segunda-feira, 30 de janeiro de 2017
domingo, 29 de janeiro de 2017
quarta-feira, 25 de janeiro de 2017
quarta-feira, 18 de janeiro de 2017
BRAGA (2010)
Conheci o blog do José Oliveira quando estava no secundário, ainda longe de
tudo, meio perdido com esta coisa do cinema e dos filmes, que via por não
conseguir fazer as coisas como fazia toda a gente lá na escola, para alguma pena
minha. Era o remédio para essas falhas todas. Devo ter faltado a umas aulas ou
chegado atrasado por ficar a ver filmes na televisão até às tantas da madrugada.
Bizarrias do Carpenter ou do Cronenberg não faltavam. À Quarta havia o Dia C,
no Bragashopping, os filmes eram todos a 2 euros. Talvez eu e o Zé nos tenhamos
cruzado pelos corredores do Cinemax nesses anos sem o saber, para ver
qualquer filme do Anderson ou do Tarantino ou do Scorsese ou do Clint
Eastwood, quem sabe. Mas na altura fiquei surpreendido porque não sabia que
era possível falar assim sobre filmes - o choque não foi muito diferente do que
senti a ler as folhas da Cinemateca do João Bénard da Costa, pouco antes ou na
mesma altura. Havia uns livros cá em casa.
Já não consigo separar isso, também, da decisão de tentar isto do cinema, a
memória funciona assim. Lembro-me de ver ligações para os blogs do Felipe Medeiros, do Bruno Andrade, do Sérgio Alpendre, do Daniel Pereira,
comentários do Álvaro Martins, do João Gonçalves ou do Francisco Rocha (e depois ir dar também aos blogs deles) e aos poucos ir-se
abrindo um mundo novo e onde via uma espécie de resistência às tendinhas,
câmaras, aos lopes, augustos e vasconcelos deste mundo. E descobria o Hawks, o
De Palma, o Gray, o Coppola, o Moretti, o Fuller (depois o Cimino, o Fulci, o
Argento, o Pedro Costa, o Manuel Mozos, o Brisseau...)... Daí para o Pai Natal
(depois para o Ato Falho e para o Terça-Feira) foi um pequeno passo. Na altura
não tinha maneira de o ver mas já torcia pelo Zé por ter tanta razão e tanta fúria
na razão no que escrevia. Era assim que se tinha que escrever, era assim que se
tinha que encarar o mundo. Com coragem.
Depois vieram a Foco e os Encontros Cinematográficos, ainda na Guarda, que foi
quando o conheci através da Sabrina. Comecei a ver as curtas dele. O Dá-me uma
Gotinha de Água (2013) foi o primeiro que tocou, e muito. Com o Zé Lopes, a
Marta Ramos e a Maria Petersen numa espécie de cerimónia, lindíssima. O sol
parece que os vê e reduz o brilho em sinal de respeito mesmo antes de
começarem a cantar e deixa-os brilhar aos três. E o Zé estava lá para filmar isso.
E se calhar esteve lá o tempo que foi preciso para filmar isso. O Maio Maduro
Maio (2014) veio um bocado depois e é outro desses milagres, uma travessia
pelo espaço, pelos tempos e pelas memórias e com um plano longo e prodigioso
numa seara que mete o Sokurov todo num canto, e perdoem-me o sacrilégio mas
é nisso que acredito. Depois o Saddle the Wind, o Fala do Homem Nascido, o
Longe...
E antes disso tudo, Braga (2010). Oito planos que correspondem a quatro dias e
a quatro noites, olhando para as idas e vindas e passeios e melancolias e
correrias e deleites das pessoas que passaram à frente das lentes da câmara do
Zé, nesses dias. Um exercício de paciência de quem não passa sem querer olhar
para as coisas como merecem ser olhadas nem sem tentar retirar uma verdade
disso. Primeiros sintomas do que vem depois, quando o Zé já consegue encher os
seus planos com a beleza dos seres humanos. Primeiro, então, a beleza das
rotinas urbanas, seguindo máximas Lubitschianas e Fordianas. Lubitsch dizia
para filmar montanhas mas já não é possível, eram outros tempos. A máxima
aplica-se então a tentar encontrar o melhor ângulo e a melhor aproximação ou a
melhor distância para descrever movimentos. Ford costumava sentar-se com o
filho (se não me engano, não encontro a história, vai tudo de memoria) durante
umas horas e tentar descobrir, olhando para as pessoas que passavam, qual seria
a sua ocupação. Posturas e caras e modos de atravessar as ruas mostravam
sapateiros, banqueiros, advogados ou professores. Exercícios para depois se
filmar o mais difícil, o rosto humano. O plano do espelho de Longe talvez
carregue todo esse trabalho, perfeitamente concentrado e diluído.
E a ficar com um dos planos de Braga, fico com o dos miúdos a correr em círculo
na fonte da Praça do Município. Pensa-se sempre, muito mal, que para filmar
movimento a câmara se tem que mexer mas se neste caso se mexesse o
movimento era anulado e o plano, sim, tornava-se fixo, parado, chato. Assim,
como o Zé o filmou, está cheio de vida. O mesmo para o da ponte aérea à beira do
Braga Parque, demencial e caleidoscópico. Ainda o da ruela das Frigideiras,
triste, melancólico...
Antes da poesia, a prosa, que é como dizer: antes de Dá-me uma Gotinha de
Água, Maio Maduro Maio e Longe, Braga.
(texto publicado no Jornal do ciclo DAR A VER, realizado no Fundão)
quinta-feira, 12 de janeiro de 2017
A KING IN NEW YORK (1957)
por João Bénard da Costa
O primeiro filme de Chaplin que contem no título expressa referência aos Estados Unidos da América foi também o primeiro filme de Chaplin rodado fora da América. E é o seu penúltimo filme, o seu opus 80.
Aos 63 anos, a 17 de Setembro de 1952, Charles Chaplin, com a sua quarta mulher, Oona e quatro dos oito filhos que dela teve (os outros quatro nasceriam na Europa) embarcou em Nova Iorque, no "Queen Elizabeth", para cumprir a promessa feita aos seus compatriotas ingleses, de estrear em Londres Limelight. Dois dias depois, no alto mar, soube pela rádio que o Procurador Geral dos Estados-Unidos, James McGarnery, acabara de lhe cancelar o visto de entrada na América e ordenara aos serviços de imigração e naturalização que ele fosse detido para averiguações se - ou quando - tentasse voltar à América. A decisão foi tomada ao abrigo do parágrafo c) do capítulo 137 do Código Legal sobre Estrangeiros e Cidadania, que permitia vedar a entrada a estrangeiros "por razões morais, de saúde ou de insanidade" ou "por defenderem ideias comunistas ou pro-comunistas". Como diz David Robinson, na sua monumental biografia, isto queria dizer "por outras palavras, que Chaplin deixava de poder voltar ao país em que tinha vivido 40 anos e para o qual conquistara tanto amor e tanta honra".
Dias depois, ao desembarcar em Inglaterra (onde tinha nascido e aonde tinha vivido até aos 23 anos), Chaplin afirmou à multidão de jornalistas que o aguardava que ia voltar à América e defender-se das acusações. "Não quero preparar qualquer revolução. Tudo o que quero é fazer mais alguns filmes. Talvez façam rir as pessoas. Pelo menos, espero que façam... Nunca fui político. Não tenho convicções políticas. Sou um individualista e acredito na liberdade".
O citado Robinson sustenta que ele foi deliberadamente prudente. A sua imensa fortuna estava - toda - nos Estados Unidos. Estava aterrorizado com a ideia de que arranjassem maneira de lha confiscar.
Londres (e depois Paris) receberam-no em delírio e em delírio saudaram Limelight. Por toda a Europa, sucederam-se os protestos de nomes ilustres contra a perseguição a Chaplin. Na América, as opiniões dividiram-se, mas, no apogeu do maccarthysmo, a hostilidade era dominante.
Em Novembro, Oona, sozinha, voltou à América e em dez dias conseguiu levantar todo o dinheiro que tinham. No fim desse mês, após ter pensado voltado a viver no seu país natal, Chaplin decidiu fixar residência na Suíça, em Corsier sur Vevey, onde comprou, a um antigo embaixador americano, um belíssimo solar, rodeado por um enorme parque (Manoir de Ban). Nessa casa iria viver os últimos vinte e cinco anos da sua vida.
Em Abril de 1953, completada a mudança, Chaplin anunciou que nunca mais voltaria a viver nos Estados Unidos. E disse: "Poderosos grupos reaccionários espalharam mentiras e infames calúnias a meu respeito, e conseguiram, pela influência que detêm na imprensa americana, criar um ambiente doentio em que qualquer homem de ideias liberais pode ser vítima e perseguido. Nestas condições, cheguei à conclusão que me era virtualmente impossível continuar a minha obra cinematográfica na América e, por isso, decidi deixar de residir nos Estados Unidos". Um mês antes, tinha vendido a sua casa de Hollywood e o seu lendário estúdio, alegadamente por 700.000 dólares. Em Março de 1955, quebrou o último laço que o ligava à América, vendendo todas as suas acções da United Artists, a famosa companhia de que fora um dos fundadores, em 1919. Pela mesma altura, Oona renunciou à nacionalidade americana e naturalizou-se inglesa.
Em menos de três anos, perfez-se pois, o processo de ruptura que se iniciara a seguir à guerra e que entrara em fase aguda após a estreia de Monsieur Verdoux, em 1947. Chaplin tornou-se na mais célebre vítima do maccarthysmo e na bandeira mais utilizada pela violenta propaganda anti-americana desses anos. Com os Rosenberg, Oppenheimer e tantos outros menos famosos, tornou-se o rosto visível de uma paranóia persecutória que, nesses anos, surgia à esquerda europeia (e mundial) como prova da perversidade intrínseca do capitalismo americano. Hoje, com a necessária distância, sabemos que por mais repugnante que tenha sido essa histeria, nada era em comparação com o que se passava a leste, onde, por esses mesmos anos, Estaline morria. Mas sobre isso, salvo honrosas excepções, essa mesma esquerda mantinham-se silenciosa. Era o "ar do tempo".
A introdução vai longa mas era necessária para situar este filme, típico produto desse "ar do tempo". Anunciado como "mais ou menos um musical", rodeado pelo sigilo habitual em Chaplin, em 1955 começou a transpirar que este ia ajustar contas com a América, numa sátira tão impiedosa quanto a que, quinze anos antes, dedicara a Hitler e Mussolini. Houve muita gente que tremeu e fez-se toda a espécie de pressões para que Chaplin não levasse por diante esse intento. Tanto mais que entre 1955 (anúncio do projecto) e 1956 (ano das filmagens), muita coisa mudara - e mudara aparatosamente - na América e no mundo.
Em 1954, Joseph McCarthy, o homem da caça às bruxas, caiu em desgraça, tão subitamente como à graça havia ascendido em 1949. Num célebre programa televisivo, tentou convencer alguns generais que os americanos tinham perdido a Guerra da Coreia porque metade das forças militares americanas estavam a soldo da União Soviética. Chegou mesmo a insinuar que o próprio Presidente - o General Eisenhower - era suspeito. Não tinha ele combatido ao lado dos russos durante a Segunda Guerra Mundial? Perante tal dislate, muitos compreenderam, por fim, a demagogia do Senador. A opinião pública, farta do ambiente opressivo, reagiu implacavelmente. O desanuviamento começou, ajudado pelo início, na URSS, da era Krustchev e da "destalinização". Em 1956, Eisenhower, reeleito Presidente, iniciou a era da chamada "coexistência pacífica", que alterou sensivelmente o clima da "guerra fria". Das muitas profecias contidas no filme, a que se revelou mais verdadeira é que tudo não passava de uma fase que acabaria por passar. Passou. E passou tanto que quando o filme se estreou - em 1957 - já não teve o efeito de "bomba" que tantos tinham desejado e outros tantos receado.
Mas deve-se dizer, em abono da verdade, que Chaplin nunca foi tão cego ou tão ressentido que se não desse conta das diferenças que separavam Hitler de Truman, a Alemanha nazi da América de McCarthy. Por o saber - e por temer que o seu próprio envolvimento nessa "história" o levasse a uma obra excessiva - introduziu muitas distâncias no projecto que começou por se chamar The Ex-King. A essas distâncias acumularam-se muitas inseguranças. Pela primeira vez, desde os anos 20, Chaplin filmou longe do seu ambiente habitual, fora do estúdio de que fôra dono e senhor omnipotente e sem a sua "corte" de técnicos e funcionários que lhe conheciam cada gosto e mania "no "cast" só o produtor associado, Jerry Epstein, era um antigo colaborador dele). À partida, Chaplin sabia que o filme não tinha hipóteses de distribuição comercial na América (só lá se estreou em 1976) o que limitava as suas plateias a metade do mundo que admirara a sua obra precedente. Finalmente, havia cada vez mais críticos que o achavam "ultrapassado" e, sobretudo, havia uma geração que o ignorava. "I mean it to be so up-to-date and modern but perhaps I don't quite understand it", foi uma frase de Chaplin em resposta a alguns ecos desfavoráveis. E é sintomático que, depois de A King in New York, Chaplin se tenha virado outra vez para a figura de Charlot. Remontou e musicou novas versões de alguns dos mais amados êxitos do Vagabundo (The Chaplin Revue, que foi distribuído em 1959), começou a escrever a sua famosa autobiografia (publicada em 1964) e anunciou um filme (que nunca fez) em que Charlot voltava. "I was wrong to kill him. There was room for the Little Man in the atomic age".
No entanto, se A King in New York não foi um grande sucesso público, críticos e cineastas defenderam-no muito. Ficou célebre, no mundo do cinema, a saudação de Rossellini: "É o filme de um homem livre".
É essa liberdade que, hoje, apetece um pouco questionar. Porque, apesar de tudo, Chaplin usou muitas precauções neste filme.
Em primeiro lugar, há a considerar a escolha que fez do papel do rei para si próprio. É uma escolha ambígua. Por um lado, Chaplin parece querer identificar-se, como se nos dissesse que era tão absurdo considerar a hipótese de um rei comunista como considerar a hipótese dele próprio ("rei de Hollywood e multi-milionário) ser comunista. Ou seja, a escolha da realeza (o vagabundo transformado em rei) parece deliberada para demonstrar até que ponto podia ir o delírio persecutório e para colocar a sua personagem - como ele próprio - acima de toda a suspeita.
Mas, mesmo nesses estatuto, e mesmo com essa verosímil intenção, a grandeza de Chaplin não o deixou cair na facilidade de um monarca altruísta e desinteressado. Muito pelo contrário: o Rei Shahdov, do imaginário reino da Estrovia, está longe de ser um personagem nobre e idealista. Pelos planos iniciais (aliás dos melhores deste filme desconcertante e insólito) advínhamos que Shahdov fora um rei pouco amado e bem pouco democrático (o boneco com a sua efígie que a multidão brande). Em "off", vai dizendo que uma das maiores chatices da vida moderna são as revoluções. Chegado à América, ri-se do seu povo ("we fooled them") e só pensa no dinheiro que conseguiu sacar (o que não deixa de ser autobiográfico). Trata com complacente cinismo (e alguma amargura) a rainha e o casamento que o exílio lhe permite desfazer. Revela-se femeeiro e cai com facilidade nas armadilhas de Dawn Addams. E, quando se sabe arruinado, pouco tempo resiste aos "degradantes" convites da televisão americana. Para ganhar dinheiro, sujeita-se a tudo, até a essa inenarrável operação estética que dá lugar a um dos melhores "gags" do filme (o ataque de riso do rei e o "lifting" a estoirar). Se é certo que terá tido um plano para consagrar a energia atómica a fins pacíficos, o seu interesse nos mesmos planos nada tem de redentor. O rei é venal, o rei é cobarde (o susto e a fuga perante os supostos agentes do FBI), o rei não resiste a saias, o rei não resiste a cheques. Mais ou menos, são traços que foram sempre imputados a Chaplin e que ele assume com uma crueldade que se vira, sobretudo, contra a personagem que interpreta e, através dela, contra si próprio.
O momento capital (porventura o mais assombroso momento deste filme) é o da sua declamação do monólogo de Hamlet. Para lá do tom que escolhe ("bombastic way") Chaplin detem-se no verso famoso "Thus conscience does makes cowards of us all". Ao chegar à palavra "consciência", os copos partem-se e o rei diz que perdeu o fio à meada. Mas o fio é claro na assunção dessa cobardia que, depois, tanto o leva a recear o interrogatório da Comissão. E o famoso "gag" do elevador só sublinha até que ponto ele se sabe enrolado nas malhas que tece.
Só que o filme não é apenas a história de um rei em Nova Iorque. É também a história de Rupert Macabee, o miúdo comunista. Pela segunda vez, na sua obra (a primeira fora em The Kid) Chaplin escolheu uma criança para seu par. Se, em The Kid, Jackie Coogan era um pouco o seu prolongamento, neste filme é o seu contra-campo. É através dele (desde a fabulosa discussão na escola) que o rei vai ganhando a tal "consciência" que o fez parar. É o miúdo quem lhe ensina que a América não é um país livre, é o miúdo quem não foge diante das palavras ("Are you a communist? Yes, I am, sir") e é o miúdo quem lhe dá a única lição de amor. Quando o rei lhe objecta que ele odeia muita coisa, o miúdo responde-lhe: "I don't hate you". E o momento supremo - a moral da fábula - está na última visita do rei ao miúdo, quando sabe o que a Comissão fez dele e como o obrigaram a denunciar pessoas. Por isso (sequência final do avião) parte sem olhar para trás e sem, sequer, um último olhar para o país que quebrou o único ser moral que com ele se cruzou.
Não é o rei o herói do filme. Não é Charles Chaplin (como o foi o barbeiro do Ditador) o resistente. O herói, no sentido moral, o resistente é essa criança. Será por acaso que ela foi interpretada por Michael Chaplin, o filho de Charles Chaplin, nessa altura com 10 anos? Pensar nesta questão é talvez ir ao cerne deste filme, efectivamente, o testamento de Chaplin.
Porque a obra que ainda faria - A Countess from Hong Kong - por muito grandes que sejam os seus méritos (e eu defendo-a apaixonadamente) já se situa noutro plano. O plano de Charlot, quer como Vagabundo, quer como Hinkel, quer como Verdoux, quer como Calvero, termina aqui. No papel dual, personificado pelo ex-rei da Estrovia e por Rupert Macabee, o miúdo comunista. As lágrimas de Rupert e o silêncio do rei.
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terça-feira, 3 de janeiro de 2017
Vincente Minnelli: Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse. O tempo e as mudanças
por Jorge Silva Melo
Olhemos para um plano que surge a meio do filme. Ingrid Thulin (maravilhosa) e Glenn Ford passeiam à noite em Paris, aproximam-se de uma caleche, beijam-se, ela sobe. É um simples e lento travelling de recuo em que vamos vendo as duas personagens, o muro do Sena, umas árvores, o luar no rio. Até aí, todo o plano - melancólico, tenso, irresoluto, silencioso - é cinzento, azul, prata. Chegam à caleche e o lado esquerdo do enquadramento é invadido pelo muito vermelho cabedal da carruagem. E eles beijam-se. Ela, casada e admirando o marido, interrompe o beijo e sobe para a caleche. Panorâmica de acompanhamento que faz com que todo o vermelho tinja o écran, sangue da alma da Thulin esparramando-se a nossos olhos, sobre o nosso coração.
Plano maravilhoso sobre o qual se podia ficar a falar horas. E plano tão de Minnelli. Ele pega numa cena que é feita de lugares-comuns: namorados que ainda não sabem que o são passeiam melancolicamente perplexos, não só em Paris mas no lugar-comum de Paris, as margens do Sena ao luar. E o seu estado de alma é dado pelo ritmo muito lento do plano, e pelo fundo: o Sena prateado, e depois o vermelho do assento. O que é tocante neste plano é que estes clichés da representação são acoplados, é que nele se passa do cinzento das almas ao rubro da paixão. O assunto do plano é o que nesse deambular turístico mudou nas personagens, o que é filmado é o tremor das suas almas. E assim é que o filme fala do tempo e das mudanças.
Vindo do musical e obcecado pela pintura impressionista, Minnelli não hesita perante o lugar-comum. Põe personagens a falar com a Notre-Dame ao fundo, põe o avô a morrer debaixo de uma chuva torrencial e com relâmpagos "à deixa", põe o nazi interpretado por Karlheinz Boehm a declarar-se nazi com uma aterradora lareira atrás, põe Thulin e Ford a passearem em Versalhes sobre as tão convencionais, e tão lindas, folhas mortas de um Outono dos anos 30. Os veludos são vermelhos nos seus filmes, o fogo arde como as paixões e as guerras, as personagens, se estão em Paris - e nos seus filmes estão muitas vezes na Europa -, estão numa Paris que eu chamaria de bilhete postal se eu não achasse tão verdadeiros os bilhetes postais. No seu maravilhoso filme sobre Van Gogh, este irá mesmo mover-se dentro dos seus quadros, cuidadosamente reconstruídos, vinhetas.
Esta estilização sem medo, este tratamento emblemático do cenário, da situação e da cor tem, é claro, a ver com a necessária convenção do filme musical - e é pelo musical que Minnelli descobre que o cinema, "arte grosseira" que não aguenta duas ideias ao mesmo tempo (ao contrário da poesia, com a qual tanto tem a ver), só tem a ganhar com a simplificação das figuras de retórica - a que só o tempo e a maneira irão dar luz.
E é disso mesmo que Minnelli tem consciência quando, em 1961, mais interessado em namorar pela Europa aquela que iria ser a sua terceira mulher, aceita, sem entusiasmo, a encomenda da Metro, de fazer uma nova versão do romance de Blasco Ibañez cuja adaptação, em 1921, tanto contribuira para a glória de Rodolfo Valentino. Na sua (tão decepcionante!) autobiografia, conta como tentou opôr-se à transposição da intriga para a 2ª Guerra Mundial ("um argentino vivendo em Paris podia ser neutro em 1914, mas não em 1939"), acha que não tem tempo para a preparação de um filme que custa 25.000 dólares (da altura) por dia, que vai acabar por ter 15.000 figurantes, 90 décors, 250.000 toneladas de equipamento militar, 5 meses de rodagem e é o seu filme mais longo. E acha que Glenn Ford não é o actor indicado.
"Eu queria", conta ele, "ser posto à prova, mas àquele ponto, não. Mas, já que tinha que fazer o filme, mais valia desenvolver o aspecto visual e épico da narrativa, relegando as fraquezas da história para segundo plano."
Que melhor declaração de guerra maneirista? Minnelli aceita filmar um romance tardo-naturalista (Blasco Ibañez, o de Sangue e Arena), adaptado de uma maneira com a qual não concorda, aceita uma série de imposições de produção, tem que filmar sentimentos que ele acha desenraizados de uma história que os permitiria. Aceita porque os quer tratar. E o resultado é um filme paroxístico à imagem do falso "gótico tardio" (ou Napoleão III?) em que mandou criar as figuras dos cavaleiros - Conquista, Guerra, Peste e Morte -, que utiliza "como parte integrante da narrativa para além do seu valor simbólico".
Este Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse é um filme flamejante: da lareira ao vento, da chuva aos corpos, dos automóveis a toda a brida pelos Campos Elíseos, das galinhas que, no convencional campo francês, saltam muros com o suto (que plano!), da alma de Ingrid Thulin às folhas mortas de Versalhes, da consciência de Glenn Ford (maravilhoso actor, basta vê-lo, aqui, e na Corrupção, de Lang), tudo está num desequilíbrio febril, num excesso de tensão, numa latência de pulsões que só é possível - e voltamos ao princípio desta reflexão - por serem do senso comum, banais, cansados, conhecidos de todos, puros lugares-comuns os fios folhetinescos e, se calhar, simplistas de que se tece a teia.
Se há filme que prova que o cinema não é um argumento é este (e mais dois milhões de outros!). Um filme é uma maneira de olhar o mundo. E pode partir (Minnelli acha que deve) de uma representação convencional, pode até partir de uma visão redutora e simplista, pode até partir de lugares-comuns, pode partir de contratos fortuitos. (Como a pintura religiosa, por exemplo, a partir de cujos motivos feitos tanto pôde ser dito.) O que não pode é deixar de trabalhar formalmente os seus meios, o que não pode é limitar-se a ilustrar.
E se a infernal rede de sentidos que Minnelli constrói neste filme nos empolga (e o filme é empolgante), é apenas porque Minnelli sabe que é a realização, a mise-en-scène, o que complexifica e torna o cinema cinema. Ele é realizador.
Vejam o plano sublime em que a Thulin e Ford dançam no cabaré latino, a maneira franca como, pela dança, cada um deles vai ficando em grande plano frontal, prefigurando os famosos grandes-planos do Persona de Bergman, e, a meu ver, com uma bem mais imponderável suspensão do tempo.
Espanta-se Minnelli dos elogios ("o triunfo da cor, a pura mise-en-scène") que o filme recebeu um pouco por toda a Europa; parece compreender as acusações da crítica americana ("argumento inconsequente", "realização amaneirada"). Só se reconcilia com o filme quando diz que há, hoje em dia, quem pense que ele influenciou "três filmes extraordinários que são Os Malditos de Visconti, O Conformista de Bertolucci, O Jardim dos Finzi-Contini de De Sica." É evidente que os influenciou. Só que nenhum desses filmes é extraordinário - e o de Minnelli é.
Porque ele trata o "lugar comum" como um ícone?
in Século Passado
Plano maravilhoso sobre o qual se podia ficar a falar horas. E plano tão de Minnelli. Ele pega numa cena que é feita de lugares-comuns: namorados que ainda não sabem que o são passeiam melancolicamente perplexos, não só em Paris mas no lugar-comum de Paris, as margens do Sena ao luar. E o seu estado de alma é dado pelo ritmo muito lento do plano, e pelo fundo: o Sena prateado, e depois o vermelho do assento. O que é tocante neste plano é que estes clichés da representação são acoplados, é que nele se passa do cinzento das almas ao rubro da paixão. O assunto do plano é o que nesse deambular turístico mudou nas personagens, o que é filmado é o tremor das suas almas. E assim é que o filme fala do tempo e das mudanças.
Vindo do musical e obcecado pela pintura impressionista, Minnelli não hesita perante o lugar-comum. Põe personagens a falar com a Notre-Dame ao fundo, põe o avô a morrer debaixo de uma chuva torrencial e com relâmpagos "à deixa", põe o nazi interpretado por Karlheinz Boehm a declarar-se nazi com uma aterradora lareira atrás, põe Thulin e Ford a passearem em Versalhes sobre as tão convencionais, e tão lindas, folhas mortas de um Outono dos anos 30. Os veludos são vermelhos nos seus filmes, o fogo arde como as paixões e as guerras, as personagens, se estão em Paris - e nos seus filmes estão muitas vezes na Europa -, estão numa Paris que eu chamaria de bilhete postal se eu não achasse tão verdadeiros os bilhetes postais. No seu maravilhoso filme sobre Van Gogh, este irá mesmo mover-se dentro dos seus quadros, cuidadosamente reconstruídos, vinhetas.
Esta estilização sem medo, este tratamento emblemático do cenário, da situação e da cor tem, é claro, a ver com a necessária convenção do filme musical - e é pelo musical que Minnelli descobre que o cinema, "arte grosseira" que não aguenta duas ideias ao mesmo tempo (ao contrário da poesia, com a qual tanto tem a ver), só tem a ganhar com a simplificação das figuras de retórica - a que só o tempo e a maneira irão dar luz.
E é disso mesmo que Minnelli tem consciência quando, em 1961, mais interessado em namorar pela Europa aquela que iria ser a sua terceira mulher, aceita, sem entusiasmo, a encomenda da Metro, de fazer uma nova versão do romance de Blasco Ibañez cuja adaptação, em 1921, tanto contribuira para a glória de Rodolfo Valentino. Na sua (tão decepcionante!) autobiografia, conta como tentou opôr-se à transposição da intriga para a 2ª Guerra Mundial ("um argentino vivendo em Paris podia ser neutro em 1914, mas não em 1939"), acha que não tem tempo para a preparação de um filme que custa 25.000 dólares (da altura) por dia, que vai acabar por ter 15.000 figurantes, 90 décors, 250.000 toneladas de equipamento militar, 5 meses de rodagem e é o seu filme mais longo. E acha que Glenn Ford não é o actor indicado.
"Eu queria", conta ele, "ser posto à prova, mas àquele ponto, não. Mas, já que tinha que fazer o filme, mais valia desenvolver o aspecto visual e épico da narrativa, relegando as fraquezas da história para segundo plano."
Que melhor declaração de guerra maneirista? Minnelli aceita filmar um romance tardo-naturalista (Blasco Ibañez, o de Sangue e Arena), adaptado de uma maneira com a qual não concorda, aceita uma série de imposições de produção, tem que filmar sentimentos que ele acha desenraizados de uma história que os permitiria. Aceita porque os quer tratar. E o resultado é um filme paroxístico à imagem do falso "gótico tardio" (ou Napoleão III?) em que mandou criar as figuras dos cavaleiros - Conquista, Guerra, Peste e Morte -, que utiliza "como parte integrante da narrativa para além do seu valor simbólico".
Este Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse é um filme flamejante: da lareira ao vento, da chuva aos corpos, dos automóveis a toda a brida pelos Campos Elíseos, das galinhas que, no convencional campo francês, saltam muros com o suto (que plano!), da alma de Ingrid Thulin às folhas mortas de Versalhes, da consciência de Glenn Ford (maravilhoso actor, basta vê-lo, aqui, e na Corrupção, de Lang), tudo está num desequilíbrio febril, num excesso de tensão, numa latência de pulsões que só é possível - e voltamos ao princípio desta reflexão - por serem do senso comum, banais, cansados, conhecidos de todos, puros lugares-comuns os fios folhetinescos e, se calhar, simplistas de que se tece a teia.
Se há filme que prova que o cinema não é um argumento é este (e mais dois milhões de outros!). Um filme é uma maneira de olhar o mundo. E pode partir (Minnelli acha que deve) de uma representação convencional, pode até partir de uma visão redutora e simplista, pode até partir de lugares-comuns, pode partir de contratos fortuitos. (Como a pintura religiosa, por exemplo, a partir de cujos motivos feitos tanto pôde ser dito.) O que não pode é deixar de trabalhar formalmente os seus meios, o que não pode é limitar-se a ilustrar.
E se a infernal rede de sentidos que Minnelli constrói neste filme nos empolga (e o filme é empolgante), é apenas porque Minnelli sabe que é a realização, a mise-en-scène, o que complexifica e torna o cinema cinema. Ele é realizador.
Vejam o plano sublime em que a Thulin e Ford dançam no cabaré latino, a maneira franca como, pela dança, cada um deles vai ficando em grande plano frontal, prefigurando os famosos grandes-planos do Persona de Bergman, e, a meu ver, com uma bem mais imponderável suspensão do tempo.
Espanta-se Minnelli dos elogios ("o triunfo da cor, a pura mise-en-scène") que o filme recebeu um pouco por toda a Europa; parece compreender as acusações da crítica americana ("argumento inconsequente", "realização amaneirada"). Só se reconcilia com o filme quando diz que há, hoje em dia, quem pense que ele influenciou "três filmes extraordinários que são Os Malditos de Visconti, O Conformista de Bertolucci, O Jardim dos Finzi-Contini de De Sica." É evidente que os influenciou. Só que nenhum desses filmes é extraordinário - e o de Minnelli é.
Porque ele trata o "lugar comum" como um ícone?
Público, 18 de Fevereiro de 1995
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