sábado, 29 de novembro de 2025
O GOSTO PELO CINEMA
Éramos para ir ao cinema.
Mas como nem ela nem eu, que nos conhecemos num cineclube, andamos agora muito informados e já ambos vimos os grandes êxitos que são capa das revistas, em vez de correr para as Amoreiras e escolher conforme os horários, desta vez decidimos ler os jornais.
Era sábado e havia muitos.
E em todos os jornais se falava de muitos filmes.
Ela deu um grito:
- Olha, um filme do Blake Edwards.
- Quem é?
- Não te lembras?
- Não.
- A mim o nome diz-me qualquer coisa, mas não sei bem.
- Vê lá o que é que diz aí no jornal.
Ela começou a ler. Em voz baixa. Depois, corou, olhou para mim, passou-me o jornal.
- Tenho que tomar outro café - disse ela - ainda não estou acordada.
Eu li:
Não apenas o retrato de um corpo na sua inadequação às normas do equilíbrio social mas sobretudo uma arqueologia desse mesmo corpo em desequilíbrio nunca resolvido face ao desejo que o habita.
- Se calhar é giro - disse eu, sempre cobarde.
- Apetece-te?
- Não há outra coisa?
E na minha cabeça: sobretudo uma arqueologia desse mesmo corpo em desequilíbrio nunca resolvido face ao desejo que o habita.
Olhei em redor. Estava todo o café a ler a mesma página do jornal. A senhora perfumada Heno de Pravia que pousara o saco das compras, o par de namorados high-tech, o rapaz simpático que já cruzei em duas manifestações da extrema-esquerda, a rapariga que ainda usa na lapela o dístico Marcelo Ponto. Eles deviam estar a perceber esta frase. Tenho que voltar a estudar, a reciclar-me. Tive muito boas notas na Universidade mas foi nos anos sessenta, aquilo era tudo políticas.
Sobretudo uma arqueologia desse mesmo corpo em desequilíbrio nunca resolvido face ao desejo que o habita.
(Meu caro João Lopes: esta frase é tua!
Foste tu que a assinaste no Expresso de sexta-feira, 15 de Dezembro de 1989. Sabes que sempre estimei a tua frontalidade, a tua rara delicadeza, a tua pertinácia. O teu amor ao cinema. Sabes que és o único crítico de cinema regular cuja opinião me interesse e me toca.
Espero que saibas que copiar-te esta frase não é mesquinha malevolência.
Mas para que é que escreves coisas destas que, porque mal escritas, não querem dizer absolutamente nada?)
A minha amiga acabou o segundo café.
- Ah, aquele filme inglês!
- Mas é no Quarteto, não é? - perguntei eu.
- Que é que tu tens contra o Quarteto?
- Eles é que devem ter qualquer coisa contra mim. Quando lá vou, o filme está sempre dessíncrono, muitas vezes desfocado, o projeccionista diz que é da máquina, eu passo o meu tempo a levantar-me para ir protestar contra as condições de projecção... e nunca me devolvem o preço do bilhete...
Estava eu nesta azeda tirada quando a minha amiga corou de novo. Peguei no jornal.
- É de outro crítico - disse ela.
A fractura do espaço que aqui se encena magistralmente tem o seu complemento de profundidade nas vozes que, cantando, reactualizam a memória e lhe dão locomoção física; enquanto em Tempos Difíceis...
- O que é a locomoção física?
- Eu sou de Letras.
- E que é isso dos Tempos Difíceis?
- Não percebo.
- Não é o filme do João Botelho?
- É.
- E a que propósito? O filme do João Botelho foi reposto?
- Bom era.
- Então?
- Há-de ser lá coisa que o rapaz tem contra o Botelho. Como toda a gente disse bem ele só agora é que sai da casca.
- Mas lê isto sobre o filme inglês: não há em Terence Davies uma realidade anterior à reprodução, ela nasce de um contrato difícil entre o que se constrói a cada momento e o que é destruído na reelaboração do instante.
- Terence Davies, quem é?
- Deve ser um chato. Faz contratos difíceis, pelos vistos.
E na mesma respiração:
- Podíamos era ir ver o filme do César.
- Cinema português???
- Parece que é diferente. E não te lembras do César?
Estava sempre no Monte Branco com aquela rapariga...
- Vê lá o que é que dizem aí.
Ela começou a ler, encomendou imediatamente outro café.
- Acho que não. Deve haver aí politiquice.
Eu li. Era uma nota de um outro crítico ainda sobre o filme do João César Monteiro e falava era de um inquérito feito no «JL».
Como não compro o «JL»... e o jornal que lia não o imprimia em anexo...
E dizia coisas como: O debate das ideias e a saúde da reflexão sobre o cinema português devem vir para a praça pública sem o recurso a este tipo de processos que, no fundo, não servem o que mais importa.
- Percebes isto? Que tipo de processos?
- Mas do filme? O que é que diz?
- Não fala.
Não fomos ao cinema.
Acabámos por comprar um édredon nas barraquinhas da Praça de Espanha e por ir dar uma volta à chuva.
E chovia quando ela me disse:
- Vou escrever uma circular aos críticos.
- Tás maluca? Ainda te batem...
- Não. Eu acho é que eles devem andar muito sozinhos. Todo o tempo a escrever. Já devem ter deixado de perceber para que é que serve a crítica e por que é que são necessários. Não devem já saber que eu - eu, eu, eu - preciso deles! Vou-lhes dizer assim: eu preciso deles porque não posso ver tudo e não posso fiar-me só na publicidade. Os críticos são necessários porque não são attachés de Imprensa e se um filme, mesmo muito publicitado, é mau, eles podem dizê-lo.
- Mas isso foi há muito tempo, quando os críticos eram contra a sociedade de consumo.
- Lá estás tu com esquerdismos.
- Não é esquerdismos. É História.
- O que eu que é dizer-lhes que gosto deles e que preciso deles. Para me orientar. Para não enfiar barretes, para estar mais ou menos informada.
E em cada nota, eu não preciso que eles digam muitas coisas - não precisam de puxar assim muito pela cabeça. Só preciso que me digaam:
a) é um filme que trata de quê?
b) e de que modo?
c) se é um filme que vale sobretudo pela realização - e quem é o realizador e o que é que ele fez e se é dentro do género de coisas que fez ou antes pelo contrário. E a realização é original? Ou académica? Ou...?
d) se é o argumento que vale a pena, e porquê.
e) ou se é um dos actores ou o trabalho da música ou...
f) ou se é um entretém e nesse caso se o é de facto;
g) ou se é um projecto de importância industrial...
h) ou se é um filme diferente dos outros e porquê...
i) ou se é igual aos outros mas mesmo assim...
É tão simples.
E para eles, eu acho que lhes simplificava a vida! Mas devem andar tão sozinhos...
E depois de dizer isto, deu uma valente palmada na testa (a energia dos três cafés...)
- O que eu devia fazer era um inquérito. E pedir-lhes que eles só pusessem cruzinhas. Duzentas perguntas-chave e pronto. Não queres ajudar-me? Vá lá!
Disse ela.
E eu sorri.
Gosto dela. É uma pessoa com boa vontade.
*
E eu faço hoje minhas as experiências e as palavras destas minhas duas ingénuas personagens. Que muito devem ter ouvido, como eu, O Gosto Pela Música de João de Freitas Branco.
NB: Todas as citações são tiradas do jornal EXPRESSO de 15/12/89.
in «Diário de Lisboa», 29 de Dezembro de 1989.
segunda-feira, 27 de outubro de 2025
sábado, 30 de agosto de 2025
A RAIZ DO CORAÇÃO (2000)
A televisão portuguesa de todos os dias às vezes consegue sintetizar muito bem uma ideia complexa ou o chamado ar dos tempos. É quase sempre por acidente, quase nunca ao perseguir os furos jornalísticos da berra, levados a cabo de forma escabrosa e repetitiva, metralhados parece que incessantemente aos nossos olhos e ouvidos. Para desligar a televisão, acto prazeroso em que se aponta para ela com o comando como se fosse uma arma e com um falso sentido de justiça, porque não é isso que vai mudar o que quer que seja, é preciso que ela esteja ligada. E por uns segundos pode-se apanhar um momento insólito e revelador. Neste caso foi no Domingão de dia 3 de Agosto, na SIC, uma imagem entre tantas que se produzem sem pensar muito neste país e cujo interesse vem muito mais da disrupção de certos intérpretes, da conglomeração de pessoas e dos reflexos momentâneos de alguns profissionais no cruzamento de todo esse movimento.
Débora Monteiro está na borda de um chafariz a meio daqueles monólogos intermináveis em que pede aos telespectadores que liguem para o número que os vai tornar ricos se se comprometerem a pagar o valor acrescentado. Chega um grupo de raparigas vestidas de igual que começam a olhar para a câmara a fazer o gesto do telefone com as mãos. A apresentadora fica contentíssima por a virem ajudar, até porque se presume que não seja um trabalho que os profissionais de televisão gostem particularmente de fazer. A dada altura, as raparigas começam-se a alinhar ao lado dela e o operador de câmara começa a brincar com as diagonais que isso cria na imagem. Até começarem a andar paralelamente aos movimentos da câmara e se começarem a atropelar umas às outras para ficarem em primeiro plano, o que chateia a apresentadora que diz que quer fazer o seu trabalho. Em pano de fundo, esse tempo todo, está um homem vestido de mulher, que podia ser o João Baião mas por acaso não era, a brincar com crianças no meio do chafariz.
O cinema português, apesar de muito menos visto pelos portugueses, sempre foi conseguindo lidar com o passado e com o presente do seu país. Para o futuro, talvez precisasse de um ou dois visionários. E encontrou um em Paulo Rocha, que ao longo dos anos se mostrou sempre à frente (e atrás e acima e abaixo e de todos os lados) das expectativas. Quem tivesse visto o Verdes Anos ou o Mudar de Vida, nos anos sessenta, não esperaria com certeza A Pousada das Chagas e A Ilha dos Amores nas décadas seguintes, e no seguimento desse período das grandes peregrinações e empreitadas japonesas como prever os completos desvarios de O Rio do Ouro ou A Raiz do Coração na viragem do milénio? “O Paulo vivia muito exaltado,” disse Pedro Costa em entrevista a Ricardo Vieira Lisboa em 2017, “com uma energia muito juvenil, eu vi o entusiasmo dele com o No Quarto da Vanda, com a novidade das pequenas câmaras Mini-DV. Eu dizia-lhe: “Faça você o seu próximo filme sozinho, ou só com um assistente”, e ele era muito desse género: os projetos e as rodagens d’A Pousada das Chagas ou d’A Ilha de Moraes ou do Máscara d’Aço ou dos vídeos mais confidenciais que ele fez nos últimos anos, provam-no. Apenas com um punhado de jovens ao lado, que lhe pintassem umas manchas de cor nas paredes ou lhe lançassem um foguete à frente da lente. Ou isso, ou uma armada mizoguchiana de figurantes e gruas.”[1]
Pode-se tentar de várias formas, talvez até seja produtivo, mas não é nada fácil descrever A Raiz do Coração. É um musical, com banda-sonora de José Mário Branco, mas a maior parte dos números musicais surgem nos primeiros vinte e cinco minutos (o percurso contrário de alguns dos musicais de Busby Berkeley nos anos 1930, por exemplo). É um filme de ficção científica, também, que no ano da estreia de 2000 seria uma projecção do ano de 2010, embora na montagem final não restem pistas sobre isso e o nosso ano de 2025 pareça uma projecção ainda mais acertada. E como escreveu Miguel Blanco Hortas, também “estamos no Portugal do ano 2000, a meio caminho entre a Expo 98, a chegada do Euro e a futura celebração do Europeu de futebol, tudo acontecimentos vendidos como grandes avanços e que trouxeram um desequilíbrio económico brutal, uma inflação disparada e iniciaram o processo de transformação de uma cidade de orientação popular bem vincada no parque de atracções turístico que hoje em dia se vive.”[2]
Os opostos atraem-se. Ou talvez gostássemos que atraíssem, se não achássemos mais confortável a apatia da boa educação. E tudo em A Raiz do Coração se parece construir de opostos que se conciliam pela coerência de uma visão e pela harmonia ou pela resolução temerária de um travelling. A noite e o dia, os corvos e as pombas, os fascistas e os santos, os polícias e os travestis, o ódio e o amor, a morte e o sexo, a película e o digital. Catão, o líder de um partido de extrema-direita, está obcecado por Sílvia, uma transexual que a dada altura pergunta à sua protectora se acha “que uma pessoa que faz o mal pode ser boa.” E também os polícias se adornam de malhas de bondage, também os travestis se apaixonam por agentes da autoridade e os chamam do outro lado da morte, do único lugar onde o amor parece ser possível. E também os travestis são obrigados a espancar e a matar, o Santo António abençoa a Sílvia chamando-lhe menino em pleno voo pela cidade de Lisboa, e a câmara de Paulo Rocha, impaciente, vingativa, exultada, destemida, move-se constantemente, com os corpos dos actores e com os seus movimentos, ou para os foder ou para os matar. Do oito ao oitenta. E tudo o que está no meio também. Volta-se por associações a Michael Cimino e ao grande não-dito que assombrava o também fabuloso O Ano do Dragão, “se se combate uma guerra tempo o suficiente, acaba-se a casar com o inimigo.”
Na primeira parte do documentário em quatro partes sobre a rodagem de O Rio do Ouro, Marginália[3], Paulo Rocha diz que “(...) eu sempre achei detestáveis as filmagens muito amigáveis, muito harmonizadas, em que as pessoas são todas aparentemente muito amigas e têm uma voz monocórdica. Isso aborrece-me e acho que a maior parte dos filmes não têm tensão, nem luta, por causa disso. Em parte, como já estou a ficar mais velhote e preguiçoso, algumas pessoas quis ter presentes só pelo prazer de as ter presentes. Ver o que é que daria ter por ali, sentado a filmar, algumas pessoas, que eram em parte espelhos ou fontes de inspiração. (...) E por outro lado tentei integrar gente nova, muito nova, com vinte e poucos anos, do que eu achava que era gente de Lisboa, que representa novas sensibilidades, em muitos casos completamente contrárias às minhas, mas que eu gostava de, como um vampiro, poder integrar um bocadinho. (...) Portanto há realmente muitas famílias e eu sei que isso provoca conflitos.”
Se isto vale para O Rio do Ouro, também há-de valer para A Raiz do Coração, outro filme de “armadas mizoguchianas” que se inaugura com um espectáculo de variedades em que Luís Miguel Cintra, irreconhecível, vestido de noiva de Santo António com a cara pintada de preto e acompanhado por dois corvos gigantes, Luís Miguel Cintra, que neste filme tem três papéis, quatro se acrescentarmos o falso Santo António encarnado por Catão, debita já todos os temas, todos os motes e todos os desafios para esta obra coral e assumidamente desalinhada, no sentido camiliano do termo. A câmara filma o espectáculo sem cortes, recua para mostrar a sala e o público e focar uma bandeja com um copo e uma garrafa de champanhe, que são seguidos por um travelling e levados por um empregado para o actor. Ele chora o destino da sua cidade, assolada pelo vício e representada em miniatura a seus pés, enquanto tenta enxotar em vão os corvos que lhe roubam o véu e acabam por destruir a cidade mesmo quando começa o último movimento de câmara acompanhado pelos acordes de fim do mundo de José Mário Branco e cai o pano transparente com o título do filme: “A RAIZ DO CORAÇÃO – um filme de PAULO ROCHA”.
Este título virá de um romance tradicional de Trás-os-Montes, como diz o genérico, mas também se encontra numa balada registada e anotada por Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti no primeiro volume inteiramente dedicado a canções transmontanas de uma antologia da música portuguesa, fruto das suas viagens à região entre os anos de 1958 e 1961, continuando o trabalho do pioneiro alemão Kurt Schindler, que nos anos 1920 tinha percorrido 12.000 quilómetros entre Espanha e Portugal e gravado cerca de quinhentas canções. A balada chama-se Dona Filomena e foi gravada em Tuizelo, no concelho de Vinhais, pela voz de Ana do Rio, e também é conhecida por títulos como Dona Francisquinha, Grancalinda, Care-Linda ou Dona Felismina. Descreve o encontro de uma mulher com um soldado desconhecido, que a acha bonita e lhe dá a mão. Ela diz-lhe, “Meu marido foi à caça / lá prós campos d´aragão. / Se quiseres qu´ele cá não volte / roga-lhe uma maldição: / Os corvos lhe comam os olhos / e a raíz do coração.”
A aldeia e a cidade, mais dois pólos opostos e aparentemente irreconciliáveis. Para Paulo Rocha, na aldeia, a ordem reina, mas só a custo de justiças tribais e vinganças violentas. A cidade parece ser o refúgio perfeito para a diferença, o campo de batalha de todas as aberrações. E o caos talvez seja um conjunto de pessoas de várias origens e ambientes que lutam sozinhas e entre si por uma ordem que não existe. No pico dos combates de cantigas da noite de Santo António, depois das investidas cantadas dos grupos de travestis, polícias e fascistas entre os casais que dançam entre uma espécie de coreto e uma fonte de pedra, com a sua própria canção, um miúdo, que tinha dito à mãe, ao apontar para um travesti, “ó mãe, ó mãe, quando eu for grande eu quero ser assim,” consegue escapar-lhe das mãos outra vez e vai para dentro da fonte com uma pequena barca que vai puxando muito devagarinho. E com uma candura semelhante, a câmara aproxima-se da barquinha e acompanha-a até ao fim da fonte, já sem o miúdo, onde encontra o reflexo da Sílvia de Joana Bárcia, que também já foi um menino chamado Sílvio e com a sua canção parece conciliar e resolver todas as diferenças e vencer o embate das melodias, das contradições e das identidades.
“A senhora sabe que eu sou um poço sem fundo,” diz Janeiro quando a personagem de Isabel Ruth, a Ju, o visita no que parecem ser as escadas da Assembleia da República. “Quando olho para dentro de mim, até me perco.” Como seria se em 2001, em vez de nos atirarem poeira para os olhos com as alegrias e as maravilhas do progresso que desembocaram nos tempos em que hoje vivemos, se em vez de nos dizerem sobranceiramente a propósito deste filme para não procurarmos “correspondências directas com o real fora de nós. Não vejam aquele político como imagem de outro político, não olhem aqueles travestis como os que vagueiam à noite pela cidade, não queiram encontrar chaves, a busca será estulta e frustrante, não as há,”[4], A Raiz do Coração provocasse a polémica e tivesse o sucesso que merecia no seu próprio país? Uma panóplia de Diáconos Remédios abastardados, da extrema-direita aos praticantes do politicamente correcto, passando pelos mais clássicos diáconos da Igreja Católica, pregando sempre a virtude, encontravam um bode-expiatório comum, enfrentavam-se, exorcizavam-se, acabavam por se entender entre si e com todos, e o filme era exibido na televisão, era editado em DVD, circulava por todo o país. O José Mário Branco não seria obrigado a dizer, quando confrontado com a pergunta sobre a possível edição de uma banda-sonora, que “teria que se fazer um trabalho com a finalidade específica do disco – embora com as mesmas músicas, temas e palavras e até, se calhar, as mesmas vozes e instrumentos. É sempre uma possibilidade, mas seria preciso que alguém estivesse disposto a investir.”[5] Ouviu-se tantas vezes e disse-se outras tantas que nem sequer se considerou por um momento que pudesse ser errado, mas depois deste filme já não se consegue esquecer: o único vilão desta fantasia dramática é um agente duplo chamado Vicente Corvo, que dita a sua sentença de morte ao dizer a Sílvia, sem pensar duas vezes, “cuidado com os sonhos...”
“Xô, corvo!”
[1] in «”Talvez fosse uma loucura, talvez começasse a escavar outro filme nesse filme…”. Entrevista com Pedro Costa sobre o restauro de Os Verdes Anos e Mudar de Vida, de Paulo Rocha», Aniki, vol. 6 nº 1, 2019. Disponível em: https://aim.org.pt/ojs/index.php/revista/article/view/495 (consultado a 12 de Agosto de 2025).
[2] Publicado em espanhol no letterboxd, a 22 de Fevereiro de 2023: https://letterboxd.com/migblah/film/the-hearts-root/ (consultado a 12 de Agosto de 2025).
[3] Disponível em: https://lugardoreal.com/video/marginalia-i-preambulo (consultado a 12 de Agosto de 2025).
[4] in «A Caldeira do Inferno», Jorge Leitão Ramos, Expresso, 13 de Janeiro de 2001. Disponível em: https://cinemaportuguesmemoriale.pt/Filmes/id/540/t/a-raiz-do-coracao (consultado a 12 de Agosto de 2025).
[5] in «José Mário Branco – Entrevistas para a imprensa 1970-2019», Ricardo Andrade, Hugo Castro e António Branco (org.), Edições tinta-da-china, Lisboa, 2025, pág. 445. Entrevista publicada originalmente no jornal Blitz, a 2 de Janeiro de 2001, com o título de «José Mário Branco – inéditos no grande ecrã».
Folha de sala escrita em Agosto de 2025 para a terceira sessão do ciclo «Paulo Rocha e os paroxismos», pelo Lucky Star - Cineclube de Braga, disponível aqui.
sábado, 23 de agosto de 2025
OS VERDES ANOS (1963)
Durante os anos 60, depois de estudar no Institut d’Hautes Études Cinematographiques (IDHEC) e servir de assistente de realização estagiário de Jean Renoir em Le caporal épinglé e de Manoel de Oliveira em Acto da Primavera e A Caça, Paulo Soares da Rocha conseguiu realizar o seu primeiro filme graças aos profissionais que António da Cunha Telles reuniu e formou no rescaldo da sua primeira produção, Vacances portugaises de Pierre Kast, que trouxe a Portugal actores como Catherine Deneuve, Jean-Pierre Aumont e Barbara Laage, bem como o mítico director de fotografia Raoul Coutard, que por essa altura já tinha trabalhado com Pierre Schoendoerffer, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Demy e Jean Rouch.
Cunha Telles também estudou no IDHEC, onde conheceu Paulo Rocha e Alfredo Tropa, que viria a realizar o programa de televisão “O Povo que Canta”, com Michel Giacometti, e Pedro Só nos anos setenta. Saído dos Açores para Lisboa para estudar Medicina, Telles acaba por candidatar-se a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e vai para Paris estudar cinema. De regresso a Portugal, dirige um jornal de actualidades e assume funções nos Serviços de Cinema da Direcção-Geral do Ensino Primário, orientando cursos de cinema na Mocidade Portuguesa e realizando pequenos trabalhos encomendados. “O triste cinema que ainda existia,” disse ele mais tarde à Antena 2, “sem graça, sem piada, sem ideias, cinzentão, não queria que nós aparecêssemos, fechou-nos completamente as portas. (...) A minha primeira ideia era ter sido segundo assistente de um dos realizadores da época, para ver como funcionava. Isso foi-nos proibido. Aproximámo-nos entre nós e começámos a fazer filmes com equipas que inventámos.”[1]
É assim que surgem Os Verdes Anos, numa atitude construtiva de mudar o panorama das coisas e de dar o melhor de si, e com os outros, para o fazer. Talvez seja isso que explique, também, a relação duma geração inteira com o próprio cinema. Como em Itália, com o neo-realismo, como em França, com a Nouvelle Vague, como em Inglaterra, com o Free Cinema, como no Brasil, com o Cinema Novo, como na Alemanha, com o Neuer Deutscher Film – e o facto dos movimentos terem nomes é apenas uma convenção –, houve um grupo de jovens que tomou o mundo de assalto e reclamou uma parte para si através do cinema, e o cinema passou a representar essa geração através deles. “(…) Descobriram-se novos autores,” disse Paulo Rocha a Roberto Turigliatto[2], “novos caminhos para percorrer. Pode-se dizer que grande parte do que acontece em Portugal de há trinta anos para cá deriva desta fractura, da brecha que então se abriu. De repente tornou-se possível ser culto, vanguardista na arte e politicamente engajado.
“A dada altura os meus estudos universitários em Lisboa não andavam muito bem, e comecei a produzir uma quantidade excessiva de histórias. Escrevia quatro páginas, às vezes mais, lembro-me de ter feito uma lista, tinha cerca de 50 histórias, e cada uma tinha precisado de uma semana para se organizar na minha cabeça. Corpos, personagens, incidentes. Também tive sempre a mania de caminhar a pé, fosse na cidade, ouvindo as pessoas, fosse em lugares um pouco mais mágicos e misteriosos, na montanha, no campo... Por exemplo, Os Verdes Anos nasceu do facto de duas vezes por semana eu passar três horas a andar sem destino pelos arredores de Lisboa, naquelas zonas rurais que foram sendo «apropriadas» a pouco e pouco, onde se estabeleciam aqueles que não conseguiam encontrar um quarto na cidade. Ainda se viam os restos de um mundo secular vagamente idílico e de repente mudava tudo... Era atraído por estes lugares como que por um mistério, era qualquer coisa de obsessivo, acabei a ir lá duas vezes por semana.
“Os Verdes Anos nasceu também de uma notícia num jornal, o crime cometido por um sapateiro. Por acaso aquele crime tinha acontecido a uns cem metros da casa onde vivia em Lisboa, no cruzamento da Avenida de Roma com a Avenida dos Estados Unidos.”
Este filme de Paulo Rocha, além de ser importante e de marcar um antes e um depois na forma como vemos e fazemos cinema em Portugal, é também um trabalho muitíssimo bem fabricado, desde os diálogos escritos por Nuno Bragança ou improvisados por Isabel Ruth, à belíssima música de Carlos Paredes que adapta o Summertime de George Gershwin, passando pela forma como tudo nos é dado a ver, ouvir e sentir e que é o que envolve o trabalho de um realizador, e que é o que pode ser o cinema: mapear e sintetizar a ideia duma cidade com poucas imagens, relacionar esses espaços e essas imagens com o que sentem as personagens em dado momento, documentar idas e vindas do trabalho e um modo de viver e de sobreviver que já foi o nosso, recortar imagens com o próprio cenário e criar assim novas imagens, ocultar o que pode ser intuído e mostrar apenas o que pode ser revelado, ou demonstrado. Se se diz que uma imagem vale mil palavras, porque é que quase nunca pensamos e discutimos o cinema em termos de imagens e sucessões de imagens? O que é um plano. O que se vê num plano. Uma imagem que fica e nunca se perde, décadas passadas… a dança dos jovens apaixonados e da câmara naquele salão nobre, enquadrando e percorrendo primeiro os candelabros e o tecto, depois as silhuetas de Isabel Ruth e Rui Gomes… ou Ilda e Júlio… nos “nossos verdes anos.”
[1] in «Morreu produtor e realizador António da Cunha Telles, nome maior do Cinema Novo português», Observador, 24 de Novembro de 2022.
[2] in «Paulo Rocha», org. Roberto Turigliatto, Lindau, 1995.
Folha de sala escrita para a exibição do filme numa escola secundária em Braga, no âmbito das actividades do Lucky Star - Cineclube de Braga nas escolas da cidade.
quarta-feira, 30 de julho de 2025
CONVERSAS CÂNDIDAS COM O ACTOR PRINCIPAL
Não dá para acreditar. Aqui estou eu em Billings, no Montana, e tudo aquilo em que toda a gente nesta cidade subdesenvolvida da pradaria consegue falar é em Marlon Brando. Registo-me no Ramada Inn, e quando estou a assinar o meu nome, a rapariga na recepção inclina-se e diz em tom confidencial, "Sabe que o Marlon Brando está aqui?"
"Aqui? Quer dizer no Ramada Inn?"
"Bem... não." Ela parece um bocado irritada e põe-se na defensiva. "Mas ele está mesmo aqui em Billings. Está a fazer um filme nos arredores da cidade."
"Eu sei. É por isso que aqui estou."
Pude perceber que de repente tinha crescido palmo e meio na consideração dela. Ela não tem de saber que não estou realmente envolvido no filme; só vim para escrever sobre ele. Homem de mistério.
O paquete tem cerca de dezanove ou vinte anos e é um bom rapaz. Dou-lhe um dólar, e enquanto faz a verificação ritual dos interruptores da luz e das toalhas da casa-de-banho no quarto, ele menciona por acaso e de forma tão casual, "Imagino que tenha ouvido que estão aqui a fazer um filme."
"A sério?" A fazer-me de parvo. "Quem é que entra?"
"O Marlon Brando! Altamente, hã? Aqui mesmo em Billings. Vi-o a noite antes de ontem."
"Realmente."
"Bom, pelo menos disseram que era ele, numa caravana ali na Rimrock Road. Eu também não consegui ver muito bem."
A uma mesa de distância na sala de jantar, quarenta e cinco minutos mais tarde, está uma família saída directamente de um filme de Doris Day dos anos 1950. A loira gira—ela seria o papel de Sandra Dee—debruça-se e diz à irmã mais velha, Doris, "Bom, sinceramente, não vejo que mal é que ia fazer. Quer dizer, nós podíamos simplesmente ir de carro até lá, não podíamos, e perguntar-lhes se dava para assistir durante um bocado? O mínimo que podiam fazer era dizer que não."
"Mas a questão é mesmo essa!" diz Doris. "Eles iam dizer que não."
"Mas talvez possamos vê-lo a ele!"
"Um minuto," diz o papá. "Quem é este ele, afinal?"
"Oh, papá, tu sabes. O Marlon Brando."
"Oh." Consegue-se ver pela expressão que lhe atravessa o rosto que se está a lembrar de O Último Tango em Paris. Mesmo que não o tenha visto, ouviu falar daquela barra de manteiga. "Bom, esqueçam lá isso. Posso-vos dizer que temos uma data de coisas mais importantes para fazer do que andar às voltas pelos campos à procura... dele."
*
Há estrelas, há super-estrelas e depois há Marlon Brando. Ninguém consegue provocar a agitação que ele provoca ao estar simplesmente numa cidade, ao fazer aparições aleatórias a entrar e a sair de carros, ou ao fazer visitas repentinas e inesperadas a um bar ou restaurante. Os rumores são desenfreados. Correm notícias de "avistamentos" (como de um OVNI) por Billings como se fossem transmitidos instantaneamente em micro-ondas. Porquê? Ele é uma pessoa mágica, aí está o porquê. Brando é uma dessas figuras em quem investimos as nossas fantasias. Se se é uma mulher, pergunta-se como é que seria fazer amor com um homem assim, ou simplesmente falar com ele de forma íntima e pessoal. Se se é um homem, imagina-se como é que seria ser ele. Há apenas duas ou três figuras destas concedidas a cada geração. Lorde Byron foi uma; só Napoleão, no seu tempo, foi uma figura tão luminosa quanto ele. Uma vez, num baile, Byron ficou a aceitar a adulação das grandes damas de Inglaterra quando uma se chegou à frente de forma agressiva e disse que gostava de conhecer o verdadeiro Lorde Byron. "Senhora," disse-lhe ele abertamente, "não há verdadeiro Lorde Byron." E estava a falar a sério, porque Byron sabia—como Brando sabe agora—que a figura de fantasia que levava o seu nome tinha pouco ou nada que ver com o ser humano que ele era. É algo que se consegue imaginar Brando a dizer, não é? Não há verdadeiro Marlon Brando. E pode-se ter a certeza que se o dissesse, as pessoas diriam, "Lá está ele, a fazer-se de esperto outra vez."
*
The Missouri Breaks é o nome do filme. Tudo o que se tem de fazer é dizer, "interpretado por Marlon Brando e Jack Nicholson, e realizado por Arthur Penn," e deduz-se que tem de ser incrível. Estes três vieram cá pela oportunidade de trabalhar uns com os outros e correr o tipo de riscos que se espera que dois actores deste calibre corram com o homem que fez Bonnie e Clyde e O Pequeno Grande Homem.
De manhã cedo depois da minha chegada, estou a ser conduzido para o local de filmagens. Vamos rápido como uma flecha até aos limites da cidade e no sopé dos Rimrocks, uma espécie de planalto alargado de pedra sólida com vista para Billings de oeste, viramos à esquerda e dirigimo-nos para sul para as planícies. É uma longa viagem, e assim que passamos os Rimrocks, parece tudo igual—apenas campos de trigo, e para um dos lados na distância vaga e turva estão as Montanhas Rochosas, de um azul profundo e com um branco polvilhado no topo.
Em The Missouri Breaks, Nicholson e o seu bando de ladrões de cavalos—Frederic Forrest, Randy Quaid, Harry Dean Stanton e John Ryan—entraram numa contenda com um rancheiro, roubando-lhe o gado, linchando-lhe o capataz. Como o rancheiro não consegue lidar com eles sozinho, traz Brando, um assassino contratado que se descreve a si próprio como um "regulador." Brando vai atrás do bando e mata-os um por um. Em breve tudo se resume a Brando e Nicholson. Os antagonistas enfrentam-se. Começa o duelo final...
Bom, estão a entender a ideia.
Estamos quase no local de filmagens. O Casey vira à esquerda fora da auto-estrada por uma estrada de terra batida numa placa pequena com uma seta marcada EK. EK é de Elliott Kastner, o produtor do filme. Antigo agente cinematográfico, letrado e inteligente, Kastner é característico da nova safra de produtores independentes hoje em Hollywood, e é um dos mais bem sucedidos deles todos. Acabou de assinar um novo contrato para vários filmes com a United Artists que lhe irá garantir apoio para muitos projectos vindouros. Neste momento é o menino dos olhos deles. Mas porque é que não havia de ser? Qualquer tipo que consiga juntar Brando e Nicholson no mesmo filme merece todo o financiamento que consiga arranjar—e provavelmente também precisa. Os dois juntos custaram-lhe uns alegados $2 1/4 milhões, um milhão para Nicholson e um milhão e um quarto para Brando.
Kastner e Brando tinham trabalhado juntos num filme anterior, A Noite do Último Dia, em que Brando aparecia com Rita Moreno e Richard Boone. Quando a maior parte das pessoas pensa em Brando, pensam nele como está hoje, no topo, com O Padrinho e O Último Tango em Paris atrás de si. Ou podem-se lembrar dele como era na altura em que chegou pela primeira vez ao grande ecrã naquela série gloriosa de actuações—Um Eléctrico Chamado Desejo, Viva Zapata e Há Lodo no Cais—que nenhum actor alguma vez igualou antes ou depois. Esquecem-se que houve uma série de filmes ainda mais longa que antecedeu imediatamente O Padrinho e que marcou o nadir da carreira de Brando. Foram filmes tão eminentemente olvidáveis que hoje em dia é difícil evocar sequer os seus títulos—Bedtime Story, Morituri, A Condessa de Hong Kong, The Appaloosa, e assim por diante[1]. Nessa altura houve algumas dúvidas sobre se Brando iria alguma vez fazer um regresso, e aqueles que diziam com confiança que não iria geralmente tinham sorrisos nas caras.
Elliott Kastner conheceu Brando quando as suas fortunas estavam mais perto do fundo do que alguma vez hão-de estar. Brando estava-se a sair bem o suficiente em termos financeiros nesses tempos, a receber os seus milhões de dólares por filme, mas isso ia para sustentar três crianças em três casas diferentes. O mais triste de tudo era que ele parecia ter perdido o interesse no seu ofício. "Representar," afirmou ele na altura, "é uma vida de vagabundo na medida em que nos leva à completa auto-indulgência. Pagam-nos para não fazermos nada, e dá tudo em nada." E essa atitude começou-se a notar em algumas das suas actuações—embora não em todas—de forma que se participou numa série de maus filmes, ele próprio pode ter contribuído um pouco para os tornar maus. Ou pelo menos não conseguiu fazer aquilo que podia para os tornar bons, o que equivale ao mesmo. Porquê? Já se disse sobre ele que se aborrece facilmente, e sugere-se que essa é a razão para as depressões profundas entre os cumes da sua carreira. Mas poderá ser mais do que isso. Pode ser que quando uma pessoa inteligente e imaginativa aperfeiçoa um ofício de forma tão completa como Brando aperfeiçoou a representação, hajam então elementos de luta e de desafio introduzidas ao processo de alguma forma—de qualquer forma, mesmo que artificialmente—ou eventualmente ele perderá totalmente o interesse no seu trabalho. A luta? Essa deu-se ao regressar do exílio de mediocridade e indiferença ao qual se tinha condenado a si mesmo. O desafio? Fazer O Padrinho e O Último Tango em Paris um a seguir ao outro. Francis Ford Coppola, e especialmente Bernardo Bertolucci, pediram de Brando mais do que ele tinha para dar, quase, mais do que qualquer actor tinha em si para dar. Mas de alguma forma ele conseguiu mesmo oferecer-lhes aquilo que eles exigiram. Correspondeu ao desafio, e agora está de volta ao topo.
*
Basta pormos os pés no plateau de The Missouri Breaks para descobrir isso por nós próprios. Ele aqui é o foco de atenção. Quando está fora da caravana em que vive, mesmo no plateau, todos os olhos se parecem desviar para a sua direcção. Quando está a trabalhar em frente às câmaras, as pessoas que não estão directamente envolvidas aparecem—de forma bastante casual, ao que parece—só para ver. E quando não está por perto, falam sobre ele.
Frederic Forrest é um bom jovem actor cujo primeiro papel foi o de protagonista num filme memorável chamado Quando Morre a Lenda e que voltou a aparecer no papel titular em Larry, um dos melhores filmes na televisão o ano passado. Ele faz mais do que observar Brando; ele estuda-o.
"O tipo é incrível," diz Forrest. "Ele constrói personagens a partir de tudo. Há sempre pequenas surpresas, pequenos detalhes no trabalho dele, de forma que há algo a acontecer a todo o momento."
A oportunidade de trabalhar com Brando, vê-lo a construir um papel, foi uma das grandes razões que o levaram a participar em The Missouri Breaks em primeiro lugar. Durante um intervalo nas filmagens, sentamo-nos à porta da cabana do ladrão de cavalos sob o sol quente do Montana e falamos sobre uma data de coisas. Ele conta-me, por exemplo, sobre crescer no Texas onde a única representação a que estava exposto era nos filmes que ia ver todas as Sextas-Feiras à noite. "Eu acho que nunca teria posto na cabeça ser actor de todo se não tivesse sido por Brando e James Dean e Montgomery Clift. Eles mostraram-me algo que gostava de ser. E ouvi dizer que era em Nova Iorque que as coisas estavam a acontecer, onde esses tipos começaram, portanto foi para lá que eu fui.
"Brando... ele é outra coisa."
*
Ele é o favorito da equipa. A rodagem já estava a decorrer há algumas semanas quando Brando apareceu para começar o seu papel. Nessa manhã ele foi ter com todos os membros da equipa—electricistas, técnicos de som, técnicos de imagem, toda a gente—e apresentou-se, apertando mãos, perguntando nomes, dizendo-lhes que era um prazer trabalhar com eles. Age como se fosse um prazer, também. Compra a bebida quando há uma celebração. Vai às festas de aniversário. E faz isso tudo com convicção, dizem eles, e não como se fosse uma grande estrela a aparecer para a plebe.
No entanto ele é uma grande estrela, mesmo para eles. Poder-se-ia supor que uma equipa de cinema seria imune ao tipo de fascínio que a maior parte das pessoas sente na presença de actores e celebridades. E na maior parte dos casos são. Mas com Brando é diferente. Como diz o aderecista Guy Douglas, "A equipa sente que Marlon Brando é o herói deles."
Eles gostam da garra e da jovialidade dele, também. Para eles é óptimo quando Brando anda de um lado para o outro pelo plateau na sua pequena Honda de 90-cc, reduzindo Elliott Kastner a um estado de apoplexia. Quando Brando convenceu Jack Nicholson a subir para trás dele e arrancaram os dois através do campo, a avançar sobre as colinas e a saltar por cima de rochas, ouviu-se Kastner a perguntar, "Vocês fazem alguma ideia de quanto dinheiro está a andar naquela coisa?" Mesmo por volta dessa altura eles deram um salto especialmente mau e capotaram. As duas estrelas apareceram a rir, mas o produtor estava profundamente mal-humorado.
"Independentemente de tudo o resto que se possa ouvir dizer sobre ele, Brando tem garra, sim senhor," diz o maquilhador Robert Dawn. "Ele está a fazer as próprias acrobacias: eu vi-o a dar um salto de vinte e cinco pés[2] de uma árvore, a agarrar-se apenas a ramos para amortecer a queda, isso seria um gag muito bom até para um duplo profissional."
*
Arthur Penn: célere, nervoso, intelectual. É descrito por Frederic Forrest e por outros no elenco como uma influência estabilizadora, mas a pressão está em cima dele, e está a começar a mostrar a fadiga. Fala rápido e diz o mínimo possível.
"Sim, houve alguns atrasos," admite ele, "mas são de esperar num filme como este. E afinal de contas, o trabalho está a ser feito."
"A que tipo de filme se refere com 'um filme como este'?" pergunto-lhe eu.
"Um filme sonante, um com pessoas sonantes nele, e isso causa-me algum nervosismo. No entanto, é de se esperar. São uma série de pessoas originais com uma série de ideais originais. Isso mantém a coisa interessante."
Já vi vários realizadores ao trabalho—Mike Nichols, Sam Peckinpah, Jan Kadar, Bill Friedkin—e ao deixar Arthur Penn para trás foi a primeira vez que não desejei que também podia fazer aquilo. De repente não parecia ser muito divertido. Um dos membros da equipa disse-me que nunca tinha trabalhado com um realizador que rodasse tanta "cobertura"—o mesmo plano de acção a partir de uma data de ângulos diferentes. O que torna Penn extra-minucioso, imagino eu, mas talvez um pouco preocupado também.
*
O modo como este filme tomou forma de improviso, é como que um acidente de 5 ou 6 milhões de dólares. Kastner tinha o guião. Arthur Penn estava disponível e pôs Brando interessado no projecto. Brando precisava do dinheiro para uma série de experiências ambientais que está a iniciar no Taiti. E se Brando estava interessado, então Jack Nicholson também estava interessado. E de alguma forma tudo se encaixou no seu lugar em pouco mais de uma semana. Habitualmente estaria muito bem, mas neste caso simplesmente não houve muito tempo para o tipo de preparação de produção cuidada que é normalmente a marca de um filme de Arthur Penn. Os locais de filmagem foram sondados do céu. Os figurinos foram desenhados e feitos em quatro semanas. Alguns dos papéis secundários foram seleccionados com actores que mal tinham olhado para o guião.
Kathleen Lloyd, que interpreta a filha do rancheiro e é praticamente a única mulher neste filme estrondosamente másculo, foi contratada com base na força de um filme para a televisão que o seu agente tinha dela. Sem audições. Sem tempo de ensaios. Só conseguiu conhecer Jack Nicholson, o seu protagonista masculino, quando chegou aqui ao Montana.
É um belo filme para uma rapariga que antes só teve experiência em televisão. Mas ela é ágil e esperta, e o que se diz é que se está a aguentar bastante bem.
"Como é que é," pergunto eu, "trabalhar com Brando e Nicholson na sua primeira experiência?" É uma pergunta estúpida, mas às vezes é melhor ser directo.
"O que é que lhe posso dizer? É o que se poderia pensar. É muitas coisas."
"Diga uma."
"Bem, quer dizer, a energia aqui é incrível. É muito intenso à frente da câmara. Tudo o que posso fazer, tudo o que tento fazer, é manter-me aberta para todas as acções. As coisas começam a andar bastante rápido, e eu não quero ficar para trás."
*
Se Jack Nicholson está a sentir esse tipo de pressão, não o mostra. Ele é um tipo difícil de definir. Bastante casual, amigável de uma forma superficial, mas há algo de oblíquo, indirecto e quase que retraído nele. Ele confirma o que eu tinha suposto: que este é o primeiro western em que aparece desde Ride in the Whirlwind, um dos famosos filmes "perdidos" dos tempos anteriores a ter feito sucesso pela primeira vez em Easy Rider.
"Isso foi quando aprendi a andar a cavalo, a fazer esses dois westerns com Monte Hellman. Isto é um ramo de loucos. Aprende-se esse tipo de coisas a fazer filmes—como andar a cavalo, como disparar pistolas..."
"Como andar de mota?" incito-o eu.
"Isso também."
De vez em quando somos interrompidos por membros da equipa e por alguns locais que conseguiram entrar com paleio no local de filmagens. Pedem-lhe para lhe tirar fotografias, para tirar uma fotografia com ele. Ele é cooperante, agradável, afável. Mas a mente dele parece estar noutro lado. Reparo que está a olhar com bastante frequência para Brando, que está afastado para um lado, a preparar-se para uma tomada que vai ser rodada através de uma larga ravina, um plano geral que Penn e a equipa de imagem estão a preparar mesmo nessa altura. Isso lembra-me que se diz que Nicholson vive mais ou menos nesse tipo de relação face a Brando em Los Angeles, em Mulholland Drive. A casa dele é numa colina, directamente oposta à de Brando, que fica próxima em cima de outra. Talvez isso signifique muito para um tipo como Jack Nicholson. Pode-se ter a certeza que significa alguma coisa.
Enquanto Brando espera durante a preparação do plano, pratica atirar uma lança de quatro pontas com aspecto agressivo para o poste de uma cerca; faz parte do arsenal de instrumentos raros de matança com que a personagem de Brando, Robert Lee Clayton, despacha as suas vítimas. Nicholson observa, sem dizer nada durante um bocado, e então admite: "Estava aqui a pensar. Tu olhas para aqueles dois gajos, e percebes a diferença de temperamentos que temos a funcionar neste filme. Um deles está a atirar uma lança para o poste—parece perigoso. O outro gajo"—aponta na direcção de Arthur Penn—"está a olhar fixamente para o chão, a tentar decidir o que se faz a seguir." Hesita, depois acrescenta, às próprias custas: "E eu, estou no meio, a falar com um escritor. Eis o que chamo um pacote imbatível." Nicholson ri-se de repente.
*
"Espero que as debulhadoras não o tenham incomodado ontem à noite, Sr. Brando."
"Não. Essas coisas não me incomodam. Aqui nada me incomoda. Gosto disto."
Marlon Brando está a falar com as pessoas que detêm o rancho onde o filme está a ser rodado—ou pelo menos este pedaço do filme. Uma vez que está a ficar mesmo no local de filmagens na sua caravana, ele também é convidado deles. Eles gostam disso. São pessoas decentes, e ele está a ser decente com eles também. A sua filha Ona passa por lá, e eles apresentam-na. Por sua vez, ele fala-lhes sobre as belas pedras que encontrou nas redondezas—"Até vi alguns petróglifos, três deles, ali para baixo entre os pedregulhos."
E assim por diante. Mas por volta desta altura ele repara em mim enquanto olho discretamente na direcção oposta, apontando tudo no meu bloco de notas. É uma forma sorrateira de operar, admito, mas eu tinha sido avisado de que Brando provavelmente não ia falar comigo, portanto pensei, que diabo, mais vale apontar tudo o que ouço, porque ele pode dizer algo interessante. Tinha tentado ser discreto mas de alguma forma ele reparou, e antes de eu estar totalmente preparado, aqui está ele, uma presença enorme, a olhar para mim de forma severa, a perguntar-me quem sou e o que estou a fazer com o bloco de notas. Revelo-lhe quem. Revelo-lhe porquê. E ele diz, "Esquece. Eu falo contigo." E arrasta-me para dentro do pequeno cubículo do camarim atrelado. É quente mas é privado.
"Força," diz ele, "pergunta-me o que quiseres."
Sou subitamente tomado por um paroxismo de uh-uh-uhs—francamente incapaz de pensar no tipo de perguntas mágicas que o possam fazer soltar, portanto em vez disso recorro a uma sobre as alterações todas no guião, e as improvisações sobre ele de que tanto ouvi falar.
Ele encolhe os ombros. "Bom, nós estamos a rodar a correr. Mas, com quase qualquer bom filme, é impossível planear-se o que quer que seja até se estar mesmo lá. Quando se vive nas circunstâncias, a realidade da coisa surge-nos, para o bem ou para o mal. Os filmes, na verdade, são improvisações. Os melhores jovens cineastas são os que percebem isso. Veja-se o Martin Scorsese. Ele trabalha de forma rápida e barata, mas o que o torna tão bom é que tem uma qualidade de improvisação no seu trabalho que se presta à técnica de fazer filmes."
"Então é uma espécie de processo existencial," observo eu.
"Sim. E, dessa forma, muito evocativo dos tempos. Quer dizer, é preciso manter o radar ligado o tempo todo e reagir imediatamente nos dias que correm. Como tu agora mesmo. Estás vestido exactamente como a equipa. Eu não teria reparado em ti de todo se não fosse pelo bloco em que estás a escrever. E isso também não me teria incomodado, mas—bom, estás a perceber."
Aceno com a cabeça. Sim, estou a perceber.
"Está tudo em fluxo constante. Os tempos estão num tumulto impressionante. As coisas—os efeitos as e as respostas—estão encurtadas. Aquilo que levava cinquenta a cem anos a acontecer agora tem efeito em vinte anos ou menos." Mas aqui Brando interrompe-se e volta a encolher os ombros. "Isto foi tudo bem dito em Future Shock[3]. Não preciso de estar agora a repeti-lo.
"Os problemas são planetários. É irrelevante se hoje em dia se pertence à Serra Leoa ou à Austrália, porque os problemas são os mesmos. É a mesma poluição. É a mesma escassez energética. Também vai ser a mesma fome daqui a uns anos. E parecemos estar todos à mercê destes próprios novos países estranhos que se formaram e que são chamados de cartéis internacionais. São um pouco menos populosos, mas falam bem alto, e têm um poder muito grande. As companhias como a Standard Oil e a IBM são como que as novas cidades-estado. As companhias multi-nacionais não têm lealdade para com ninguém ou responsabilidade perante ninguém. Há uma pitada de lealdade para com os investidores, mas isso não quer dizer nada. Eles têm os seus próprios sistemas de inteligência, forças políticas, tudo."
Ele abranda, depois pára totalmente. É um locutor rápido, contundente, mais associativo do que lógico (como a maior parte de nós) na forma como salta de tópico para tópico. No entanto, aquilo que é mesmo notável é a sua concentração no ouvinte (eu) enquanto fala. Há uma intensidade cativante no seu estilo que exige—e consegue—atenção total.
"Os filmes não seriam uma boa forma de comunicar isto às pessoas?" sugiro eu. "De fazer soar mais ou menos o alarme?"
"Eu acho," responde ele, "que o Francis Ford Coppola disse algo parecido n'O Padrinho, não?"
"Bem..."
"Além disso, então e os filmes e a comunicação da mensagem? Nós vamos sempre mudar o mundo pela comunicação, mas nunca funciona assim muito bem, pois não? Antigamente pensávamos que a rádio ia transformar as coisas—transmitir simplesmente a mensagem às pessoas. Depois foram os computadores que instigaram as esperanças e os sonhos das pessoas. E o que é que os computadores nos deram? O Vietname. Estava no The Best and the Brightest[4]. Não paravam de inserir dados no computador, e o computador disse que íamos ganhar, por isso continuámos a enviar tropas, e a bombardear, e a matar pessoas, até começarem a ver por fim que o computador estava errado."
"Mas," pergunto-lhe eu, "não acha que o cinema é mesmo bastante influente?" Durante anos foi importante para Brando aparecer em filmes que dissessem coisas—coisas em que acreditava mesmo.
"O que é que eles influenciaram?" contrapõe ele. "Pelo menos com a televisão sabe-se que há alguma influência directa. As pessoas compram comida, ares-condicionados, automóveis, depiladores eléctricos, porque os viram anunciados na televisão. Mas como é que usa essa máquina? E como é que usamos os filmes? Parece-me que há algum tipo de pomposidade na ideia de que se comunicamos estas ideias as pessoas vão ouvir, vão-se fazer faíscas, e a brisa fresca da verdade vai soprar."
Brando soa muito mais pessimista do que eu tinha esperado, ou mesmo imaginado. Torna-se evidente enquanto fala que se deixou sucumbir à melancolia por aquilo que vê como a crise planetária que se avizinha. A arte não vai ajudar. A comunicação não vai resolver estes problemas. O único raio de esperança que vê está nas experiências ecológicas semelhantes à que tem em andamento na sua ilha no Taiti. Chama-lhe "o Plano Geral de Tetiaroa—o desenvolvimento de uma ilha para que se possa tornar um paraíso ecológico." Ele fala muito a sério em relação a isto, e de forma tão prática como é possível. Explica em detalhe como planeia usar energia solar para a electrólise da água; como planeia ver o que é possível fazer com bombas de ondas; como tem experiências em andamento para ver se se consegue produzir gás metano em quantidade a partir de dejectos humanos—literalmente, energia de merda.
Mas de que é que nos serve a comunicação—resume ele—se não consegue impedir o genocídio e a injustiça? "Quer dizer, o raciocínio é tão sinuoso. O sonho de idealismo na mente de um homem são os pesadelos de outro homem. Nós preocupamo-nos com os campos de trabalho escravo russos e ignoramos a tortura no Brasil, viramos as costas à nossa própria vergonha nas reservas índias e nos guetos, a isso tudo. Nós—" Ele interrompe-se bruscamente, hesita, depois lança-se de novo: "Ontem visitaram-me dois senhores do FBI, para me fazer perguntas. E eu perguntei-lhes algumas a eles. Acabámos por ter uma conversa de duas ou três horas. Eles eram..." Encolhe os ombros. "Eram homens simpáticos. A grande questão deles era, será que eu ajudaria um homem que fosse um fugitivo à justiça?" (Significando, em particular, os índios que agora são fugitivos do mais recente tiroteio em Wounded Knee.) "E a minha grande questão para eles foi, se um amigo deles no FBI matasse alguém injustamente, será que eles o entregavam e testemunhavam contra ele? Basicamente, é a mesma situação vista de dois lados diferentes. Um homem do lado errado da lei pode ser um fugitivo à justiça, mas um homem do lado certo da lei, se não conta a verdade, pode-se tornar um fugitivo à verdade. E francamente, sabes, houve tanta mentira, tanta mendacidade terrível durante aquele julgamento de Wounded Knee em Minneapolis. Foi vergonhoso. Era esse o tipo de coisa de que estava a falar, a tentar que os homens do FBI encarassem."
Por volta dessa altura soa uma batida receosa à porta do camarim, e Brando é informado de que está na altura de trocar de roupa para a próxima cena, a sua segunda do dia. Ele acena com a cabeça, diz que estará pronto quando eles estiverem, e começa a livrar-se das roupas. Está com peso a mais—massivo mas não flácido. Por baixo de cerca de trinta ou trinta e cinco libras a mais[5], o físico de pugilista ainda lá está. Faço como se fosse a sair do pequeno cubículo. Mas ele diz, "Nã. Deixa-te estar. Podemos retomar isto depois da tomada. Os filmes são uma actividade compartimentada, afinal de contas."
E isso lembra-me de algo que sempre me incomodou em relação à prática de fazer filmes. "Olhe," digo eu. "Considerando o processo, não vejo como é que se pode manter qualquer nível de intensidade dramática de cena para cena."
Ele sorri o seu sorriso torcido. "Não pode ser feito. Descobri isso há muito tempo. Eu costumava deixar as minhas interpretações no camarim. Ia para o local de filmagens às sete e ouvia gravações para me mentalizar e tudo o mais. Depois perdia isso tudo antes de ir para a frente da câmara. Sinceramente, acho que é melhor aproveitar o momento enquanto vem. É outra vez aquela coisa existencial de que estávamos a falar há bocado. Mas, seja como for, este é só um filme de cowboys. É como atirar aos peixes."
*
Para Marlon Brando pode ser como atirar aos peixes, mas ninguém diria pela forma como ele o faz. Ao todo, eu vi um par de cenas em que era suposto ele estar a perseguir o bando de ladrões de Nicholson, a espiá-los, a prepará-los para a matança. De cada vez que fazia uma tomada, ele conseguia dar-lhe mais um pequeno toque extra. É um homem que consegue representar com as sobrancelhas, que improvisa qualquer coisa em alemão—em alemão!—quando acha que o guião precisa de um bocado de brilho. E de alguma forma tudo faz sentido. Acrescenta profundidade e dimensão à personagem. Cada pequeno movimento tem o seu próprio significado. Tal como diz a canção.
Aquilo que ele está a fazer em The Missouri Breaks é desafiar-se a si próprio, introduzindo elementos na personagem e na trama que podem não estar totalmente presentes no guião. É perigoso, é ousado, é balançar na corda bamba, mas ele está disposto a correr o risco.
Acabo na margem de um pequeno riacho que vai desaguar ao rio Yellowstone um pouco mais adiante. Aqui está tudo tranquilo. O único movimento vem das rãs que saltam de vez em quando, vairões que se contorcem pela água límpida e de um objecto parecido com um tronco que vai batendo devagar ao ritmo da corrente. É Brando, claro, com uma coroa de erva e vegetação ribeirinha a cobrir-lhe a parte da cabeça que se move sobre a água, quase que ocultando o par de binóculos pelos quais espreita, enquanto observa supostamente a sua presa rio abaixo. A camuflagem foi ideia dele. Fá-lo parecer de algum modo monstruoso, como o homem verde do folclore inglês.
Ele faz tomada atrás de tomada para Penn, ensopado, enlameado, disponível. Depois, finalmente despachado, faz algumas palhaçadas para um par de fotógrafos de cena enquanto a equipa recolhe o material, perseguindo as rãs entre os juncos. Consegue agarrar um par delas, mas escapam-lhe, saltando um pouco para a frente. Mas ele tem mãos rápidas. Mergulha novamente, gritando para a multidão na margem. "Vou para baixo de água outra vez, como um grande crocodilo." Começa a flutuar mesmo sob a superfície por um momento, e um peixe, não muito maior que um vairão, nada nas proximidades. Num piscar de olhos estende a mão e consegue-o agarrar. A escorrer água, levanta-se de um salto, com o peixe na mão, e praticamente no mesmo movimento, morde-o em duas metades.
Aquilo causa uma agitação considerável. "Yeccch!" reclama alguém na margem. Também há algumas risadas nervosas.
Brando faz uma careta. "Riam-se à vontade," grita ele para a equipa. "Vocês não sabem o que estão a perder." Talvez tenha adquirido um gosto por peixe cru no Japão quando estava a fazer Sayonara. Ou então simplesmente nunca perdeu o desejo de chocar as pessoas de vez em quando com uma nova schrecklichkeit[6]—uma reversão momentânea ao velho Brando de O Selvagem.
No entanto uns minutos mais tarde ele está fora do riacho, por hoje, pronto a voltar para a sua caravana. Convida-me para a traseira da sua Honda para a boleia de volta. Percebo então porque é que Jack Nicholson estava a saltar tão alto na traseira daquela mota.
*
A caravana de Brando é modesta por fora e espartana por dentro. Não há nada de luxuoso nela, de todo. Mas ele prefere-a a um quarto de motel ou uma casa em Billings, porque aqui pode estar sozinho, e ele dá grande valor à sua privacidade. Como é que passa o tempo? Lê. Passeia por aí à recolha de pedras.
"Olha para estas," diz ele, a retirar a sua colecção de pedras. "Parece que não valem uma merda, mas quando as lambes"—ele faz isso—"transforma-se como por magia em algo de belo." Ele segura-a para eu a examinar, e tem razão. É lindíssima. "Encontrei esta junto ao rio Yellowstone. Esta terra é óptima para apanhar pedras."
Quando olho para ela, ele olha para mim. "Sabes, eu sou obrigado a dizer que o teu ramo está fora de controlo se um escritor é enviado para falar com um bando de idiotas a fazer um filme de cowboys. O que é que isso tem a ver com coisas que nos façam avançar? Praticamente zero. Seja como for, eu acho que o mundo das notícias de forma geral está arruinado. Nas notícias da televisão, o que é que temos? Miséria enfiada entre ho-ho-hos e compra-compra-compras. Não sei. Parece-me que estamos todos enredados na mesma confusão. Não há nenhum escritor no teu ramo que não queira ir para uma cabana na floresta e escrever um romance e desfrutar da boa vida. Mas toda a gente tem uma família para sustentar. Tem de se desenrascar. É uma escolha assustadora para qualquer um tentar praticar um jogo honesto."
Brando pausa por um momento, e então avança: "E tentar chegar à verdade é praticamente impossível. Ouve, deixa-me contar-te uma coisa. Há vários anos atrás eu estava na Baía de Baffin no Canadá completamente sozinho, só eu e um grupo de esquimós no pico do Inverno. Eu caí num banco de gelo e desloquei a anca e parti o pulso. Vieram os esquimós e pegaram em mim e puseram-me num trenó puxado por cães e levaram-me a uma senhora muito, muito velha na aldeia deles, no acampamento, o que quer que lhe chamem. Seja como for, ela põe imediatamente um dos pés na minha virilha, agarra a minha perna e torce o meu pé de volta ao sítio. O engraçado é que não doeu muito. Depois—ela não falava uma palavra de inglês—depois em silêncio pôs-se atrás de mim e começou a bater-me ao de leve no ombro no mesmo sítio. Só a bater, mas gradualmente o meu pulso ficou dormente. Não sinto nada ali e poucos minutos antes doía como os diabos. Então tratou do meu pulso e eu ouvi os ossos a estalar, mas não senti absolutamente nada. Depois ela envolveu-o numa espécie de gesso feito com pele de lontra pré-natal, e no espaço de uns dias estava tudo bem. Foi espantoso! E mostra a total falta de consideração que nós temos pela medicina tradicional, que nos recusamos a aprender aquilo que eles têm para nos ensinar."
Isto era incrível! Tanto quanto sei, Brando nunca tinha falado sobre isto antes. Pude perceber pela forma sombria e sincera com que falou que tinha sido uma experiência penosa e importante para ele. E estava a revelá-lo, talvez pela primeira vez, a mim. Era aquilo que Louella Parsons costumava chamar de "exclusivo."
"Agora o que acabei de te contar," continua Brando por um momento, "era uma mentira completa. Mas só te queria demonstrar o que é que acontece quando uma inverdade é apresentada de forma totalmente séria e directa por um mentiroso qualificado. É isso que os actores são, e os políticos também. Nixon era certamente um dos mais habilidosos. Agora, acabei de te enganar, e talvez estejas irritado comigo, mas nós somos enganados todos os dias—em anúncios televisivos, nas notícias da TV e especialmente quando as pessoas dão discursos. É assim que as notícias são arruinadas."
"Mas e o seu próprio ofício?" Acrescento "O seu ramo. Como é que se consegue lidar com isso?"
Ele encolhe os ombros. De certa forma é um gesto insinuante. "Não sei. Eu sou como muitos dos antigos pugilistas. Quanto mais nos habituamos, mais fácil se torna aguentar um golpe. Em pouco tempo começamo-nos a mover de forma intuitiva. Não nos lembramos do que é que aconteceu entre a quarta e a oitava ronda, simplesmente deslizamos e esquivamo-nos, e movemo-nos. No meu caso, eu vou em frente, e digo a mim mesmo, onde é que eu já vi esta cena? Todas estas cenas neste filme foram vistas nove mil vezes antes. Mas estamos presos numa situação de cowboys que está assumidamente um degrau acima de Hoot Gibson, portanto é essencial pensar em novas coisas que tentar só para nos mantermos um passo à frente dos espectadores. Inconscientemente, eles sabem como é que a cena começa e o que é que o actor vai dizer. Tenho que contrariar essas expectativas."
Por volta desta altura pergunto-lhe sobre o seu projecto de filme índio, e descubro que está muito mais avançado do que eu imaginava. É para ser uma tomada de posição tão gráfica e honesta como lhe for possível sobre a situação dos índios actualmente. Há um guião que foi aprovado e aceite para investimento pela Columbia Pictures. Brando, como produtor do filme, está agora a actuar como intermediário, trabalhando com o estúdio e com os índios do American Indian Movement (AIM)[7], que têm direito de aprovação total, e tentando chegar a um acordo em relação ao realizador para que o filme possa arrancar. Consideraria realizá-lo ele?
"Não." O sorriso torcido. "Desisti disso com One-Eyed Jacks." Digo-lhe que achei que era um bom filme e que há uma data de pessoas que também acham. Ele acena em agradecimento. E é mais ou menos isto.
"Mas vai continuar a representar, não vai?" Eu acho que seria um desastre se ele terminasse mesmo a sua carreira—para ele, para nós, para toda a gente. "Que tipo de futuro vê para si próprio?"
Ele inclina-se para a frente e diz com mais urgência do que eu estava preparado, 'Gostava de levar a minha vida e ser parte de uma sociedade que é tão boa como a erva que cresce. Gostava de ser uma folha de erva em concertação com outras folhas de erva. As formigas dão-se bem; tubarões e baratas. Eles sobrevivem. Eu sou pela sobrevivência."
Aí está. O próprio Chefe Joseph, o líder eloquente e subjugado dos índios Nez Perce, não o poderia ter dito melhor. Uma sociedade tão boa como a erva que cresce.
[1] É um problema comum entre os jornalistas quando se põem a falar de filmes em vez de se concentrarem no seu trabalho. Enganam-se redondamente. A Condessa de Hong Kong é uma obra-prima absoluta e The Appaloosa foi muito importante para a carreira e para o próprio trabalho de Enzo Castellari, por exemplo, sendo também o filme preferido de John Saxon entre todos os que fez. E trabalhou com George Cukor, Blake Edwards, Vincente Minnelli, Frank Borzage, John Huston, Mario Bava, Otto Preminger, Edgar G. Ulmer. E assim por diante. [N.d.t.]
[2] Quase oito metros. [N.d.t.]
[3] livro de Alvin Toffler. [N.d.t.]
[4] livro de David Halberstam. [N.d.t.]
[5] O equivalente a cerca de catorze e dezasseis quilos. [N.d.t.]
[6] "Terror" em alemão. É também um termo utilizado para descrever as políticas militares do exército imperial alemão durante a primeira guerra mundial para com civis e certas minorias. [N.d.t.]
[7] Movimento Índio Americano. [N.d.t.]
in «Crawdaddy», Dezembro de 1975, pp. 34-41.
segunda-feira, 30 de junho de 2025
A Surripiar — Robin Wood sobre The Missouri Breaks
The Missouri Breaks levanta com particular vivacidade os problemas de se discutir a autoria no cinema comercial americano. É realizado por Arthur Penn, que tem por hábito assumir projectos aparentemente heterogéneos, geralmente numa fase tardia da elaboração do guião (The Chase, Bonnie e Clyde), e convertê-los, apenas com uma alteração estrutural mínima, em marcos num desenvolvimento incrivelmente consistente. O argumento original desta vez é de Thomas McGuane, e nas suas linhas gerais segue de muitíssimo perto o do recente Rancho Deluxe (1975), também escrito por McGuane mas realizado por Frank Perry. Além disto, o filme deve ser visto no contexto da evolução global do western, do cinema de Hollywood, e da civilização americana—do processo social/cultural/ideológico em que a obra individual e os artistas individuais estão envolvidos.
As semelhanças de enredo entre os dois filmes podem ser indicadas rapidamente; ajudam a salientar as diferenças. O conflito primário em ambos é entre um barão do gado e um grupo de ladrões. Em ambos, os ladrões tentam enganar o rancheiro instalando-se a si próprios mesmo debaixo do seu nariz (em Rancho Deluxe recrutando dois dos seus homens e em The Missouri Breaks comprando um rancho contíguo). Depois de uma afronta em particular (o rapto de um touro premiado para resgate, o homicídio por vingança de um capataz), o rancheiro traz um especialista reconhecido—no filme de Perry um “detective de gado” (Slim Pickens) e no de Penn um “Regulador” (Marlon Brando). Desenvolve-se um triplo conflito à medida que as tentativas pelos ladrões de gado e pelo especialista em se superarem uns aos outros são acompanhadas pela tensão crescente entre o especialista e o rancheiro. Em ambos os casos, o especialista parece ser ou ocioso ou incompetente e antagoniza o seu empregador com a sua arrogância; em ambos, quando o conflito irrompe, o especialista expressa a sua indiferença em relação ao salário mas insiste em levar o seu trabalho até ao fim, como uma questão de orgulho pessoal e profissional.
A característica geral comum mais saliente dos dois guiões é a tendência de McGuane para conceber cada episódio em termos de uma ideia deliberadamente nova ou excêntrica. Perry, cujo trabalho anterior (e.g., Diary of a Mad Housewife, 1970) tem sido consistentemente vulgar, fácil e oportunista, executa Rancho Deluxe precisamente a esse nível. Cada cena se desenrola pela sua gracinha potencial, e o filme não gera qualquer tensão moral ou qualquer ressonância: os ladrões de gado são jovens amigáveis, o detective um velho encantadoramente engenhoso, e o filme não tem ambições para lá do divertimento casual. O argumento de The Missouri Breaks é mais sério por si mesmo (o filme abre com um enforcamento e culmina numa série de mortes violentas; ninguém morre em Rancho Deluxe para perturbar o tom predominantemente cómico); o grau pelo qual Penn se infiltrou e tornou seu aquilo que é claramente um padrão estrutural de McGuane permanece notável.
A tensão central na obra de Penn sempre foi a que existe entre o impulso e o controlo: uma tensão central à condição humana, pode-se argumentar, mas Penn sempre a investiu de uma intensidade particular e, nos primeiros filmes, de um equilíbrio preciso de afinidades (a oposição Billy the Kid/Pat Garrett de The Left Handed Gun, o casamento do instinto e da razão em Annie Sullivan em O Milagre de Anne Sullivan, a valorização equitativa de Bubber Reeves e do xerife Calder em The Chase). The Chase (nas palavras de Penn, “mais um filme de Hollywood do que um filme de Penn”) marca um ponto de viragem tanto na sua obra como no desenvolvimento do cinema americano: um dos primeiros filmes “apocalípticos” de Hollywood, apresenta a desintegração da sociedade capitalista americana como irrevogável. Daí em diante, Penn tem-se movido consistentemente pelas margens da sociedade estabelecida para procurar grupos alternativos (e sempre extremamente vulneráveis) que encarnem valores de liberdade, generosidade, espontaneidade, uma capacidade de resposta humana mútua: o bando Barrow de Bonnie e Clyde, a comunidade hippie de Alice’s Restaurant, os Cheyenne de O Pequeno Grande Homem, os ladrões de gado de The Missouri Breaks.
Esta mudança de ênfase foi acompanhada por uma mudança de atitude correspondente em relação às figuras que encarnam a consciência e o controlo e dedicadas à preservação da ordem estabelecida. A última destas personagens a ser apresentada de forma empática num filme de Penn foi o Calder de Brando em The Chase; é particularmente ajustado que a prorrogação desta relação afortunada entre actor e realizador coloque Brando praticamente na mesma posição dentro da estrutura simbólica de Penn mas visto agora de forma inequívoca como um monstro.
No entanto, seria errado ver este desenvolvimento exclusivamente em termos pessoais. Os últimos três filmes de Penn preocuparam-se todos em inverter os mitos centrais de Hollywood: o papel da cavalaria como justos defensores da civilização e agentes do Destino Manifesto (O Pequeno Grande Homem), o detective privado infalível moral e profissionalmente a dar luzes sobre as sombras da selva urbana (Night Moves), o pistoleiro como paladino heróico da lei e da ordem (The Missouri Breaks). A tendência (que não se limita de forma alguma a Penn—pense-se, entre muitos outros, nos filmes de Robert Altman) deve-se ver menos como o desejo de dizer finalmente “a verdade” e mais como um reflexo de alterações significativas nos valores americanos e na consciência nacional.
The Missouri Breaks apresenta uma revisão concisa do mito do western do desenvolvimento da civilização americana: o rancheiro Braxton trouxe milhares de cabeças de gado e centenas de volumes de literatura inglesa para a natureza selvagem, junto com os valores civilizados do lar, família, lei e ordem. É-nos contado que a sua mulher, depois de três anos de “pesar cada palavra,” partiu com “o primeiro homem insensato que conseguiu encontrar.” O enforcamento que abre o filme marca o momento em que a lei e a ordem se endurecem em repressão; depois disso, Tom Logan (Jack Nicholson), líder dos ladrões de gado, sente “algo novo no ar.” Esse “algo novo” depressa assume a forma corpórea de Robert E. Lee Clayton, o regulador contratado.
Clayton é uma criação extraordinária. Entre os três, Penn, McGuane e Brando levaram à sua conclusão lógica, ao seu reductio ad absurdum, a figura mítica do herói solitário da natureza selvagem, defensor da civilização, rectificador de injustiças. De Hopalong Cassidy a Shane, esta figura tem de ser desapegada, sobretudo em relação às mulheres e aos grilhões do lar, psicologicamente inexplicado e inexplicável, superior e carismático. Clayton, super-humano e sub-humano ao mesmo tempo, não tem identidade—apenas uma sucessão de roupas extravagantes e uma série de sotaques. A “única mulher que alguma vez amou” é a sua égua (que, de modo apropriado, urina durante a sua canção de amor para ela à harmónica). A definição de Tom Logan de um regulador é “alguém que mata pessoas e nunca se aproxima delas.” Clayton estabelece a sua distância da humanidade em todos os pontos, recusando qualquer contacto pessoal: a sua primeira aparição insólita de baixo do pescoço de um cavalo é imediatamente seguida pela sua exibição teatral sobre o caixão do capataz. O seu domínio depende da distância: os seus binóculos e a sua espingarda Creedmore que consegue matar a quinhentas jardas[1]—daí o cabimento da sua morte, consigo e com Logan em espaço confinado, filmados em extremo grande plano.
Cada uma das suas matanças enfatiza a sua própria omnipotência distante e a vulnerabilidade humana das suas vítimas: uma abatida durante a cópula, uma enquanto defeca, etc. Ambos castrados (“nem sequer estás aí,” diz Logan, a espreitar para a espuma do banho de Clayton) e castradores, ele próprio termina (na grande tradição dos monstros do ecrã) vulnerável e patético mesmo continuando detestável. Em contraste com ele colocam-se, com uma hesitação comovente, como a vida contra a morte, as tentativas de Tom Logan em inventar por si próprio a jardinagem—o seu orgulho em salvar macieiras de pragas e em conceber um sistema primitivo de irrigação: uma façanha criativa simples que, para Clayton, “não vale um cuspo.”
[1] 457 metros. [N.d.t]
in «Times Educational Supplement», 23 de Julho de 1976.
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