terça-feira, 7 de julho de 2020

OBJECTIVE, BURMA! (1945)


1945 – USA (142') ● Prod. Warner (Jerry Wald) ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Ranald MacDougall e Lester Cole, a p. de uma história de Alvah Bessie ● Fot. James Wong Howe ● Mús. Franz Waxman ● Int. Errol Flynn (capitão Charles R. Nelson), William Prince (tenente Sydney Jacobs), James Brown (sargento John Treacy), George Tobias (cabo Gabby Gordon), Henry Hull (Mark Williams), Warner Anderson (coronel J. Carter), John Alvin (Charles Hogan). 

Há dois anos que o general Stilwell foi expulso da Birmânia pelos japoneses, barrando assim aos americanos o caminho para a China. O exército preparou activamente a reconquista do país. Como prelúdio a essa acção, um grupo de soldados, sob a direcção do capitão Nelson, é enviado de pára-quedas para a selva. Têm como missão a destruição de uma estação de radar não suficientemente localizada para ser bombardeada. Um jornalista, Mark Williams, acompanha os homens. É muito mais velho que eles e salta de pára-quedas pela primeira vez na vida. O grupo ataca a estação de surpresa, dizima os soldados japoneses que estão a almoçar e faz explodir todas as instalações com TNT. Esta primeira parte da missão, completamente bem sucedida, foi quase ridiculamente fácil de cumprir. Mas agora é preciso voltar e as dificuldades começam. O avião que devia levar os soldados para a base é constrangido a dar meia-volta porque chegam uma centena de japoneses e Nelson pede pelo rádio que se anule a aterragem. Dois dias mais tarde, e depois de quarenta e cinco quilómetros de marcha lenta e cansativa na selva, tem lugar o primeiro envio de mantimentos por pára-quedas. Antes disso os homens tinham-se dividido em dois grupos. Nelson descobre que não vai poder ser levado com os seus homens de avião porque não há mais nenhuma pista de aterragem utilizável na região. Os soldados vão ser reabastecidos a cada quatro dias. O grupo de Nelson encontra os dois únicos sobreviventes do outro grupo, vítima de um massacre apavorante. Os homens chegam a uma aldeia birmanesa, abandonada na mesma manhã pelos japoneses. Matam os sentinelas ainda presentes e descobrem os corpos atrozmente torturados dos seus camaradas. Um moribundo suplica a Nelson que lhe acabe com o sofrimento e morre a falar com ele. Depois de um tiroteio, os americanos escapam aos japoneses que voltaram a aparecer na aldeia e deixam mortos no terreno. Durante o segundo envio de mantimentos, Nelson recebe novas ordens: é preciso abandonar o caminho de regresso para a base e avançar para norte. Os soldados não têm tempo para levar as caixas de abastecimento porque os japoneses, posicionados para uma emboscada, disparam sobre eles. Avançam dolorosamente pela selva, atravessam rios e não conseguem sinalizar a sua presença a um avião que os procura. O velho jornalista, esgotado com a fadiga, começa a perder a razão. Os soldados escalam uma colina, local do ponto de encontro estabelecido pelas novas ordens. Não há nada em redor e isso desespera-os. Encontram o jornalista morto. Graças a um pequeno vidro de bolso, Nelson assinala a sua presença a um avião que envia mantimentos de pára-quedas. Mas os japoneses avistaram o grupo e, quando cai a noite, atacam a colina. Falando em americano, um deles arma uma cilada a um soldado e mata-o. Mas o seu companheiro não cai na armadilha e livra-se do japonês com uma granada. A luz de uma tocha ilumina os japoneses no sopé da colina. Sofrem perdas severas e abandonam o terreno. No dia seguinte, de manhã, o grupo vê uma multitude de aviões a invadir o céu birmanês. «Estão a chover pára-quedas!» grita um soldado. Nelson contacta o seu superior e entrega-lhe um punhado de chapas de identificação, dos soldados que pagaram com a vida a destruição da estação de radar. Entra no avião com os seus homens. 

► Uma das enormes obras-primas de Walsh e a obra-prima do filme de guerra americano (com Os Nus e Os Mortos do mesmo Walsh e Bravos até ao Fim de Fuller). Em dois dos filmes anteriores com Errol Flynn, Walsh tinha retratado a guerra como um jogo (Desperate Journey) e como uma oportunidade insólita e inesperada para a redenção individual (Uncertain Glory). Em Objective, Burma! ele mostra-a como uma aventura colectiva grave e mobilizadora de todas as energias. A interpretação de Flynn, sem floreios nem ironia, situa-se à imagem dessas intenções. Está aqui o triunfo absoluto da arte clássica em que o concreto e o abstracto, a descrição analítica e sintética da realidade, o emprego dos grandes planos e dos planos gerais, as figuras de estilo e o espetacular se harmonizam na perfeição e dão lugar a uma obra que, realizada a quente, num contexto e com objectivos militares precisos, alcança imediatamente a intemporalidade. Daqui a cinquenta anos vai-se ver esta obra com a mesma admiração que inspira hoje em dia. O filme é fascinante pelo génio com que Walsh decompõe constantemente as diferentes fases de uma acção, as diversas reacções daqueles que as realizam, para as recompor quase imediatamente dando uma visão global dessa acção e da atitude física e mental dos combatentes. Quer se trate das múltiplas atividades do acampamento interrompidas pelo anúncio de um briefing daqui a uma hora; da calma, do nervosismo ou da ansiedade dos pára-quedistas antes de um salto; desse mesmo salto; as diversas atitudes dos soldados parente a fadiga, o perigo e o desânimo ou uma renovação de esperança e de energia, Walsh opera uma síntese da realidade que engloba todos os seus aspectos sem privilegiar nenhum de forma artificial. Certo, o filme não esconde que é a descrição de uma vitória ainda não totalmente conquistada. Com uma sobriedade surpreendente (e que corta com o tom um bocado pomposo dos filmes de guerra da altura), Walsh mostra-nos essa vitória em gestação, e mais do que em gestação, na solidariedade profunda e tangível dos membros da equipa e do seu líder. Cada um deles, tanto por vontade própria como por necessidade visceral de sobreviver, funde-se com o grupo e com o processo da acção a realizar. Dando a cada personagem as suas características próprias, Walsh afasta-se do pitoresco fordiano bem como dessas pontuações neuróticas que abundam no filme de guerra hollywoodiano dos anos 50. No próprio coração do combate levado a cabo pelo seu país, pretende testemunhar que o perigo, a urgência, a vontade de sobrevivência e a coragem suscitam, na célula salubre que escolheu para examinar, reacções imunitárias contra os riscos de destruição interna e reacções de agressividade contra o inimigo externo. Também quer mostrar que, nos dois casos, essas reações são suficientemente poderosas para alcançar a vitória. Uma parte de esperança e uma parte de realismo (uma parte de sobrenatural cósmico, igualmente, sensível na maneira de filmar e apreender a Natureza) animam também esta obra em que Walsh, graças aos seus talentos de cronista, pintor e poeta épico, conseguiu captar o instante com um imenso recuo e conferir a uma página da história imediata os acentos da eternidade. 

N.B. O filme foi amputado frequentemente nas suas várias reposições. A cassete comercial da Warner Home Video apresenta a duração original do filme em v.o. legendada (sob o título de Objective, Burma!). Excelente restituição da fotografia de James Wong Howe.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

UNCERTAIN GLORY (1944)


1944 – USA (102') Prod. ● Warner (Robert Buckner) ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Laszlo Vadnay e Max Brand a p. de uma história de Joe May e Vadnay ● Fot. Sid Hickox ● Mús. Adolph Deutsch ● Int. Errol Flynn (Jean Picard), Paul Lukas (Marcel Bonet), Jean Sullivan (Marianne), Lucile Watson (Sra. Maret), Faye Emerson (Louise), James Flavin (capitão das guardas móveis), Douglas Dumbrille (comissário), Sheldon Leonard (Henri Duval). 

França, 1943. Condenado à morte por múltiplos roubos e um homicídio, Jean Picard, um malfeitor endurecido, avança para a guilhotina. Um ataque aéreo à fábrica vizinha dá-lhe a possibilidade de fugir. Vai para casa de Henri, um antigo cúmplice, para lhe pedir dinheiro e documentos falsos. Seduz a amante dele illico presto fazendo-se passar por um grande resistente. Parte com ela para Bordeaux onde o seu velho inimigo, o inspector Bonet, que o persegue há quinze anos, o apanha e lhe põe algemas. Bonet foi informado por Henri. No comboio que os leva para Paris, Picard e Bonet descobrem que depois da sabotagem de uma ponte a Gestapo aprisionou cem reféns e os vai executar se o sabotador não se entregar. Picard pensa subitamente que preferia morrer diante do pelotão de fuzilamento com as honras do que sob o cutelo da guilhotina. Sugere a Bonet que o permita fazer-se passar por esse sabotador. Salvaria assim a vida de cem inocentes. Bonet ao princípio recusa, pensando numa armadilha, depois a ideia percorre-lhe o espírito. Picard e Bonet instalam-se no hotel da vila onde os reféns foram capturados. Bonet prepara a eventual rendição de Picard à Gestapo e anuncia aos seus superiores que Picard se afogou durante uma tentativa de fuga. Picard torna-se Jean Émile Dupont, sabotador e resistente. O prazo fixado pela Gestapo até à execução dos reféns termina em três dias. Picard suplica a Bonet que lhe dê esses três dias. Conheceu Marianne, uma jovem comerciante da vila, que convidou para um piquenique à beira da água. Bonet é levado a salvar o verdadeiro sabotador fazendo-o passar por um dos seus homens. O sabotador indica-lhe a ele bem como a Picard como fez para explodir a ponte apesar da vigilância dos alemães. Picard fará notar a Bonet que desperdiçou voluntariamente uma hipótese de se libertar deixando o sabotador escapar à Gestapo. Ainda vai deixar passar outras oportunidades para fugir. Mas uma noite, enquanto Bonet está doente, Picard desaparece. No mesmo momento os habitantes da vila preparam-se para executar um plano preparado há já algum tempo e que consiste em acusar Picard de ser o sabotador da ponte. O padre da vila desvia-os do seu projecto. Marianne avisa Picard do perigo e acompanha-o na fuga dele. São acolhidos por um casal de camponeses cujo filho é um dos reféns. Picard anuncia a Marianne que vai sozinho a Paris para procurar o dinheiro necessário para a partida deles para a Martinica. Na verdade, uma vez chegado a Paris, ele vai para a casa de Bonet que o acompanha à Gestapo. Os oficiais alemães estão cépticos em relação à confissão de Picard. Mas quando lhes descreve minuciosamente o método empregado para explodir a ponte, já não têm dúvidas de estar a lidar com o verdadeiro sabotador, e ele será executado. 

► O mais estranho e o mais sombrio dos sete filmes de Walsh com Errol Flynn. Walsh transporta para outro contexto e mistura sob outras proporções certos ingredientes dos seus heróis habituais. Muitos deles (e com Flynn à cabeça) flertam com a ideia de ser «um aventureiro sem fé nem lei». Aqui, estamos plenamente aí. Flynn é um ladrão e um assassino desde os primeiros minutos do filme. Não acreditamos nos nossos olhos. E no entanto, é mesmo ele, com a mesma elegância, com a mesma indiferença irónica, com a mesma ousadia devastadora, marcadas apenas com um toque de negro, como o filme no seu todo. Flynn vai enganar toda a gente de uma ponta à outra da intriga, para o mal como para o bem, encontrar-se incessantemente no sítio onde não o esperamos, surpreender aqueles que o conhecem melhor (e particularmente o inspector Bonet, que o persegue há quinze anos, uma espécie de Javert moderno). O herói walshiano não tem um lugar muito definido dentro da moral. Devido ao seu individualismo extremo, é difícil situá-lo nesse domínio e a maior parte das vezes permanece «para além do bem e do mal». Outro ingrediente, outra característica do herói walshiano: o seu amor pela vida, ligado indissoluvelmente à sua sedução e ao seu humor. Também existem em Jean Picard (acabado de «sair» da prisão, seduz a primeira mulher que se lhe apresenta: a assombrosa Faye Emerson). Só que tem apenas três dias para satisfazer esse amor pela vida. O humor existe, mesmo neste filme muito sombrio, de forma simultaneamente inesperada (ver a cena genial da falsa confissão de Picard a Bonet) e permanente, já que o herói joga aqui constantemente com o seu destino e o dos outros. Ficam a sua decisão final e o seu sacrifício. Como o conjunto do personagem, essa decisão tem qualquer coisa de impenetrável, e quase insondável. Pode-se arriscar uma hipótese. Morrendo dessa forma, o personagem triunfa duas vezes sobre a fatalidade. Uma primeira vez decidindo ele próprio a sua morte – a hora e o conteúdo (o argumento fornece-lhe dez oportunidades para fugir que ele não agarra). Uma segunda vez inventando, criando para si mesmo outro destino. Jean Picard, ladrão e assassino, torna-se Jean Émile Dupont, o grande resistente. E não só nas aparências: na realidade também, já que salva com essa morte cem reféns e o verdadeiro sabotador. Acrescenta mais um papel a uma existência diversa e bem cumprida. Está-se sempre em Shakespeare: «Each man in his time plays many parts...» (citado por Walsh no final da sua autobiografia). Também se pode ver um filme como um sonho que Picard tem debaixo do cutelo da guilhotina. Mas seja qual for a forma como se olhe para ela, a obra sublinha a modernidade do génio de Walsh. E herói ou anti-herói, Flynn é sempre igualmente admirável.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

domingo, 5 de julho de 2020

GENTLEMAN JIM (1942)


1942 – USA (104') ● Prod. Warner First National (Robert Buckner) ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Vincent Lawrence, Horace McCoy a p. da vida de James J. Corbett e a autobiografia de Corbett «The Roar of the Crowd» ● Fot. Sid Hickox ● Mús. Heinz Roemheld ● Int. Errol Flynn (James J. Corbett), Alexis Smith (Victoria Ware), Jack Carson (Walter Lowrie), Alan Hale (Pat Corbett), John Loder (Clinton DeWitt), William Frawley (Billy Delaney), Minor Watson (Buck Ware), Ward Bond (John L. Sullivan), Rhys Williams (Harry Watson), Arthur Shields (o pai Burke), Madeleine Lebeau (Anna Held), Dorothy Vaughan (Ma Corbett), James Flavin (George Corbett), Pat Flaherty (Harry Corbett), Wallis Clark (o juiz Geary).

São Francisco, 1887. O boxe, que está longe de ser a arte nobre que se tornou a seguir, é um desporto praticado sem regras que se relega aos confins da cidade em exibições clandestinas. Jim Corbett, empregado de banco modesto, filho de um cocheiro irlandês, assiste muitas vezes a elas. Depois de uma batida policial, e graças a uma grande mentira, ajuda o juiz Geary a escapar às acusações e ganha assim o seu reconhecimento. Como muitos dos seus concidadãos, o juiz adora o boxe e queria vê-lo praticado por cavalheiros. No banco, Corbett aproveita a visita da herdeira rica Victoria Ware para oferecer os seus serviços e ir levar a seu pai, ao Clube Olímpico, o dinheiro que ele precisa para continuar o seu jogo de póquer. Corbett, que sonha em subir na vida, fica fascinado com a atmosfera e as instalações deste clube chique. A pedido dele, Victoria fá-lo visitar o ginásio. Veste-se para um breve combate com o célebre treinador Harry Watson e impressiona todos os que assistem com as suas qualidades de pugilista. Dão-lhe imediatamente o seu cartão de membro, e Victoria, ainda que estupefacta com a sua ousadia, aceita tornar-se sua madrinha. Os irmãos dele não querem acreditar quando lhes anuncia a notícia e o cepticismo deles desencadeia no seio da família Corbett uma dessas lutas homéricas de que apenas esta tem o segredo. No Clube Olímpico, a vaidade, a segurança e a obstinação infatigável de Corbett em se fazer valer (paga por exemplo ao mensageiro para gritar o seu nome em todas as salas) não tardam a irritar os outros membros que querem dar-lhe então uma lição. Propõem mil dólares ao antigo campeão de Inglaterra para o defrontar e lhe dar uma dentada ou duas. Vai ser a primeira partida de boxe em que se aplicam as regras do marquês de Queensbury. Contrariamente a todos os prognósticos, e especialmente graças ao seu jogo de pernas (movimenta-se como um dançarino no ringue), Corbett leva a melhor sobre o seu adversário por K.-O. Enquanto a impressiona, exaspera ao ponto máximo Victoria, que no final da partida o chega a chamar de bruto. Como querem expulsar do clube o seu colega, Walter Lowrie, um alcoólico e um chato impenitente que está sempre colado a toda a gente, Corbett junta-se à causa dele e abandona o clube. Depois de uma noite de bebedeira, vê-se em Salt Lake City, obrigado a uma promessa que fez ao treinador Bill Delaney de defrontar um pugilista local. Uma vez saído das névoas do álcool, vai pô-lo facilmente K.-O. De regresso a São Francisco, demite-se do banco e arrecada cada vez mais vitórias, primeiro em casa contra Joe Choynski, numa barcaça instalada na baía de São Francisco, depois em diferentes cantos dos Estados Unidos e nomeadamente em Nova Orleães. Mas a ambição dele não se limita ao boxe. Em Nova Iorque, representa numa peça intitulada «Gentleman Jim» da qual vai tirar a sua alcunha e espera um dia interpretar Shakespeare. Toda a família Corbett se muda para o bairro chique de Nob Hill. O pai e os dois irmãos de Jim inauguram o saloon que ele lhes ofereceu. Agora, o principal objectivo de Corbett é levar John L. Sullivan, o pugilista mais célebre do seu tempo, a aceitá-lo como adversário. Vai conseguir enervá-lo falando-lhe da sua idade e Sullivan vai aceitar o seu desafio. Mas Corbett tem de colocar em jogo dez mil dólares para que a partida tenha lugar. Foi a condição que Sullivan estabeleceu. Corbett entra em contacto com diferentes banqueiros que lhe recusam emprestar essa quantia. Em Nova Iorque, no hotel Waldorf-Astoria, revê Victoria por acaso e o encontro deles termina logo em disputa. Para ter o prazer de o ver vencido, fornece em segredo ao seu treinador Bill Delaney a quantia de que Corbett necessita. A partida pode então ter lugar. Mais vivo que nunca, Corbett atordoa e esgota o seu adversário, que nunca lhe consegue tocar. Na 21ª ronda, Corbett leva-lhe a melhor por K.-O. e torna-se o primeiro campeão do mundo de pesos pesados a triunfar segundo as regras do marquês de Queenbury. Durante a festa que se sucede ao seu triunfo, Victoria, que no entanto não pode deixar de o admirar, oferece a Jim um chapéu gigante para a sua cabeça grande. De repente, aparece Sullivan. Corbett presta-lhe uma homenagem vibrante e comove até às lágrimas aquele que acaba de destronar. Sullivan diz-lhe com reconhecimento que vai sem dúvida trazer ao boxe aquilo que lhe faltava e conclui com estas palavras: «Sei que se é difícil ser um bom perdedor, é ainda mais difícil ser um bom vencedor». Depois de uma enésima e breve disputa, Victoria cai nos braços de Jim que exclama: «Vais dar uma bela Corbett!» E, como é hábito deles, os irmãos Corbett, voltam mais uma vez a lutar...

► Terceiro dos sete filmes de Walsh com Errol Flynn, e sem dúvida a mais brilhante das suas colaborações. Através da personalidade do actor (de quem gosta de destacar aspectos diferentes que Curtiz, que o tinha dirigido em doze filmes) e através da biografia de Corbett, Walsh desenha o retrato de um homem ambicioso, atrevido, astuto, vaidoso, insolente, etc. cujo apetite de viver, extremamente desenvolvido, é polivalente e está constantemente à procura de outros alimentos. É esse carácter polivalente que faz dele um herói walshiano perfeito. Corbett quer tornar-se ao mesmo tempo um cidadão respeitado da alta sociedade de São Francisco, um grande pugilista, um actor shakespeariano, etc. Recusando a especialização, encarna uma arte de viver em que a elegância e a ironia são essenciais e que nunca fixa um limite ou um objectivo final a atingir. Corbet-Flynn, visto por Walsh, é um artista da vida, não um esteta, cujos próprios defeitos são tão grandes que se transformam em qualidades e alimentam a corrente de energia, aqui toda positiva, que o atravessa e o liga ao mundo. A sua ambição, não destituída de cálculo, ignora no entanto essa rigidez, esse azedume e essa tensão melancólica que torna tantos ambiciosos em vencidos e infelizes, mesmo quando atingiram o seu objectivo. A ambição de Corbett, essa, é alegre e está em movimento perpétuo. Para a transcrever, Walsh utiliza um estilo perfeitamente clássico, sem tomadas de posição, que veremos triunfar tão bem numa decupagem sem planos fixos (à John Ford) como numa decupagem ultra-viva em que abundam os movimentos de câmara, em que a câmara, sem nunca perder o fôlego, se casa naturalmente com os ímpetos de entusiasmo de um herói em perpétua transformação. No final, no cume da glória, ele tornar-se-á quase humilde na maravilhosa cena da sua saudação a Sullivan, cena que Walsh achou suficientemente importante para lhe registar o diálogo nas suas memórias («Each Man in His Time»). Gentleman Jim é sem dúvida o filme mais alegre de Walsh e, a cada nova visualização, fica-se maravilhado com a energia que liberta, com a sua vivacidade e a sua juventude milagrosa. 

BIBLIO. : argumento e diálogos in « L'Avant Scène » nº 167 (1976).

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

DESPERATE JOURNEY (1942)


1942 – USA (107') ● Prod. Warner (Hal B. Wallis, Jack Saper) ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Arthur T. Horman ● Fot. Bert Glennon ● Mús. Max Steiner ● Int. Errol Flynn (tenente Terrence Forbes), Ronald Reagan (oficial Johnny Hammond), Nancy Coleman (Kaethe Brahms), Raymond Massey (major Otto Baumeister), Alan Hale (sargento Kirk Edwards), Arthur Kennedy (oficial Jed Forrest), Sig Ruman (Preuss), Ronald Sinclair (sargento Lloyd Hollis), Albert Basserman (Dr. Mather), Else Basserman (Frau Raeder). 

A equipa de um bombardeiro com o piloto australiano Terrence Forbes à cabeça recebe como missão ir aniquilar longe no território alemão uma estação importante situada nas proximidades da fronteira polaca. Uma vez alcançado o objectivo, o avião atingido pela DCA alemã tem de fazer uma aterragem forçada. Há quatro sobreviventes além de Forbes: o canadiano Forrest, o americano Hammond, o veterano escocês Edwards que pintou os cabelos para parecer mais jovem e ser admitido a combate (o filho dele morreu em Dunquerque) e por fim o jovem inglês Hollis, filho de um herói da Primeira Guerra Mundial. Eles põem fogo ao avião, um protótipo, e escondem-se na floresta vizinha. São cercados e capturados pelo inimigo. O major Baumeister interroga-os. Conseguem passar-lhe a perna, não sem levar os planos das fábricas secretas Messerschmitt. Pegam nos uniformes de um destacamento alemão e depois levam a carruagem-salão de Goering para ir até Berlim. Perseguidos por Baumeister, mas escapando-lhe sempre, põem fogo a uma fábrica de produtos químicos e bombas incendiárias. Hollis é ferido; um médico anti-nazi tenta operá-lo mas não o consegue salvar. Reduzido a quatro homens, o grupo atravessa a Alemanha. Em Münster, pedem asilo aos pais da assistente do cirurgião, que lhes tinha dado a morada. Mas caem numa armadilha porque um par de nazis tomou o lugar dos pais. Os quatro homens fogem pelos telhados; Edwards faz uma queda mortal. Perseguidos de carro pelo obstinado Baumeister, abandonam o veículo e andam por campos. Descobrem um avião inglês que os alemães estão a armar para destruir as reservas de água de Londres. Apoderam-se do aparelho e alcançam a Inglaterra. 

► Walsh descreveu a guerra em tons e sob aspectos bem diferentes: elogio da coragem e do sacrifício em Objective, Burma!, análise crítica e denunciadora em Os Nus e Os Mortos. Aqui, é sob a forma de uma grande caça ao tesouro, dinâmica e desenfreada, que a guerra aparece, através de peripécias próximas da banda-desenhada pelo ritmo e a sorte permanente que serve os desígnios dos protagonistas, ainda que, como equipa completa à partida, acabem com três sobreviventes à chegada. Numa sequência, o personagem interpretado por Flynn vai defender essa concepção da guerra como um jogo, afirmando que com uma hipótese em mil de voltar sã e salva, a pequena equipa, diminuindo a cada dia que passa, não tem nada melhor para fazer do que semear o máximo de destruição possível pelo caminho de volta, repleto de obstáculos. Esta exaltação da energia e de uma alegria de viver paradoxal, com o pano de fundo do cataclismo e da aniquilação, exprime uma das dimensões mais características da arte de Walsh: a acção brinca constantemente com a morte, a barbárie e a estupidez absurda de um inimigo casmurro que o autor se recusa a levar a sério. (O que não deixou de lhe ser criticado.) Banda-desenhada alegre e incrivelmente ritmada, Jornada Trágica é também um apocalipse impressionante visto através da admirável fotografia nocturna de Bert Glennon, plena de clarões deslumbrantes e fogos de artifício fulgurantes. Assim, os personagens exprimem sem frases e com os únicos meios de que dispõem a sua crença na vida. E sempre essa distância sublime de Walsh em relação ao seu material: aqui num filme de circunstância, rodado de forma que não podia ser mais a quente, tem a audácia de mostrar que a guerra não é uma questão séria, mas que no entanto é melhor ganhar, nem que seja para podermos um dia rir, divertir e reencontrar como irmãos.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

sábado, 4 de julho de 2020

THEY DIED WITH THEIR BOOTS ON (1941)


1941 – USA (140’) ● Prod. Warner (Hal B. Wallis) ● Real. RAOUL WALSH ● Gui. Wally Kline e Aeneas Mackenzie ● Fot. Bert Glennon ● Mús. Max Steiner ● Int. Errol Flynn (George Armstrong Custer), Olivia de Havilland (Elizabeth Bacon Custer), Arthur Kennedy (Edward « Ned » Sharp, Jr.), Charles Grapewin (California Joe), Gene Lockhart (Samuel Bacon), Anthony Quinn (Crazy Horse), Stanley Ridges (Major Romulus Taipe), John Litel (general Philip Sheridan), Walter Hampden (William Sharp), Sydney Greenstreet (general Winfield Scott), Regis Toomey (Fitzhugh Lee), Hattie McDaniel (Callie). 

West Point, 1857. O jovem cadete George Armstrong Custer, vestido com um uniforme extravagante que mandou fazer à semelhança do de Murat, chega todo fogoso à célebre escola militar. É vítima de uma farsa de Ned Sharp, que vai ser o seu principal inimigo ao longo de toda a vida. O pior classificado dos alunos da sua turma, mas especialista em todos os exercícios militares e mais apto que qualquer outro a suscitar o entusiasmo dos seus subordinados, Custer vê-se patenteado com um ano de avanço para se poder ir alistar em Washington, pouco depois do início da guerra de Secessão, na 2ª Cavalaria. O general Scott, de quem se fez amigo, acelera o seu destacamento. Em 1861, Custer participa na batalha de Bull Run. Recusa obedecer ao seu superior Ned Sharp, põe-no K.-O. e passa ao ataque em vez de seguir uma ordem de retirada, em recompensa do que o general Sheridan lhe vai dar uma licença e uma medalha. Em Monroe, Michigan, a sua cidade natal, Custer encontra a jovem Elizabeth Bacon por quem se tinha apaixonado à primeira vista em West Point e pede que se case com ele quando se tornar general. De qualquer forma, o avanço dele anda mais rápido que as suas esperanças mais loucas e ei-lo efectivamente tornado general à cabeça da Brigada do Michigan, promoção que ao princípio vai tomar por uma boa farsa. Desobedece mais uma vez às ordens e toma a iniciativa de ir atacar as tropas de Jeb Stuart em Hanover com o 7º regimento do Michigan. É um fracasso. Volta ao assalto com os 5 e 6º regimentos; novo fracasso. Com o 1º regimento, provoca a rendição de Stuart e permite assim aos nortistas alcançar a vitória em Gettysburg. No regresso, é celebrado como herói e casa-se com Elizabeth. Ned Sharp e o seu pai William Sharp querem fazer as pazes com ele e pedem-lhe para ser o presidente da sua companhia de caminhos de ferro. Esperam assim vender inúmeras acções, graças à glória associada ao seu nome. Custer recusa. Agora que a guerra acabou, a inactividade pesa-lhe. A mulher vai ter de solicitar junto do general Scott um destacamento para ele, porque se pôs a beber. Sacrificando o seu conforto e a sua vida dourada, parte com Custer para Fort Lincoln, no Dakota. O primeiro feito de armas de Custer será deter Crazy Horse, o chefe dos Sioux. Descobre que Ned Sharp, proprietário de um bar, vende armas aos índios. Sem se preocupar com os procedimentos legais, manda fechar esse bar e põe fim ao tráfico de armas. Crazy Horse é libertado por um dos seus. Custer reformula a 7ª Cavalaria e dá-lhe a sua canção preferida, a melodia irlandesa «Garry Owen». Pacifica a região. Crazy Horse promete que o seu povo vai abandonar todos os seus territórios, com a condição de lhe deixarem o santuário dos Black Hills. Ameaça reunir todas as tribos e dar um último e sangrento combate se o acordo, uma vez assinado, for violado. Isto tudo não é conveniente para os negócios de Ned Sharp, que para retomar o comércio faz correr o boato, com o pai e o major Paipe (com quem Custer tinha outrora entrado em conflito em West Point), de que há ouro nos Black Hills. Para o sucesso do seu plano, os três homens precisam que Custer seja eliminado. Taipe faz reabrir o bar de Sharp antes de passar em revista o regimento de Custer, enquanto comissário do governo. Os cavaleiros estão todos bêbados: é uma debandada geral. Louco de raiva, Custer bate em Taipe. Vai a tribunal marcial em Washington. Sabendo-se vítima de uma conspiração, não consegue fazer-se ouvir e não vai poder provar que Taipe tinha sido comprado por Ned Sharp e o pai. Vai implorar ao Presidente Ulysses Grant que lhe restitua o seu comando e é bem sucedido. Como tinha anunciado Crazy Horse, as tribos índias executam a sua fusão, depois dos Black Hills serem infestados de exploradores de ouro. Na véspera do último combate, Custer obriga Sharp a esvaziar com ele uma garrafa de álcool. Custer faz um brinde à glória e Sharp ao dinheiro. Quando este último está morto de bêbado, Custer faz com que seja levado para o local dos combates. Depois despede-se da mulher e lê no seu diário íntimo que tem o pressentimento do desastre. Na batalha de Little Big Horn (25-6-1876), os homens da valorosa 7ª Cavalaria, lutam a dez contra um, caem numa emboscada e são massacrados. Ned Sharp, que não teve outra escolha senão combater, morre de armas na mão, pouco antes de Custer receber o golpe fatal. O seu sacrifício ajudou a infantaria do general Terry a aguentar-se até à chegada do general Sheridan. Depois da morte de Custer, a mulher utiliza uma carta dele para obrigar Taipe a demitir-se e consegue que o território dos Black Hills seja definitivamente entregue aos Sioux. 

► Primeiro dos sete filmes que rodou com Errol Flynn na Warner, eis a obra-prima épica de Walsh para os anos 40 e 50. Flynn estava um bocado cansado da direcção ditatorial de Curtiz, com quem tinha feito doze filmes em seis anos, e essa fatiga, fortuita para a história do cinema, permite a Walsh explorar nele novas formas de sensibilidade e desenvolver, através de uma série prestigiosa de filmes, outras facetas da sua personalidade, umas vezes comoventes, outras vezes irónicas ou cínicas. Mantendo a sua distância em relação à História, deixando de lado o aspecto ambíguo e contestado do verdadeiro Custer, Walsh edifica com Flynn uma figura deliberadamente mítica, encarregada de exprimir o seu culto do heroísmo e dos valores que considera essenciais. Custer aparece aqui como um homem que vê de forma precisa, que diz a verdade, que odeia as concessões e cujo sacrifício sem ilusões servirá ao mesmo tempo a causa do seu país e a dos índios. Através das peripécias de um fresco biográfico que se espalha por 20 anos, Walsh também vê nesta personagem a oportunidade de dar vazão ao seu ódio pela política baixa, a especulação e a ditadura do dinheiro. Flynn encarna certamente uma personagem directa: apesar das virtudes que ele defende e o ódio que sente pelos Sharp, Taipe e outros tristes coexistirem mal dentro de si e o empurrarem finalmente para o caminho do sacrifício e da tragédia. O filme tem, sobretudo na última parte, algumas das melhores sequências da obra de Walsh. Não se pode esquecer a cena comovente e elegante da despedida de Flynn a Olivia de Havilland (neste último dos oito filmes que rodariam juntos) e, naturalmente, a carga final onde triunfa o estilo único de Walsh, aliando como ninguém o soube fazer a amplidão ao estremecimento, o frenesim dos planos aproximados à serenidade grandiosa dos planos de conjunto, verdadeiras pinturas, iguais em génio à mais bela pintura americana e, por exemplo, à de Remington que Walsh adorava. 

N.B. Assinale-se algumas das aparições mais importantes da personagem de Custer no grande ecrã: nos traços de Ronald Reagan, como jovem amigo e companheiro de Jeb Stuart (Errol Flynn) lutando contra John Brown (Raymond Massey) no muito negro e muito dramático Santa Fe Trail de Michael Curtiz (1940); em Fort Apache de Ford (1948); como paspalho ridículo e abominável (Robert Mulligan) em Little Big Man (1970), o grande fresco picaresco e desmistificador em que Arthur Penn se inspirou no romance de Thomas Berger. Em 1967, Robert Siodmak rodou em Espanha um filme dedicado a Custer (Custer of the West) interpretado por Robert Shaw. É uma obra que dá uma no cravo e outra na ferradura e em que Siodmak não consegue, apesar dos seus esforços, transmitir uma síntese convincente da personagem. Custer inspirou igualmente, mais ou menos, várias personagens de westerns que levam outros nomes: como o oficial interpretado por Robert Preston em The Last Frontier de Anthony Mann (1955).

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.