woody, miúdos na igreja, miúdos que tinham deixado a igreja. Os jovens falavam todos de um mundo caído em tempos maus. Não queriam ter nada que ver com ele. Mantiveram-se juntos na linguagem comum da Astrologia, o I Ching, cartas Tarot e a certeza de que a Califórnia ia para dentro do mar numa questão de meses. Faziam piqueniques nas pradarias. As vibrações pacíficas eram a essência e aconteciam onde quer que a gente curtida se reunisse. As portas da igreja estavam abertas; os seus braços estavam abertos.

No entanto, não era nenhum movimento.

O resto daquele ano trouxe os assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy, os polícias de Chicago a estourar cabeças jovens, a eleição de Richard Nixon para as cabeças velhas, e a explosão nos campi em Berkeley e na Colombia. A provocação tinha acabado.

Em Stockbridge, Ray e Alice estavam-se a divorciar; a propriedade futura da igreja estava em dúvida. As coisas tinham-se desmoronado. As pessoas tinham-se ido embora. O mundo parecia revoltante e a cena na igreja não se iria sustentar.

Os dias em que Arlo cantou sobre... aquela Acção de Graças... a cerimónia de casamento de Ray e Alice na sua própria igreja com os seus miúdos e família em redor, foram lembrados com nostalgia e amor. Mas era claro que esses dias tinham passado. E o mundo tinha-se tornado demasiado absurdo para a provocação. De facto, os eventos por que todos passámos nesse ano pareciam mais um cabaré gigante do que algo real.

A provocação morreu em 1968.

Não conseguíamos ver uma posição política a surgir da cena em Stockbridge. Estas pessoas tinham-se desligado e não se iam engajar novamente. Distanciaram-se. Insistiam que nunca tinha havido uma comunidade e portanto não se podiam estar a distanciar. Nós perguntámos, "O que é que tinha havido?"

"Uma família."

Não a família com que se nasce, mas a que se forma na imagem dos nossos sonhos. Uma família de formato livre com irmãos e irmãs escolhidos (ou nenhuns, de todo) e um pai—expansivo, exuberante, violento em fúrias, simpático e móvel, um pai que anda de mota! E uma mãe—cândida, linda, disponível—e não a nossa mãe.

"Exceptuando-se Alice." A frase ficou-nos nas mentes.

Eles tinham ido para a sua nova família mas começaram-se a formar figuras. Figuras antigas em novas roupagens, experiências às quais eles tinham tentado renunciar, insistiam em invadir a sua nova família. Eles amavam-se uns aos outros, mas as portas da igreja, sempre abertas, tinham permitido apenas um breve refúgio dos fantasmas detentores dos seus passados. Então vieram os fantasmas.

Esse era para ser o nosso filme. Miúdos de coragem a recusar a guerra. Um novo horror que não podia ser provocado. Uma família que tinha conhecido a graça, a desintegrar-se.

Não um movimento.

Isso ainda está para vir.

Vemo-nos quando as luzes se apagarem.

[1] "Estou sentado aqui no banco... / ou seja estou aqui sentado no / banco do Grupo W, porque querem saber / se sou moral o suficiente para me juntar ao exército, / queimar mulheres, miúdos, casas e aldeias / e depois ser um lixo." Alice's Restaurant de Arlo Guthrie. 
[2] "Eu não quero uma alhada, / só quero andar na minha motorizada,". "The Motorcycle Song" de Arlo Guthrie. 
[3] Entrem no psiquiatra onde quer que estejam, / entrem apenas e digam, / "Doutor, pode ter tudo o que lhe apetece / no Restaurante da Alice" e saiam de lá. / Sabem, se uma pessoa, apenas uma / pessoa o fizer eles podem pensar que ele é / mesmo doente... e não o aceitam. / E se duas pessoas o fizerem, em harmonia, / eles podem pensar que são os dois paneleiros / e não aceitam nenhum deles. / E se três pessoas o fizerem... conseguem / imaginar três pessoas a entrar / e a cantar um trecho do Restaurante da Alice / e a saírem... eles iam pensar que era / uma organização! / E conseguem imaginar cinquenta pessoas por dia? / Disse eu, "Cinquenta pessoas por dia!" a entrar / e a cantar um trecho do Restaurante da Alice / e a saírem?" / Amigos, eles podem pensar que é um movimento. / E é isso que é, o movimento / Anti-Massacre do Restaurante da Alice. / E a única coisa que têm de fazer para se juntarem é / cantá-lo da próxima vez que aparecer / na guitarra... com sentimento. Alice's Restaurant de Arlo Guthrie.

Nova Iorque
Abril, 1970.

in «Alice's Restaurant», Doubleday & Company, Nova Iorque, 1970.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

ALICE, RAY E ARLO


por Venable Herndon

Tentar lá chegar em conjunto. O cenário para a tentativa de Ray e Alice foi pouco comum: uma velha igreja numa estrada escura em Van Dusenville, no Massachusetts. Não muito longe de Stockbridge, onde Thornton Wilder passa tempo no Verão (veio pela primeira vez há três anos para actuar em A Nossa Cidade), e Lenox, onde fica a pequena casa vermelha de Nathaniel Hawthorne mesmo abaixo das vedações de Tanglewood e mesmo acima de um prado verde inclinado de Berkshire. Mais afastada do local, perto do mar do outro lado estado, em West Roxbury, está Brook Farm, onde mais de cem anos antes, de 1841 a 1847, um grupo de estudiosos e escritores brilhantes americanos tentaram lá chegar em conjunto.

Os homens e mulheres de Brook Farm tinham pensado bem no assunto antes de tentar. Alice, Ray, Arlo e os outros miúdos simplesmente se deixaram levar pela onda. Se eles pensarem no assunto, são todos demasiado porreiros para o admitir. E a igreja deles, que foi oficialmente des-santificada numa missa de desconsagração pela Diocese Episcopal antes deles se mudarem para lá, era mais um santuário no sentido medieval do que a experiência mais antiga, mais iluminada e transcendental. A igreja de Ray e Alice era um refúgio para miúdos que estavam em luta contra um sistema corrupto, ou a tentar contorná-lo. As grandes portas góticas ficavam abertas noite e dia. Podia-se arranjar algo para comer (algo bom—toda a gente incitou Alice a abrir um restaurante), abancar, foder, curtir música, tocar a nossa, rimar ou não rimar como se escolhesse. Façam o que quiserem! Fais ce que voudras! A Abbaye de Thélème de Rabelais.

Essa foi a forma de Ray e Alice tornarem a sua igreja novamente sagrada. Mas para muitos dos locais invernosos da Nova Inglaterra que espreitavam por detrás das suas cortinas para as idas, os acontecimentos e as vindas da igreja, a vida lá parecia assemelhar-se muito mais à tutelada pelo Bispo de Sens, que, no século dez, engraçou com a Abadia de São Pedro, expulsou os monges para os substituir por um bando de meretrizes, pôs os cães de caça no canil e instalou os seus falcões nos claustros. A igreja de Ray e Alice era um santuário para cães e gatos e coelhos e pássaros e ratos—e por vezes piolhos também.

Alice era a personificação da figura de anima de que fala Jung, a matriarca do clã, a mãe sagrada do subconsciente, a força Yin. À luz do seu espírito maravilhosamente tolerante e misericordioso, o estilo de vida da igreja percorreu um longo caminho até restaurar os danos causados aos corações e às mentes e às almas dos miúdos pelo peso de tantos séculos ocidentais de culpa imposta pelo patriarcado.

Portanto a igreja de Ray e Alice era uma espécie de válvula de segurança que aliviava a angústia que as repressões da moralidade da classe média tinham criado para os seus filhos. Os miúdos vieram porque estavam fartos da ética de trabalho puritana, de fazer em vez de ser, de obrigações em vez de escolhas, de todo o processo que uma sociedade avarenta (de agarrar a maçã e foder o jardim) utiliza para reduzir o organismo humano naturalmente auto-suficiente e independente a uma condição de dependência impotente no super-estado da profecia de Orwell.

Enquanto a igreja se formava, Arlo, que conheceu Alice e Ray antes deles terem a igreja (quando Alice era a bibliotecária, e Ray um professor de trabalhos manuais na escola preparatória super patriarcal da zona), estava para fora numa instituição de ensino "superior" no Midwest a conduzir a sua própria guerra privada e muito pessoal contra o Sistema. Os professores dele estavam a fazer o seu nivelado melhor para o nivelar à submissão tradicional de cala-te e dispara a Exército, Mãe, Tarte de Maçã, Bandeira e Computador. Mas ele não lhes ligou nenhuma. Porque de alguma forma ele acreditava que se estava a tornar em algo melhor do que aquilo que eles queriam que fosse mesmo que não soubesse ao certo o que é que queria ser. Portanto não precisava das muletas da sua música estéril, do seu racismo, da sua burocracia, os seus homicídios sacrificiais de populações súbditas no estrangeiro e em casa. No final disse que não a toda a experiência e procurou refúgio na igreja.

Alice e Ray e os miúdos deram-lhe apoio moral e emocional para a sua disputa com a lei por desordem e para a sua angústia com o Exército (encoberta de forma brilhante no seu humor de resistência especial) por não querer ir matar, queimar, violar, destruir e aniquilar.

E Alice abriu o seu restaurante e trabalhava de manhã cedo até muito tarde à noite e sem a sua presença constante na igreja a vida lá começou a recuar para os velhos padrões patriarcais tão profundamente enraizados na consciência caseira e essencialmente sulista de Ray. Ray viu-se a insistir na sua autoridade, dizendo aos miúdos que estavam a viver na "sua" igreja, insistindo que o comportamento deles não fosse para lá dos limites que ele tinha estabelecido. E lá estavam eles, os miúdos, de volta ao cenário de que tinham fugido, com Ray como dirigente da administração. E todas as suas declarações sobre liberdade tinham tanto sentido para eles como as de Thomas Jefferson para os escravos que possuía.

E assim outra microcósmica sociedade livre—em que durante um tempo as relações sociais-sexuais despreocupadas e joviais substituíram os rigores do dever conjugal e da ditadura paternal, em que a experiência real da própria natureza de uma pessoa substituiu as pseudo-viagens dos dogmas místicos e da fantasia política—entrou em colapso. E a igreja vai ser vendida e os miúdos estão a comprar os próprios terrenos, sobretudo com a massa dos paizinhos, e estão a assentar nas suas propriedades em relações de estilo casamento.

Mas não consigo deixar de pensar que eles estão todos melhor do que as pessoas que nunca tentaram combater o sistema de todo. E estou grato à Alice e ao Ray e ao Arlo, e a toda a gente da igreja, e a Arthur Penn, por me deixarem olhar para as suas vidas e viver com eles por algum tempo.

Nova Iorque
9 de Fevereiro, 1970

in «Alice's Restaurant», Doubleday & Company, Nova Iorque, 1970.

domingo, 18 de agosto de 2024

Entrevista com Arthur Penn


por Jean-Louis Comolli e André S. Labarthe

Cahiers Quando comparado tanto a Bonnie e Clyde como ao Left Handed Gun, The Chase pode parecer, mesmo ao nível do argumento, menos elaborado, e até desajeitado: a primeira sequência do filme, por exemplo, tem o efeito de uma peça anexada, que se mantém externa. Qual é a importância do seu trabalho nos argumentos?

Arthur Penn Para The Left Handed Gun, a história inicial era muito simples, e o meu trabalho foi enriquecê-la desenvolvendo primeiro as relações de Billy com os seus amigos (sobretudo o escocês), e trabalhando em seguida todos os outros aspectos do filme de forma sistemática com o argumentista. No início de Bonnie e Clyde, há um argumento que chega até nós bastante completo, totalmente escrito (era um argumento para o qual François Truffaut tinha contribuído um pouco). Mas, como é hábito meu, pedi aos autores para o re-trabalharem comigo e fazer nele algumas mudanças. Eles aceitaram, integraram as minhas ideias ao argumento deles, e tanto assim foi que, como com The Left Handed Gun, houve verdadeira colaboração entre mim próprio e os autores do argumento. O que não aconteceu com The Chase. A estória foi escrita por Lillian Hellman, mas apenas até um certo ponto, porque parecia que nunca mais a ia conseguir terminar, tanto que tive de intervir e vi-me obrigado a acrescentar ao trabalho dela tudo aquilo que forma o final do filme: a grande cena no ferro-velho e o homicídio final, à Kennedy. Para todo o resto do filme, tive de me contentar exclusivamente com o argumento que ela tinha escrito, de modo que The Chase não é um filme que me seja verdadeiramente pessoal.

Cahiers Porque é que não conseguiu colaborar com ela como com os seus outros argumentistas?

Penn Ela não quis considerar que pudéssemos sequer discutir aquilo que ela tinha escrito. É uma grande senhora, e não concebe que se toque naquilo que faz. A certa altura, o produtor, Sam Spiegel, chamou outra pessoa para re-escrever aquilo que ela tinha feito, apesar de tudo, mas aí já estávamos a filmar, o que fez com que tudo se tornasse muito rapidamente na maior das confusões: num dia tínhamos um pedaço do argumento de Lillian Hellman, noutro dia qualquer coisa escrita por Horton Foote, noutro ainda um fragmento re-trabalhado por Ivan Moffet e às vezes também, possivelmente, passagens que se deviam ao próprio Sam Spiegel. Uma mistura terrível! Eu não sabia que iriam acontecer mudanças destas. Isso começou com Brando, que queria certas modificações no seu papel e no do negro. A personagem que Brando interpreta tem essa particularidade de não poder fazer nada no filme, uma vez que é a Lei. Ora, aquilo que existe de mais difícil para um actor, é não fazer nada de todo, e isso incomodou Brando, que queria interpretar um homem de acção...

Cahiers O desempenho dele é espantoso na cena do espancamento: fica-se com a impressão de que dá e recebe mesmo os golpes, e o efeito de violência é ainda mais nítido...

Penn Brando teve algumas ideias para esse espancamento. Nós primeiro tínhamos rodado a luta normalmente, e depois rodámos em acelerado, a 16 imagens, e aí Brando acertou realmente nos seus adversários e levou com os golpes deles. Mas no entanto isso não está no filme: quando os montadores viram essa tomada, ficaram assustados e não a utilizaram porque lhes parecia insuportável. Mas eu um dia utilizo-a...

Cahiers Fale-nos de Mickey One...

Penn O filme foi rodado em Chicago, na sequência de um acordo especial com a companhia de produção, a Columbia. Os dirigentes da Columbia deram-me todo o dinheiro necessário e não se envolveram de todo no filme: além disso, contratualmente, nem sequer tinham o direito de ler o argumento. Realmente, esse devia ter sido melhor filme, porque tinha a mais total das liberdades.

Cahiers Em The Chase, pelo contrário, parece ter sido constrangido pela máquina hollywoodiana...

Penn Fui. É uma coisa terrível isto de fazer um filme com tantos técnicos à nossa volta, tanta gente muito qualificada e muito hábil: se temos uma ideia, ela vê-se imediatamente filtrada como o fumo pelo filtro de um cigarro. Cada um dos que nos rodeia sabe exactamente como é que a nossa ideia deve ser realizada, e aquilo que acaba por sair de todos esses esforços precisos, não é a nossa ideia, mas o arquétipo da ideia hollywoodiana, o lugar comum, o banal. Se quisermos evitar isso, é preciso dizer constantemente que não aos nossos colaboradores: recusar as propostas deles sistematicamente, de uma nuance na cor à escolha de uma gravata, é preciso mudar tudo! Se queremos que o resultado do nosso trabalho ainda nos pertença e que nos exprima pessoalmente, é preciso vigiar tudo, tudo, em cada cena, para nos assegurarmos que o mais pequeno detalhe é tal como o queríamos. Assim, muito rápido, já não se tem interesse nem sobretudo energia suficientes para poder fazer tudo sozinho, e eis porque, no final das contas, The Chase se tornou mais um filme de Hollywood do que de Penn.

Cahiers Com Mickey One e Bonnie e Clyde, rodou dois filmes com Warren Beatty. Como é que trabalha com ele, ele colabora no argumento ou na concepção das personagens?

Penn Para Mickey One, não. Para Bonnie e Clyde, Warren Beatty não só era o produtor, como tinha sido ele a comprar o argumento. Efectivamente, falámos de todos os problemas, e ele participou pouco na escrita definitiva do argumento. A única modificação importante, que tinha a ver com a personagem de Bonnie, veio da sua intérprete, Faye Dunaway: ela pensou que, mais para o final do filme, Bonnie e Clyde deviam conseguir fazer amor juntos. Ela falou-me disso, eu concordei, falei disso a Warren e ele também teve essa ideia, que então adoptámos. Quanto a Warren actor, ele interpretou o seu papel de forma muito séria, exactamente como lhe tinha pedido. Eu sei que ele tem a reputação de ser um jovem muito difícil de dirigir, mas nós somos muito próximos, muito amigos, e temos uma forma de falar um com o outro que evita qualquer problema: muito crua, muito directa e muito natural.

Cahiers Depois de Mickey One, houve um pequeno desacordo entre vocês?

Penn Sim. A nossa relação foi difícil: o Warren não queria interpretar o papel como eu queria que interpretasse, ele não o via como eu. E não nos entendemos bem. Mas antes de começar Bonnie e Clyde, concordámos em dizer muito francamente aquilo que pensávamos um do outro, e em dizê-lo de forma muito violenta se fosse necessário. Também concordámos que em caso de desacordo total, seria ele a ceder e faria aquilo que eu queria. Aí está. Na verdade, curiosamente, nós tínhamos as mesmas ideias. O único ponto sobre o qual divergimos um pouco, foi na escolha de Faye Dunaway para Bonnie: no início, ele não gostava dela e achava que não era a Bonnie que precisávamos. Depois de ter trabalho com ela, lá para o meio da rodagem, percebeu que era perfeita.

Cahiers A rodagem foi cronológica?

Penn Não. Eu queria, mas era impossível.

Cahiers Porque seguimos a mesma evolução que Beatty em relação a Faye Dunaway: ao princípio estamos contra, um pouco mais tarde a favor...

Penn Nós quisemos que essa evolução no espectador em relação a Faye Dunaway fosse assim. Era preciso que ela no início fosse um bocado vulgar, nem agradável nem simpática, para que em seguida, depois da primeira cena de amor com Clyde, quando se torna evidente que ele é impotente, nos pudéssemos dar conta de que fica comovida e tocada com essa fraqueza, e que a partir daí, a personalidade de Bonnie mudasse.

Cahiers Podem-se encontrar parentescos entre a personagem do Left Handed Gun e a de Clyde: a vida é para os dois um jogo, que eles jogam com uma arma, como crianças. E ambos morrem, mas tendo-se metamorfoseado e tendo mudado. Pode-se dizer que para si o pistoleiro canhoto também era impotente?

Penn Penso que não. Era muito jovem, de certa forma infantil, e a única mulher com quem tinha dormido era o do seu antigo amigo. Não lhe interessava verdadeiramente, isso de ter uma história de amor, e pode-se falar de um lado edipiano nele. Ele não era impotente, mas quase: talvez seja fazer psicologia primária, mas pode-se presumir que as pessoas que vivem muito de arma na mão têm um problema a nível sexual, que isso manifesta um complexo...

Cahiers Encontramos em Bonnie e Clyde - levada ao seu ponto extremo - a mesma tendência dos seus outros filmes: breves sequências justapostas que exploram ao máximo a violência das situações e conduzem ao paroxismo a representação dos actores...

Penn A razão deve-se ao facto de que eu queria um ritmo e uma montagem muito nervosos. As recordações que eu tinha de Bonnie e de Clyde, efectivamente, eram recordações de fotografias. Também não queria utilizar uma câmara móvel que seguisse uma cena durante muito tempo, mas de alguma forma uma técnica caleidoscópica.

Cahiers Parece então que cada plano do seu filme obedece a uma dupla função: integrar-se no movimento geral do filme, e fornecer ele próprio uma informação, uma ideia nova, em relação ao plano anterior, por um processo que lhe concede uma autonomia quase completa. Como se cada plano, ainda que participando da montagem geral que almeja a continuidade, contradissesse essa continuidade com o seu isolamento quase radical...

Penn A minha concepção do filme baseia-se em grande parte na noção de ironia. Muitas vezes, faço um plano para induzir o público a acreditar numa coisa, e no plano seguinte, inverto essa certeza. Por exemplo, no início do filme, quando o fazendeiro chega e afirma que o banco lhe tirou a casa, Bonnie e Clyde sabem que são ladrões, mas ainda não sabem do quê nem porquê. Portanto no final da cena temos um grande plano de Warren Beatty que diz: «Nós roubamos bancos». É aí que ele se apercebe daquilo que quer fazer, depois de o fazer, após o facto. É como se dissesse subitamente: «Descobri a minha causa, agora sou um ladrão de bancos, sei o que tenho de fazer». A ideia geral de Bonnie e Clyde era falar de uma inteligência muito obscura, não de alguém subtil ou complexo. É alguém que tem um grande desejo de acção mas que não sabe muito bem de que acção nem porquê. Também queria mostrar por contraste que as outras pessoas, pelo seu lado, estavam paralisadas pela Depressão, como durante a cena do acampamento, no final: há uma espécie de estilização na imobilidade, os outros estão atrofiados, congelados, apenas Bonnie e Clyde estão em movimento, funcionam, talvez por motivos idiotas e auto-destrutivos, mas agem.

Cahiers O que é que pediu à actriz para o último plano do filme, quando ela olha pela janela?

Penn Warren Beatty e ela não se davam nada bem, estavam muito chateados um com o outro, enquanto que eu e ela nos dávamos muito bem. Eu era um pouco protector, se não mesmo paternalista para com a minha actriz. Eu disse-lhe: «Olha para Clyde» - na direcção onde era suposto Warren estar. Mas no último segundo, descartei Warren e pus-me no lugar dele, tanto que ela tem um olhar muito doce, muito gentil, e esse olhar - embora ela tenha esboçado um gesto de surpresa que quebrou o plano - guardei-o, porque o queria e tinha-o procurado.

Cahiers Quando o vi a trabalhar em Hollywood, fiquei impressionado com facto de falar em voz baixa para os actores, enquanto a maior parte dos outros cineastas gritam frequentemente...

Penn Às vezes, faço apenas isso para os descontrair e lhes inspirar confiança, mas outras vezes com outra intenção: revelar-lhes por exemplo algo sobre a personagem de outro actor, e algo que o outro não saiba. Então, quando a cena começa, aquele que não está por dentro pergunta-se: «O que é que Penn lhe disse? O que é que ele lhe disse para fazer?» E para mim isso cria uma tensão, uma vivacidade e até uma inquietude de olhares que se acrescentam à cena como estava planeada e alimentam o seu interesse. Mas outras vezes, também, o que eu digo não se relaciona directamente, nem indirectamente, com a cena. É por exemplo: «Queres um cigarro, ou ir à casa de banho?», coisas simples que permitem a alguém recomeçar a trabalhar como um ser humano, não como uma máquina...

Cahiers No momento em que Clyde morre, há um plano em picado, ele vira-se, vêmo-lo de costas, o corpo dele sobe, como uma espécie de enxurrada, e depois muda-se de plano. Teve esta ideia antes ou durante a rodagem?

Penn Antes. Eu queria representar de alguma forma o espasmo da morte, e servi-me de quatro câmaras, cada uma a uma velocidade diferente: 24, 48, 72 e 96 imagens por segundo, creio eu, também com objectivas diferentes.

Cahiers E a morte de Bonnie?

Penn A verdadeira Bonnie foi electrocutada. Mas eu queria as duas formas da morte. A dela é um choque puramente físico, filmamo-la com várias câmaras, acrescentámos buracos de balas, e até há um pedaço da cabeça de Warren que salta, como a de Kennedy naquela imagem famosa da sua morte.

Cahiers O que é que pediu aos actores nesse momento?

Penn Apenas que representassem a morte, que caíssem, que obedecessem às simples leis da gravidade. Warren caiu num pequeno outeiro, depois vira-se. Ela, foi atingida atrás do volante do carro, amarrámos uma das pernas dela para que não caísse do carro, mas balançasse simplesmente de lado. Fiz com que se fizesse essa tomada três ou quatro vezes, mudando velocidades e objectivas, para conseguir essa espécie de variação no espaço e no tempo.

Cahiers E ao mesmo tempo, isso confere algo de um pouco irrealista à morte de Clyde...

Penn Sim, eu sabia que o filme iria terminar assim, portanto podia fazer com que fosse uma morte dura, vulgar, verdadeiramente obscena, com algo de terrível, mostrá-lo despedaçado pelas balas, mas isso não me parecia a forma certa de terminar: a morte do casal é uma conclusão lógica, prevista de antemão, incluída nas premissas da narrativa, era preciso fazer dela uma abstracção em vez de um objecto de reportagem...

Cahiers Isso introduz uma dimensão quase mítica no final do filme...

Penn Exactamente. Por sinal isso também é verdade para The Left Handed Gun, mas, infelizmente, o seu final foi acrescentado, e evidentemente não é meu. Depois de Billy cair, havia uma pequena procissão na aldeia, de mulheres com velas, que rodeavam o corpo e se sentavam junto dele... um pequeno ritual para encerrar o ciclo da lenda, mas acrescentaram aquele final idiota com a mulher do xerife que diz: «Agora pode regressar a casa», um final que não tem sentido nenhum.

Cahiers Será que - nessa óptica -, não teria sido preferível terminar Bonnie e Clyde com o plano de Beatty a virar-se para trás, em vez de fazer aqueles sobre a cidade com as pessoas que chegam?

Penn Eu pensei nisso tudo primeiro, mas depois pareceu-me demasiado abrupto. Tive a impressão de não estar a alcançar a última nota de uma sinfonia, que se desvanece, que se acalma a pouco e pouco, progressivamente. Obviamente que isso diz apenas respeito à forma. Quanto ao conteúdo, têm razão: o momento em que Warner se volta, é realmente o final da história. Mas isso correspondia à reportagem, severa, brutal. Eu queria um final de bailado, imaginário, lendário.

Cahiers Já que citou um termo musical, pensou na construção do seu filme em referência a uma ou a várias formas musicais?

Penn As duas pessoas que escreveram o guião são jornalistas: eles conheceram um músico que tocava banjo de cinco cordas e que é maravilhoso, e, quando escreveram o argumento, pensaram em utilizá-lo, e isso deu-nos a ideia do género de música que iríamos usar. Aí está a banda-sonora do filme. No que diz respeito à sua construção, de partida não o imaginei conscientemente sobre um modelo musical conhecido. Talvez essa referência exista, seja como for não é consciente da minha parte.

Cahiers Há outra diferença em relação a The Left Handed Gun, o facto de o tom ser ao início o do burlesco, que depois se torna patético. Essa diferença existia desde a fase do argumento?

Penn Apenas em certa medida. A minha intenção era começar por contar uma pequena crónica de uns jovens engraçados, divertidos, que não fazem coisas muito sérias. Então, quando Clyde não consegue sair do carro, porque o tinha estacionado de lado, e o homem salta para cima do carro e leva um tiro na cara, de repente, deixamos de nos rir: «Meu Deus, matei alguém, não o queria fazer, estava só a assaltar um banco». Tudo muda nesse momento.

Cahiers Todas as mortes são muito penosas e muito sangrentas...

Penn O meu próprio sentimento é que a morte violenta é verdadeiramente muito sangrenta. A quantidade de sangue surpreende-me sempre, há imenso. Penso sempre no verso de Shakespeare: «Quem poderia imaginar que o homem tinha tanto sangue nele». Parece-me que quando a mostramos no cinema, deve-se produzir esse efeito de choque. No final, no entanto, e como vos disse, dei à morte um carácter mais «abstracto», menos físico.

Cahiers Pratica essas mudanças constantes de tom para provocar sentimentos contraditórios nos espectadores?

Penn Para surpreender constantemente. Neste filme, nós não tínhamos personagens extremamente fortes. Elas são relativamente superficiais, bastante vazias, não necessariamente más, mas sem dilemas morais. Portanto, era preciso insistir mais no lado exterior, como nos desenhos animados em que cada quadro tem de mudar: aqui, devemo-nos rir, aqui devemos ficar surpreendidos, ali chorar e acolá rir novamente. Portanto montámos o filme desta forma, e as imagens foram concebidas com vista a permitir essa montagem, em vez de serem mais fluídas.

Cahiers O que concede a Bonnie e Clyde uma dimensão lúdica evidente...

Penn Absolutamente, mas isso não aconteceu nos meus outros filmes, The Left Handed Gun ou Mickey One por exemplo. Aí, interessava-me nos pensamentos das personagens, nas suas motivações, mesmo e sobretudo quando eram ilógicas. Mas aqui as personagens são assassinos, gangsters, pareciam ter apenas uma consciência obscura. Eu não lhes podia dar artificialmente uma vida interior profunda. Portanto decidi manter-me fora deles. O que não quer dizer que tenha querido privá-las de toda a consistência, criar seres teóricos, incorpóreos e sem profundidade. Espero ainda assim que se manifeste uma certa vida autêntica através delas, mesmo se o tom um tanto frio da crónica prevaleça sobre o da análise dos sentimentos.

Cahiers Mas não lhe parece perigoso poder dispor assim ao seu critério das reacções do público que, interessando-se menos nas personagens, se torne apenas sensível ao seu mecanismo?

Penn Sim, isso pode ser perigoso se não tivermos cuidado e se não desconfiarmos dos poderes do cinema. Mas aqui não penso que tenha «abusado» do espectador, mesmo que o manipule um bocado. Seja como for, penso que neste filme era a única forma de agir. Tinha de me servir do riso, para dar ao público a sensação de pertencer a este gangue e de viver as suas aventuras. Mais tarde, quando o tom muda, quando Bonnie diz: «Quero ver a minha mãe», o humor pára, e sobretudo quando a mãe lhe diz: «Tu não podes viver a três milhas de minha casa, porque morrias se vivesses perto de minha casa»: é o início da morte dos dois.

Cahiers Tem outros projectos de filmes?

Penn Estou a trabalhar numa nova história, a de um pele-vermelha americano. Vai ser um filme bastante engraçado, mas com cenas horríveis, sobre o que era verdadeiramente o destino do pele-vermelha na época do general Custer. Evidentemente, é grande a analogia com os negros. Mas neste momento, não saberia como fazer um filme sobre os negros, seria limitado, parcial ou romanceado. Ao passo que, por um processo análogo, me pudesse expressar melhor. De qualquer das formas, ainda estou em fase de projecto.

Cahiers Pode-nos explicar de forma mais pormenorizada o género de dificuldades que haveria, para si, ao fazer um filme sobre os negros?

Penn É um problema que eu próprio não percebo muito bem. Não tenho perspectiva suficiente, conheço certamente muitos factos e incidentes, mas não tenho um ponto de vista suficientemente vasto e completo. Se, por exemplo, relatasse factos, se mostrasse exemplos evidentes de injustiça, isso seria aterrador, duro de ver, mas não diria nada da essência do problema, que eu não compreendo. E pode ser que fazer um filme sobre os peles-vermelhas me ajude - colocando-me problemas de analogia e diferença - a dar alguns passos em frente, pelo menos assim o espero. Vou-vos relatar um episódio muito interessante: uma noite, mostrámos Bonnie e Clyde a cinco negros, e eles identificaram-se completamente com eles. Estavam encantados: «É assim que se faz, Baby, é assim que se chega lá! Bravo!» Num certo sentido o negro americano tem essa atitude, a de gente que não tem nada a perder. «Não quero saber se me matam, não tenho nada a perder». Os negros estão lá: «Sem distúrbios, sem rebelião. A Revolução!».

Cahiers Continua com a sua actividade teatral?

Penn Sabem, a situação nos Estados Unidos mudou muito. Noutros tempos, quando se trabalhava no teatro como artista «sério» e se partia para Hollywood, prostituíamo-nos mais ou menos, mas agora é o contrário. No cinema, pode-se fazer coisas mais sérias, mais verdadeiras, na Broadway, não se realizada mais nada sério, é tudo puramente distractivo.

Cahiers E na off Broadway?

Penn É a mesma coisa que «in» Broadway, também é caro, têm o mesmo público limitado, burguês, branco, de si próprio, e que não quereria ver mudar os seus hábitos de pensamento por nada deste mundo. Nos teatros da «off-off» Broadway, aí, pode-se fazer bom trabalho. Por exemplo no teatro do Massachusetts que eu dirijo, onde praticamente vivo, onde começámos a organizar peças, novas, mais próximas do cinema tanto pelos temas como pelas técnicas que empregamos... Eu trabalho na Broadway para viver, mas na verdade vivo neste pequeno teatro de Stockbridge que satisfaz mais a minha ideia e o meu gosto pelo teatro. 

in «Cahiers du Cinéma», nº 196, Dezembro de 1967.

Duas observações sobre Bonnie and Clyde


por André S. Labarthe

A crítica outra coisa não procura do que trazer à luz as analogias que o espírito espontaneamente cria. É de regra que ela cale a sua origem para apenas nos entregar o claro desenho de um espírito ocupado em captar o seu objecto. Assim, a luz que se faz deixa na sombra os motivos profundos que suscitam a crítica. Se, por exemplo, eu resolvesse, como estou tentado a fazê-lo, analisar aqui a forma e a função da montagem (ou da planificação) em Bonnie e Clyde, o que é verdade é que essa análise teria tido origem em duas imagens. Uma, a do nascimento e crescimento dos cristais (Bonnie e Clyde é para mim o filme desse crescimento, rodado em acelerado); a outra, a de um certo fogo de artifício de grande poder de que quase todo o cinema só sabe dar o declínio e que Arthur Penn nos mostra no seu esplendor.

Além disto, outra coisa: Bonnie e Clyde contesta a ideia feita que opõe cinema de montagem a cinema de actores, cinema de planos a exibição de artistas (e que diz que os bons directores de actores usam sempre planos longos). Já Welles e Becker tinham posto esta ideia em questão nalguns momentos. Penn acaba com ela de vez, quando pulveriza as suas cenas sem lhes cortar a continuidade e nos dá, num só plano rápido, de repente, todo o sentido do filme: aquele em que Bonnie revela o seu amor por Clyde quando tudo se move no silêncio ensurdecedor da morte mais violenta do cinema americano.

in «Cahiers du Cinéma», nº 196, Dezembro de 1967.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Arthur Penn e a Nouvelle Vague


por Luc Lagier (com a colaboração de Nicholas Franklin)

Nascido no início dos anos 20, Arthur Penn realizou o seu primeiro filme, The Left Handed Gun com Paul Newman, no final dos anos 50 pouco antes do surgimento da Nouvelle Vague. Penn foi então próximo de Truffaut e Godard. O seu interesse pelo cinema europeu sente-se em filmes como Mickey One com Warren Beatty, Um Lance no Escuro com Gene Hackman (com essa magnífica citação de A Minha Noite em Casa de Maud de Éric Rohmer, aqui) e sobretudo Bonnie e Clyde que Truffaut e Godard quase realizaram antes dele. 
 
Na altura de comemorar os 50 anos da Nouvelle Vague, Arthur Penn aceitou portanto imediatamente a nossa proposta de entrevista («Como é que poderia recusar?» disse-nos ele). Concedeu-nos então um encontro no seu apartamento nova-iorquino junto ao Central Park para evocar lembranças antigas, alguns meses antes do seu desaparecimento que aconteceu no mês de Setembro de 2010. 
 
Qual foi o primeiro filme da Nouvelle Vague que descobriu? 
Arthur Penn: Penso que foi Os Quatrocentos Golpes. Lembro-me de ter ficado muito emocionado com o filme e com o seu aspecto autobiográfico, a forma como Truffaut tinha concebido o filme como uma necessidade vital, uma forma de se salvar a si próprio de uma infância dolorosa. E depois, claro, o último plano com a imagem parada de Jean-Pierre Léaud na praia marcou-me muito. Foi o início de uma libertação em relação ao meio cinematográfico à qual não estávamos de todo habituados. Pouco tempo depois saiu O Acossado que também teve o efeito de uma revolução. A montagem, a forma de contar uma história, era completamente nova na altura… 
 
Nessa altura já tinha realizado The Left Handed Gun
Sim, eu tinha feito The Left Handed Gun em Hollywood no final dos anos 50 e aquilo tinha sido uma experiência terrível porque assim que a rodagem terminara, outra pessoa qualquer tinha-o montado e para mim isso era inaceitável. Portanto deixei Hollywood e regressei a Nova Iorque para trabalhar em teatro na Broadway. Pensei em parar de fazer filmes. E depois The Left Handed Gun teve muito boas críticas na Europa e especialmente em França. André Bazin defendeu muito o filme nos Cahiers du cinéma e creio que Godard e Truffaut também o tinham adorado. Eles tinham gostado que o filme não respeitasse totalmente os esquemas hollywoodianos tradicionais. Havia lá um aspecto um pouco bruto, um pouco ingénuo em The Left Handed Gun que talvez tenha influenciado os futuros cineastas da Nouvelle Vague. Essa recepção tocou-me imenso e o filme tinha encontrado finalmente o seu público em França e na Europa. 
Algum tempo depois, realizei O Milagre de Anne Sullivan e o filme teve algum sucesso. Como resultado, para o meu filme seguinte, coloquei-me a questão: «quero fazer filmes originais ou apenas ganhar dinheiro?». Cometi o erro de querer antes ganhar dinheiro, aceitei o guião de O Comboio com Burt Lancaster, comecei as audições, escolhi inclusivamente Jeanne Moreau de quem tinha gostado em Jules e Jim e nos filmes de Louis Malle, mas alguns dias antes do início das rodagens abandonei a produção. Em suma, nessa altura, travei muitas batalhas contra o sistema hollywoodiano e perdi-as a todas. Por isso, é inútil dizer-vos que depois destas experiências dolorosas, os filmes de Truffaut ou de Godard eram para mim o exemplo a seguir. 
 
Nessa altura, sentiu que o próprio cinema americano estava num momento de viragem, que tinha chegado a altura para tentativas cinematográficas mais originais ? 
Sim, sem dúvida. O cinema americano estava a atravessar uma crise de identidade. Os estúdios continuavam a produzir filmes ultrapassados que já não queríamos ver. Havia um apetite por filmes mais originais, mais aventurosos, em todo o caso diferentes mesmo se ainda não se soubesse exactamente o quê. De qualquer das formas, os filmes da Nouvelle Vague, por serem mais pessoais, pareciam-nos ser os modelos a seguir. 
 
Há uma cena célebre em O Acossado, Belmondo diante de uma fotografia de Bogart ou ainda em Os Quatrocentos Golpes, Jean-Pierre Léaud a roubar uma fotografia de Mónica e o Desejo de Bergman. Os filmes da Nouvelle Vague não foram os primeiros filmes cinéfilos da História do cinema, a citar abertamente os filmes do passado? 
Com certeza. Mas isso, era apenas a superfície. Porque a originalidade desses filmes ia muito mais longe do que essas simples citações. Havia uma dimensão quase anárquica no cinema deles, como se nos estivessem a dizer: «estou-me bem a marimbar para saber se isso foi feito antes, é assim que eu quero contar a minha história e não de outra forma». Então é claro que havia inúmeras referências explícitas ao passado, mais subjacente a isso, também havia essa dimensão iconoclasta que parecia justamente varrer com o cinema do passado. 
 
Nunca foi tão próximo de Truffaut e de Godard como na altura de Bonnie e Clyde no final dos anos 60. Pode-nos contar a génese desse filme que Truffaut e depois Godard quase realizaram ? 
O argumento tinha sido escrito por David Newman e Robert Benton e eles na altura foram muito influenciados por Jules e Jim e Disparem Sobre o Pianista de Truffaut. No início dos 60, eles mandaram-me o argumento para saber se eu estava interessado mas já me tinha comprometido com The Chase, uma produção bastante pesada com Marlon Brando. Para mais, o argumento não estava totalmente concluído. Então, eles enviaram-no a François Truffaut que estava interessado. Ele encontrou Newman e Benton, fez-lhes inúmeras sugestões, acho que a cena do poema, quando Bonnie recita a sua prosa a Clyde e o poema vai parar aos jornais e depois à esquadra foi ateada por Truffaut. Truffaut hesitou muito, não se conseguia decidir. Finalmente disse que não, mas disse a Benton e Newman: «Porque é que não se propõe o filme a Godard?». Os dois argumentistas ficaram bastante entusiasmados, os produtores um pouco menos. Godard teve uma reunião com a produção e disse-lhes: «OK, rodamos o filme imediatamente em pleno Inverno, em duas semanas, no Texas». Os produtores ficaram assustados, responderam-lhe que não era possível, que o argumento era suposto desenrolar-se no Verão. Godard respondeu então: «Eu falo-vos de cinema, vocês falam-me de meteorologia. Adeus». Basicamente eram dois mundos radicalmente diferentes. E depois um dia Warren Beatty veio a Paris, nessa altura ele estava com Leslie Caron. Eles jantaram com Truffaut que lhes falou do argumento de Benton e Newman. De volta a Hollywood, Warren Beatty pediu uma cópia e comprou os direitos. Benton e Newman insistiram de novo para que Truffaut ou Godard realizassem o film. Também creio que houve um encontro entre Warren Beatty e Godard. Mas Beatty depois disse a Benton e a Newman que a partir do momento em que tinham um guião muito Nouvelle Vague, definitivamente que não precisavam de um cineasta francês mas antes americano. E o Warren, com quem tinha rodado Mickey one, propôs que eu o realizasse e desta vez aceitei. Eis toda a história. 
 
Na sua opinião, porque é que Truffaut acabou por não realizar Bonnie e Clyde
Não há dúvida nenhuma que ele desconfiava imenso dos produtores. Suspeitava certamente que o sistema americano não combinaria com ele, que nunca iria encontrar a liberdade que tinha em França. 
 
Falou com ele sobre Bonnie e Clyde, na altura ? 
Não. Uma vez que aceitei realizá-lo, decidi fazê-lo à minha maneira sem me preocupar com aquilo que se tinha passado. E no final não sei o que é que Truffaut achou do filme terminado. Sei que Godard não gostou nada… 
 
Isso dito nessa altura, poucos filmes encontravam favor aos seus olhos… 
Sim, foi o que me foi dado a entender… 
 
Assim que aceitou realizar Bonnie e Clyde, alterou muito o argumento ? 
Sim, porque o argumento era um bocado complexo demais, sofisticado demais, elaborado demais. Faltava-lhe algo de rústico, de natural. Apesar de tudo, aquilo falava de gente simples, Bonnie e Clyde não eram intelectuais. Então, introduzi um estilo mais directo ao filme e simplifiquei as personagens. No argumento havia uma espécie de relação a três inspirada por Jules e Jim. Warren Beatty e Michael Pollard estavam os dois apaixonados por Faye Dunaway, o que na verdade já não está no filme terminado. O fim também era diferente. Bonnie e Clyde eram simplesmente abatidos como num filme de gangsters clássico e eu não queria fazer exactamente um filme de gangsters clássico. Queria algo mais emblemático da nossa época, mais alinhado com a violência que vivíamos na América no final dos anos 60. Portanto deitei fora o final previsto e impus outro enquanto poucas pessoas me apoiavam e compreendiam aquilo que queria fazer. E isso resultou no final sangrento que vocês conhecem. 

Em que é que Bonnie e Clyde é um filme inspirado pela Nouvelle Vague ? 
Sabem que no final dos anos 60, a Nouvelle Vague quase tinha entrado na linguagem comum. A Nouvelle Vague já não era assim tão nova quanto isso. Toda a gente a começava a absorver nos Estados Unidos e noutros lugares. E não só a Nouvelle Vague, aliás, mas também o cinema de Bergman ou o do neo-realismo italiano no mesmo período. Portanto, é difícil dizer hoje em dia quais são especificamente os aspectos de Bonnie e Clyde inspirados pela Nouvelle Vague. Praticamente tudo, sem dúvida. Mais uma vez, estávamos em 1967, havia um sentimento de revolta que iria explodir na América e na França por volta do ano de 68. Era o advento de uma nova juventude, de movimentos contestatários contre a guerra do Vietname. Nessa altura já não se podia dizer que tal elemento vinha de um filme de Truffaut ou de Godard, esse cinema já tinha sido admitido e integrado por toda a gente. 
 
Pode falar-nos da sequência de abertura de Bonnie e Clyde com aquela série de grandes planos sobre o rosto de Faye Dunaway sem nenhum diálogo. É uma abertura quase experimental… 
Sim, lembro-me disso, claro. Vi-me naquele quarto pequeno com pouco espaço à minha disposição para rodar. Então perguntei-me «como é que se apresenta esta rapariga?». Disse a mim mesmo que era preciso mostrar o apetite dela, a sua sede de liberdade. Foi por isso que optei por uma série de grandes planos da boca dela, dos olhos, etc. e depois não parei de fazer a minha câmara mexer. Sem dúvida, era uma forma pouco habitual de começar um filme em Hollywood. E é curioso porque essa sequência de abertura foi muito bem aceite. Foi antes o final sangrento que provocou debate e suscitou fortes críticas, o que era evidentemente ridículo. Estávamos em plena guerra do Vietname e a violência invadia todos os ecrãs de televisão. Que hipocrisia, querer escondê-la nos filmes! 
 
Há um detalhe engraçado. Em Bonnie e Clyde, a personagem de Michael Pollard passa o polegar por cima dos lábios, imitando Belmondo que já imitava Humphrey Bogart como se, para a vossa geração, fosse preciso fazer um desvio pela Europa para encontrar algo de tipicamente americano… 
Sim, eu lembro-me bem desse detalhe e foi muito intencional da parte do Michael. Mas é normal, nessa altura todos os actores roubavam maneiras, atitudes e tiques aos outros. E claro que os actores viam os filmes da Nouvelle Vague. Faye Dunaway gostava imenso de Jeanne Moreau e tomou-lhe a sua forma de fumar, etc. Toda a gente tomava emprestadas pequenas coisas dos filmes dos outros. 
 
Para si, o final dos anos 60 nos Estados Unidos corresponde a uma idade de ouro comparável ao que se passou em França dez anos antes? 
Sim, mudou tudo no final de 60. Os estúdios perderam o poder em favor das televisões. Começaram tornar-se cautelosos e já não sabiam que género de filmes era preciso fazer. O velho sistema dos anos 50 já não funcionava. Apesar de os estúdios produzirem, os filmes eram fracassos, o público preferia ficar em casa a ver televisão. Na altura em que realizava Bonnie e Clyde, Jack Warner estava em Nova Iorque para vender o estúdio. Então não havia mais ninguém no comando para controlar Bonnie e Clyde e Warren Beatty, que era um tipo muito esperto, fez a ligação entre nós e o estúdio. Pudemos partir para rodar no Texas e fazer o filme que queríamos fazer. Foi por isso que Bonnie e Clyde se tornou um filme de autor, não tinha o estúdio às costas. 
 
Porque é que, durante essa idade de ouro, os cineastas americanos como o senhor, Coppola, Altman e os outros não formaram por vossa vez um colectivo comparável à Nouvelle Vague? 
Porque isso simplesmente não era possível na América. Alguns cineastas vivem em Los Angeles, outros em Nova Iorque ou noutros sítios. Não há proximidade nenhuma, nenhuma oportunidade de se encontrarem, de se reunirem, de partilharem. A América é um país grande demais para esse género de movimento. Temos apenas o Francis Coppola que tentou formar um colectivo com George Lucas e outros estudantes da USC na Califórnia ou o grupo que se formou com Michael Wadleigh, Scorsese, De Palma em torno da New York University. Mas isso nunca durou muito tempo e eles dispersaram-se rápido pelos quatro cantos da América. Em Paris, era diferente. Toda a gente se podia encontrar, discutir, debater, ir ao cinema em conjunto, etc. Mas aqui é impossível. Eu gostava de Monte Hellman mas nunca o via. O mesmo com William Friedkin que não vejo há trinta anos. Portanto aqui não temos a possibilidade de formar um grupo. Jonas Mekas tentou com o New American Cinema em Nova Iorque mas manteve-se um colectivo bastante marginal sem grande influência sobre o público. 
 
Finalmente, 50 anos depois, que imagem é que guarda da Nouvelle Vague? 
A imagem de filmes em acordo com a juventude do seu tempo. Filmes novos, refrescantes. Uma certa insolência também, o que deu filmes que inventaram novas regras. Era uma forma de afirmar: «eu sei como é que os filmes se faziam até aqui, então agora vamos fazê-los como queremos e não temos regra alguma para respeitar».

in «Arthur Penn et la Nouvelle Vague», entrevista com Arthur Penn, Blow Up, 2010.