quarta-feira, 25 de novembro de 2020

ESCRAVAS E LIVRES - Notas sobre as mulheres em alguns filmes de Walsh


por Jean-Pierre Coursodon

Sendo a diversidade uma das características mais marcantes da obra de Walsh, seria abusiva simplificação sugerir um retrato "tipo" da heroína walshiana. Contudo, há um traço comum (demasiado comum para que set rate duma "simples" coincidência) na maioria das suas personagens femininas: o desejo de independência, mais ou menos intenso, manifestado de diferentes maneiras, por vezes reprimido ou frustrado, mas muito raro inteiramente ausente. Apenas Hawks, talvez, entre os cineastas hollywoodianos clássicos, mostrou uma tal predilecção por mulheres "livres", ou que se esforçam por sê-lo. Mas em Hawks as heroínas, para se imporem, têm de integrar-se num universo masculino de que adoptam, ou pelo menos aceitam, as regras e os valores. Daí que se note uma certa virilização da mulher (exemplo extremo e célebre é a transformação, por Hawks, da personagem masculina de The Front Page numa personagem feminina) e o seu corolário, uma certa feminização, ou emasculação do homem (bem nítida principalmente em algumas comédias).

Nada disso em Walsh. Levadas naturalmente à independência, as suas mulheres não aspiram, por isso, a rivalizarem com os homens ou a substituirem-nos. Elas têm mesmo, com frequência, o papel educador, "civilizador" ou moderador que é o da mulher no cinema americano clássico (papel que Hawks ignora, geralmente de forma soberba; se por acaso cede à tradição - o fim de Red River, o resultado não é muito convincente). Notar-se-á também que a necessidade de independência caracteriza de forma indiferente, em Walsh, as personagens femininas conotadas de forma positiva ou negativa: good girls, bad girls e good-bad girls. Sendo parte integrante da personagem, ela não precisa de ser julgada ou classificada. Esta exigência de independência, que pode ir até à obsessão, cria no seio da obra walshiana uma certa tensão entre o discurso proto-feminista, que não pode deixar de gerar, e os códigos do cinema hollywoodiano tradicional que querem que a mulher tenda para a dependência e que não lhe escape senão à custa de riscos e perigos, perigos geralmente graves, por vezes mortais. Walsh tem de respeitar, pelo menos parcialmente, estes códigos, ao mesmo tempo que os contesta. É por isso que, sem dúvida com reticências, ele fará morrer a personagem de má esposa-mãe de Martha Vickers em The Man I Love (um carro atropela-a, sem qualquer necessidade dramática): embriagada de liberdade ela não pensava senão em "divertir-se". Pode-se imaginar Walsh dando razão ao marido aflito: "She wasn't a bad kid". Esta tensão, que não é o menor dos atractivos da obra de Walsh, ir-se-á intensificar na última parte da sua carreira, onde aumenta o número e a importância dos papéis femininos.

Todas as personagens de The Man I Love se definem pela relação com a independência: independência assumida e ferozmente protegida (Ida Lupino, caracterizada pela ausência de laços, a sua faculdade de ir livremente de cidade em cidade); independência perdida, de forma consentida (Andrea King, irmã de Lupino, esposa e mãe modelo que passa por várias provas) ou ressentida (Martha Vickers, a vizinha, apanhada demasiado jovem na armadilha do casamento e dos bebés - gémeos nos braços - e que sonha escapar); finalmente, independência precária e ameaçada da irmã mais nova que Lupino tenta "arrumar" apesar das suas reticências (livre mas não prosélita, Lupino dá-se conta que a independência não é a opção ideal para uma jovem introvertida e frágil). O casamento aparece aqui como a ameaça maior que pesa sobre a liberdade feminina: que a aceitem (Sally, a irmã mais velha), a receiem (a irmãzinha) ou se revoltem contra as suas consequências (Virginia, a vizinha), três das quatro mulheres têm, ou terão, de lhe sacrificar a sua independência. Lupino apenas conserva a sua à custa do celibato.

O título do filme refere-se simultaneamente à canção dos irmãos Gershwin (que Lupino interpreta, ou finge interpretar visto que é dobrada) e a uma personagem masculina que se poderia, a fazer fé no título, supor central (o homem que eu amo, o eu referindo-se, logicamente, à heroína), mas que de facto se revela marginal e erradio: porque uma mulher o fez sofrer, este pianista abandonou a música para correr mundo em barcos onde ocupa funções imprecisas[1]. Quando embarca de novo, deixando Lupino no cais (como vedeta do filme, é obrigatório que ela se apaixone), respiramos de alívio por ela. Num certo sentido, eles eram paradoxalmente feitos um para o outro, sendo ambos vagabundos incapazes de qualquer espécie de estabilidade (geográfica, sentimental, social...).

O título revela-se mais irónico se se considerarem as palavras da canção, palavras deliberadamente idiotas e ingénuas (era o talento particular de Ira Gershwin, nisso o contrário de um Cole Porter ou de um Larry Hart): "Um dia virá, o homem que eu amo/ E será grande e forte, o homem que eu amo/ E farei com que ele fique./ Construirá uma casinha/ Só para nós/ Donde jamais partirei/ Como poderia fazê-lo?/ E vocês?". É a expressão perfeita, beata, do arquétipo do sonho feminino da dependência, e de tudo o que a personagem de Lupino rejeita, pelo menos conscientemente: a canção poderia ser uma ocasião para exprimir sem se trair um desejo inconsciente (seria bem uma manifestação da ambivalência dos argumentistas, e da tensão acima evocada); a sua presença no filme, no meio de uma tal história, não é, de qualquer modo, inocente (Lupino canta também, ironia complementar, Body and Soul de Johnny Mercer, esse hino quase masoquista de abjecta dependência em relação ao ser amado).

A uma réplica de Lupino, em resposta a uma qualquer advertência masculina ("Deixem-me a responsabilidade de organizar o meu próprio funeral!"), faz eco, em The Tall Men, a de Jane Russell, que pede que lhe seja permitido "o direito de sonhar". Nella (Jane Russell) é de facto a personagem central do filme, apesar da presença de Clark Gable e Robert Ryan (ela hesita, ou finge hesitar, entre os dois), e apesar do título, que além disso cita (como no caso de The Man I Love) as palavras de uma canção, interpretada por Russell: "I want a tall man, not a small man". "A tall man", para Nella, é um homem cheio de ambições, de grande ambição; ela acha que Gable não a tem. Ele reconhece isso: "I have a small dream". Ele sonha com um pequeno rancho num remoto canto do Texas. Nella não quer ouvir falar disso: o seu sonho é californiano (isto é, como sempre nos westerns, o desconhecido, a aventura, a última fronteira, a perspectiva de sucesso, da riqueza). Ela evoca com um realismo sem ilusões os desgostos duma "vida de esposa de pequeno fazendeiro" - ela fala com conhecimento de causa, tendo visto a mãe envelhecida e quebrada prematuramente por uma tal existência, e a sua exposição é inteiramente convincente. Julie Ann (Dorothy Malone) em Colorado Territory tinha um discurso muito semelhante; e para o caso pouco importa que uma personagem seja "positiva" e a outra "negativa" (Julie Ann é a réplica da personagem de Joan Leslie em High Sierra, de que Colorado Territory é o remake como western).

A conclusão, previsível, de The Tall Men é uma concessão à tradição e às convenções: Nella, primeiro seduzida por Ryan que lhe promete uma vida de luxo, acaba por compreender onde se encontram os verdadeiros valores. Após a partida da cattle drive, Gable liberta-a simbolicamente de um corpete (oferecido por Ryan) que a impedia literalmente de respirar. Na versão final da canção-título, o tall man é, a partir de agora, Gable. Encontrar-se-á uma reviravolta semelhante no filme seguinte de Walsh, The Revolt of Mamie Stover, onde Jane Russell tem de novo um papel de jovem ambiciosa, obcecada pelo dinheiro e o sucesso, mas que, compreendendo o seu "erro", optará pela vida simples.

Num artigo definitivo sobre Walsh[2], Michael Henry sublinhava "a fantástica, a irresistível energia" de que as heroínas dos seus filmes são capazes. É que uma mulher não poderia ser livre passivamente. A independência nunca lhe é dada de uma vez por todas (supondo que um dia o seja), ela tem sempre de a conquistar. Uma tal conquista exige um vigor, um dinamismo e uma vitalidade permanentes. A grande liberdade sexual das heroínas de Walsh é uma das mais espectaculares formas de expressão que essa energia assume. Energia sexual, energia vital: não há diferença, para estas mulheres, entre liberdade sexual e liberdade pura e simples. Desde 1915, Walsh iria mergulhar no reportório conhecido para aí encontrar uma devoradora de homens sem complexos (Carmen, com Theda Bara, que se estreia no mesmo dia da Carmen de DeMille com Geraldine Farrar!); e reincide em 1927 com Loves of Carmen, onde Dolores Del Rio, sedutora predadora, acumula também as facécias desopilantes (ou que se pretendem como tal). Porque Walsh raramente resiste, principalmente no período mudo, ao seu gosto pela farsa, pela grande paródia. Cedendo com deleite ao cliché da mulher latina de temperamento vulcânico, ele encoraja Dorothy Burgess (In Old Arizona) ou Lili Damita (The Cock-Eyed World) à mais desenfreada exuberância. Podemos lamentá-lo (as cenas cómicas em What Price Glory? ou Cock-Eyed World, são tão numerosas que ocultam toda a tensão dramática); mas fazer palhaçadas, para as suas heroínas, é ainda uma forma de afirmarem a sua independência, a sua libertação do espartilho da decência em que a sociedade quer encerrar a mulher. A sua vulgaridade - como a sua sexualidade - faz parte do seu élan vital[3].

No limite, qualquer perda de independência constitui uma escravidão. A mulher é constantemente ameaçada por diversas formas de servidão que sendo por vezes douradas não são menos opressoras e alienantes. Não é de espantar, pois, que Walsh tenha sido atraído pelo romance de Robert Penn Warren Band of Angels, melodrama sulista onde a escravatura não é uma metáfora, mas bem real: a heroína, uma jovem da boa sociedade, perde de súbito a sua liberdade e identidade, quando se descobre, na sequência da morte do pai, que a mãe era negra. Ao mesmo tempo, o filme ilustra uma temática cara a Walsh: o conflito entre a sede de liberdade e o amor, que leva a mulher a abdicar da sua independência. Mal mergulha na ignomínia da servidão, Amantha é resgatada pelo gesto nobre do rico plantador sulista Hamish Bond (nome predestinado: "bond": laço, cadeia, e também compromisso, contrato; o escravo está encadeado ao senhor por um contrato social), que a compra (pela soma enorme de 5000 dólares - uma escrava branca vale o seu peso em ouro) e coloca numa situação privilegiada de quase-dona de casa. Mas nem por isso permanece menos prisioneira da sua condição: as grades da propriedade, as barras de ferro nas janelas, as chaves, tudo a recorda sem cessar; e quando quer fugir, é um outro escravo "privilegiado" que a apanha e a reconduz ao seu senhor. Na melhor tradição romanesca, Amantha vai a pouco e pouco apaixonar-se por esse senhor, primeiro desprezado e odiado. O amor faz tudo estremecer: quando Bond magnanimamente dá a liberdade a Amantha, enviando-a para o barco em que tentara embarcar algum tempo antes, ela regressa para ele no último momento, renunciando à independência que ele acabava de lhe dar. Em suma, a felicidade na escravidão. Em nome desse amor, não renuncia ela, desta vez voluntariamente, à sua identidade?

Graças ao contexto histórico e à custa de uma certa astúcia do argumento, Walsh consegue in extremis salvaguardar a identidade e a liberdade da heroína, e o seu amor. A vitória do Norte torna efectiva a abolição da escravatura no Sul vencido. Hamish e Amantha tornam-se (ou voltam a tornar-se), iguais, social e geneticamente. Reviravolta na situação: Hamish é preso pelo seu ex-escravo (Rau-ru, que ele salvara, em recém nascido, de um massacre, depois educara e ensinara como um filho, e que fará seu intendente), transformando em sargento no exército da União, que vai entregá-lo às autoridades nortistas. Traição? Não. Rau-ru sublinha, num confronto com Amantha, que o "bom" senhor é o senhor mais perigoso, porque, fazendo-se amar pelos seus escravos, priva-os do seu único privilégio: odiar o seu opressor. O bom esclavagista não existe. Amantha irá aceitar e assumir a sua "negritude", agora que ela não é mais (em princípio), uma marca infamante de inferioridade? Não. Às acusações de Rau-ru, ela riposta que Hamish é o único homem que ela amou e amará, e acrescenta: "E continuarei a viver, a partir de agora, uma vida branca" ("And I'll keep on living a white life from now on"). Ela reencontra Hamish em fuga (Rau-ru, finalmente, favoreceu a sua evasão deixando a chave nas algemas que lhe colocara); eles partem juntos numa barca em direcção a um navio amigo que os levará para ilhas longínquas, para a liberdade[4].

Os papéis femininos dominam a maior parte dos filmes do último período de Walsh, principalmente os mais interessantes: The Tall Men, The Revolt of Mamie Stover, The King and Four Queens, Band of Angels, Esther and the King mesmo nos seus filmes de guerra da época, Battle Cry e The Naked and the Dead) abundam as personagens de mulheres - pelo recurso ao flash-back no segundo - e pode-se sustentar que são os mais interessantes. Estas heroínas têm todas um ponto em comum: procurando escapar a uma condição social desfavorável e opressiva, dão provas de uma ambição (que pode ir até à cupidez: The Revolt of Mamie Stover, The King and Four Queens e uma combatividade a toda a prova. Em vários filmes, a heroína faz parte de um grupo feminino: as prostitutas de The Revolt of Mamie Stover, as quatro "rainhas" (três delas viúvas), as esposas de Assuérus em Esther. Estes grupos vivem sob o jugo de uma mulher mais velha, autoritária (a sogra de The King and Four Queens, a exploradora do dancing em The Revolt of Mamie Stover; em Esther será um eunuco) que lhes impõe uma reserva amorosa e sexual próxima da mais estrita castidade, disciplina particularmente frustrante se se consideram os sólidos apetites sensuais que em geral caracterizam a heroína walshiana.

As mulheres dominam, e não apenas em número, em The King and Four Queens, filme que tem tanto a ver com a fábula, como conto de fadas, como com o western tradicional. Já o título, com a sua referência ao cognome da vedeta masculina e a sua alusão ao poker, anuncia as intenções lúdicas da anedota. Recordemo-la: quatro raparigas casaram com quatro irmãos. Três deles foram mortos durante um assalto; um sobreviveu, mas ignora-se qual. Uma das quatro viúvas potenciais não o é de facto. A fim de garantir a sua fidelidade ao marido ausente e a honra da família, a mãe dos quatro bandidos, também viúva, monta uma guarda vigilante à volta delas, nunca se separando duma espingarda agressivamente fálica (ela representa o falo ausente). Ela é também a guardiã do tesouro escondido, fruto do assalto, que cada uma das suas noras cobiça. Estas são objecto de uma dupla frustração: o sexo e o dinheiro estão-lhes interditos. De facto, estes dois tabus funcionam mais ou menos como equivalente ou metáfora um do outro, ao longo do filme. Ele, também em busca do tesouro, recebido primeiro a tiro pela mãe, explora a atracção que as quatro "rainhas" sentem por ele, para fazer alianças sucessivas com cada uma delas, num esforço para descobrir o esconderijo do pecúlio; manobras aliás supérfluas, porque as mulheres precisam tanto dele como ele delas: a busca do tesouro torna-se pretexto para a busca do sexo, enquanto a intriga expunha o contrário ao começo. Quando um par verdadeiro se forma entre Gable e uma das mulheres, Sabina (que não é esposa de nenhum dos irmãos, mas uma aventureira que se faz passar por tal), o tesouro já não tem qualquer função na economia da narrativa: o sexo substitui o dinheiro. Gable, que finalmente o descobriu, entrega-o às autoridades e parte com Sabina, escapando ao domínio matriarcal.

Esta conclusão ecoa a de The Revolt of Mamie Stover, onde a heroína distribuía o dinheiro duvidosamente junto, antes de escapar ao domínio da exploradora do dancing deixando o Hawai; e a de The Tall Men, onde Nella rejeita a riqueza (e o domínio do homem rico) após tê-lo cobiçado. Conclusões "morais" previsíveis, de facto, mas desprovidas de qualquer intenção moralizadora aparente. Walsh considera estas personagens femininas com a mesma simpatia, antes e depois da sua "conversão" ao bom caminho. Poder-se-ia apostar que as prefere mais cúpidas e interesseiras do que virtuosas, não por indulgência para esses traços do carácter, mas porque eles acompanham essas pulsões iminentemente walshianas: a vontade de sobreviver e o amor da vida.

[1] É um desses músicos falsamente geniais, frequentes nos filmes da Warner da época: ouve-se martelar no piano arranjos "rapsódicos" tão grandiloquentes como insípidos. Está para Art Tatum como Kenny G. para John Coltrane, ou Liberace para Vladimir Horowitz.
[2] "Raoul Walsh, le roman du continent perdu", Positif nº 454, Dezembro de 1998.
[3] Algumas podem dar prova de uma agressividade infantil, cuja poderosa vitalidade, pela elegância paradoxal do seu estilo, apaga qualquer traço de vulgaridade; assim a maravilhosa personagem de Joan Bennett em Me and My Gal.
[4] O título original, Band of Angels, alude ao espiritual negro Swing Low, Sweet Chariot: «I looked over Jordan and what did I see?.../ A band of angels coming after me/ Coming to carry me home». Estes anjos libertadores são assimilados ironicamente por Hamish aos soldados nortistas.

Positif nº482, Abril de 2001.
Tradução de Manuel Cintra Ferreira

in «Raoul Walsh», Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, Lisboa, 2001 [org. Manuel Cintra Ferreira].

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