terça-feira, 31 de dezembro de 2013
2013, então...
Os anos passam a correr...
- Sanma no Aji
- Tokyo Monogatari
- La Fille de Nulle Part
- Barbara
- The Master
- Passion
- Escape Plan
Em 2014, há-de se beber um saké em homenagem a Ozu, que este ano não se conseguiu. Com moelas, se possível.
terça-feira, 24 de dezembro de 2013
terça-feira, 10 de dezembro de 2013
Do you have any advice for a new writer with a new script who has no contact with the industry and doesn't know what to do with it?
I think right now it's a writer's market. It depends on what form and who it's for. Look at what is being sold and who is selling and who is buying and what kind of script, and then get the names of who those people are, and lie, cheat, steal, bribe and get in to meet them - and con.
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
AS IMAGENS ROMANCEADAS
"Se pudesse contar a história por palavras, não precisava de andar com uma câmara às costas"
Lewis Hine
1. Há uma inocência no romancear: a de quem, como tantas tardes eu, se senta numa esplanada e vai olhando para as mesas ao lado tecendo sobre quem chega e quem parte ficções inúteis e improváveis. Quem é a rapariga que beija a senhora que faz tricot e agora se levanta para cumprimentar o rapaz de pull-over ao pescoço e sapatos sem peúgas? Primos, irmãos, namorados, relações? Podem-se inventar relações que logo se dissolvem mal a gente se levanta da esplanada e retoma o caminho de casa. Romances incompletos, histórias sem fim, princípios ou meios. Verosímeis, improváveis: não ferem mal.
Também na expressão "biografia romanceada" que agora parece regressar, se inclui esta inocência. Anuncia-nos o propósito a sua própria desculpabilização: nem tudo ali é verdade, nem tudo será provado, basta o título para ilibar de responsabilidades factuais quem a tal se propõe.
Estes romances correm paralelos às imagens fragmentárias que os suscitam (documentos, certidões, cartas, depoimentos, papelada para as biografias; corpos, gestos, movimentos para a demorada ficção das tardes de esplanada). Mas ambos se propõem não como exactos, não como determinantes, mas como prováveis, ou improváveis, que é só questão de percentagem.
Primos, irmãos, tios, aqueles nossos vizinhos de esplanada? Camões amantes de Natércia ou porque não de Jau? Porque não? Que importância tem?
2. Quem vê Paixão, está todo o tempo nesta imaginária esplanada: quem é Piccoli? Dono de que empresa? Amante de que Hanna? Que faz Jerzy? Que relações tem Isabelle com Piccoli? Já dormiu com Jerzy? Sabemos que não é por aí que vamos penetrar no tecido do filme e no entanto é nisso que inevitavelmente vamos passando o tempo da projecção: a romancear. A tentar descobrir a hegemonia de uma ficção ao mesmo tempo que a perfeita concreção de cada momento nos vai, com a sua veracidade, distraindo da linha narrativa com que nos íamos entretendo. É como antes do sono, aquelas linhas paralelas de pequenas frases que se vão repetindo antes de se lhes perder o sentido e penetrarmos na noite interior.
3. Como falar do movimento?
Muybridge fê-lo parando-o: justapondo os momentos, dividindo-o. Mas é ainda do movimento que ele nos fala?
O romance do século XIX (o que ainda para nós é "o romance") fala atribuindo-lhe um sentido: a ficção combate o caos como o detective mais tarde combaterá o mundo do crime - fixando-o, identificando momento e destino histórico.
Quem quer que tenha feito a estátua de Laocoonte formalizou para nós, ocidentais, o momento pleno do movimento: depois de o gesto começar, antes de o gesto se concluir, esse equilíbrio de tensões em que as serpentes ainda voam e os músculos do homem já as vencem.
Mas o sentido ronda o movimento. Substituiu-se-lhe: de dentro do movimento não lhe vemos o fim, de fora, o fim ocupa o que antes foi errância. Como se não houvesse nem túneis nem noites e só a luz ou a manhã do fim do tempo que vai andando.
4. Há no Petit Soldat uma cena à volta da qual Godard não parou de variar: a inevitável cena em que Michel Subor tira retratos a Anna Karina.
Que é a fotografia? "Um objecto que fala da perda, da destruição, do desaparecimento dos objectos. Que não fala de si. Fala dos outros. Será que os inclui?" pergunta Jasper Johns.
Mas no Vivre sa vie já se diz mais ou menos:
"O cinema? É como a fotografia?
Não. É cinema".
Ou seja, há o movimento.
Há quem identifique movimento a ficção.
O cinema será fotografias com histórias?
Eu diria que o ontológico realismo que Godard persegue tem a ver com isto: é possível filmar o movimento desligando-o da narrativa?
Criar uma narrativa tão provisória que a irrefutável presença do movimento (não das coisas, como em Ponge: mas do seu movimento) prescinda da ficção? Ou melhor, que a ficção presente seja incapaz de dar conta da imprevisível errância das coisas e das pessoas? Da imprescindível liberdade do ser?
Nesse sentido, Godard opõe-se à ideia de ser ele próprio um criador. Não se substitui ao oculto sentido do mundo, não tem como antagonista Deus. Na sua modéstia ou na sua ambição ele apenas invoca o sentido do Mundo, e se na Paixão Isabelle entoa o Agnus Dei é porque o seu movimento (ou o movimento da sua personagem) se cumpre finalmente: e só pode existir não na revelação de um sentido mas na evocação do mistério - e aqui o do próprio cordeiro de Deus.
Nesse mesmo sentido, o que Godard filma é a pele.
E que é Bardot no Mépris? Pele ou mistério?
Por isso ele não quer que os actores sejam máquinas produtoras de sentidos, nada mais oposto à arte de representar em Godard do que esse stakhanovismo da significação que é o Actor's Studio. O actor é fotografado. Filmado, ou seja, fotografado no seu movimento.
A anedota que se conta sobre Isabelle Huppert durante a rodagem de Passion será improvável mas é igualmente pertinente: chegava a actriz ao local das filmagens e Godard dizia que ela tinha era que ir para a fábrica continuar a ser operária. E se ele filma Isabelle, não é o trabalho de Huppert eventual detentora e portanto reveladora do sentido da sua personagem mas a Isabelle feita apenas secreto, concreto movimento entre as coisas. Também não uma operária. Mas uma operária fingida.
Porque o sentido pertence a Deus?
E não havendo Deus como parecia não haver no tempo do Mépris o sentido será o da Produção?
5. Há um outro momento que eu diria paradigmático de Godard. Num filme que só vi uma vez, e tantas vezes me volta, Comment ça va. É uma fotografia recorrente da revolução portuguesa. Aparece e reaparece. E sempre uma voz (ou duas?) a vão tentando ler, tentando encontrar as histórias subjacentes ou as histórias prováveis. A cada nova análise, mais o segredo da fotografia se torna primordial. Cada nova ficção vem libertar de sentido o momento da fotografia.
Sempre me fascinaram as polaroids mal tiradas. Vamos vendo surgir a imagem e às vezes acontece que o mesmo movimento a vai matando: e à medida que o negro vai recobrindo, o pequeno quadrado vai guardando o segredo da imagem que por um instante quase foi. É muito assim que vejo a ficção nos filmes de Godard; como se o movimento fosse de tal forma irradiante que fosse ele a queimar o diafragma que a narrativa é.
6. Dizia Deleuze num já esquecido número dos Cahiers: "Creio que a força de Godard é a de viver e pensar, de mostrar o e de uma maneira nova, e de o fazer operar activamente. O e não é um nem outro, é o entre duas coisas, é a fronteira, há sempre uma fronteira, uma linha de fuga ou de fluxo, só que não a vemos, porque é pouco perceptível. E é nessa linha de fuga que as coisas passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam".
Como falar do movimento?
Romanceando.
E Godard não pára de romancear. De, como eu nas mesas das esplanadas, inventar sobre as coisas históricas verosímeis mas improváveis. Que se vão juntando e aniquilando. Há uma máquina imparável de romanesco nos filmes de Godard como só em Espinosa conheço idêntica máquina de raciocínio. Em ambos este desejo imperioso de não parar. De inventar histórias, de repensar o pensado. Em nome, diria, do movimento.
7. Num espectáculo que representei no ano passado intitulado Vermeer et Spinoza eu, que fazia de Spinoza, tinha que dizer isto:
"São as coisas singulares que fazem o tecido da vida, elas para quem o pensamento é rígido demais, muito pouco dúctil na sua linguagem. Mas, ao fim e ao cabo, a linguagem não é o pensamento... Porque a matéria da linguagem é de um tecido extremamente grosseiro. E é nessa matéria que se forma uma imitação do pensamento que muitas vezes só evoca de longe o próprio pensamento. Por isso é que eu penso que não é tão mau passar de uma língua a outra quando nos queremos explicar. Todas as línguas são más. Só o seu uso permite extrair-lhes qualquer coisa. Tudo depende da arte com que delas nos servimos. Tal é a origem da necessidade da poesia. E a da música é a mesma, e a da pintura também. Como traduzir de outra maneira que não pelas inflexões dos sons a maneira como nós acariciamos as coisas, ou seja, como somos acariciados por elas?".
Houve pessoas que me disseram - e eu fiquei tão contente - que lhes tinha feito pensar em Godard. Era esta maneira teimosa de ir batendo com a cabeça na parede das coisas e das palavras: ou dos romances inocentes.
8. Terá dito o escritor japonês Terayama Shuji: "Na fotografia, as luzes vão-se, a ficção fica". Mas no cinema?
in JEAN-LUC GODARD - CINEMATECA PORTUGUESA, 1985
Muybridge fê-lo parando-o: justapondo os momentos, dividindo-o. Mas é ainda do movimento que ele nos fala?
O romance do século XIX (o que ainda para nós é "o romance") fala atribuindo-lhe um sentido: a ficção combate o caos como o detective mais tarde combaterá o mundo do crime - fixando-o, identificando momento e destino histórico.
Quem quer que tenha feito a estátua de Laocoonte formalizou para nós, ocidentais, o momento pleno do movimento: depois de o gesto começar, antes de o gesto se concluir, esse equilíbrio de tensões em que as serpentes ainda voam e os músculos do homem já as vencem.
Mas o sentido ronda o movimento. Substituiu-se-lhe: de dentro do movimento não lhe vemos o fim, de fora, o fim ocupa o que antes foi errância. Como se não houvesse nem túneis nem noites e só a luz ou a manhã do fim do tempo que vai andando.
4. Há no Petit Soldat uma cena à volta da qual Godard não parou de variar: a inevitável cena em que Michel Subor tira retratos a Anna Karina.
Que é a fotografia? "Um objecto que fala da perda, da destruição, do desaparecimento dos objectos. Que não fala de si. Fala dos outros. Será que os inclui?" pergunta Jasper Johns.
Mas no Vivre sa vie já se diz mais ou menos:
"O cinema? É como a fotografia?
Não. É cinema".
Ou seja, há o movimento.
Há quem identifique movimento a ficção.
O cinema será fotografias com histórias?
Eu diria que o ontológico realismo que Godard persegue tem a ver com isto: é possível filmar o movimento desligando-o da narrativa?
Criar uma narrativa tão provisória que a irrefutável presença do movimento (não das coisas, como em Ponge: mas do seu movimento) prescinda da ficção? Ou melhor, que a ficção presente seja incapaz de dar conta da imprevisível errância das coisas e das pessoas? Da imprescindível liberdade do ser?
Nesse sentido, Godard opõe-se à ideia de ser ele próprio um criador. Não se substitui ao oculto sentido do mundo, não tem como antagonista Deus. Na sua modéstia ou na sua ambição ele apenas invoca o sentido do Mundo, e se na Paixão Isabelle entoa o Agnus Dei é porque o seu movimento (ou o movimento da sua personagem) se cumpre finalmente: e só pode existir não na revelação de um sentido mas na evocação do mistério - e aqui o do próprio cordeiro de Deus.
Nesse mesmo sentido, o que Godard filma é a pele.
E que é Bardot no Mépris? Pele ou mistério?
Por isso ele não quer que os actores sejam máquinas produtoras de sentidos, nada mais oposto à arte de representar em Godard do que esse stakhanovismo da significação que é o Actor's Studio. O actor é fotografado. Filmado, ou seja, fotografado no seu movimento.
A anedota que se conta sobre Isabelle Huppert durante a rodagem de Passion será improvável mas é igualmente pertinente: chegava a actriz ao local das filmagens e Godard dizia que ela tinha era que ir para a fábrica continuar a ser operária. E se ele filma Isabelle, não é o trabalho de Huppert eventual detentora e portanto reveladora do sentido da sua personagem mas a Isabelle feita apenas secreto, concreto movimento entre as coisas. Também não uma operária. Mas uma operária fingida.
Porque o sentido pertence a Deus?
E não havendo Deus como parecia não haver no tempo do Mépris o sentido será o da Produção?
5. Há um outro momento que eu diria paradigmático de Godard. Num filme que só vi uma vez, e tantas vezes me volta, Comment ça va. É uma fotografia recorrente da revolução portuguesa. Aparece e reaparece. E sempre uma voz (ou duas?) a vão tentando ler, tentando encontrar as histórias subjacentes ou as histórias prováveis. A cada nova análise, mais o segredo da fotografia se torna primordial. Cada nova ficção vem libertar de sentido o momento da fotografia.
Sempre me fascinaram as polaroids mal tiradas. Vamos vendo surgir a imagem e às vezes acontece que o mesmo movimento a vai matando: e à medida que o negro vai recobrindo, o pequeno quadrado vai guardando o segredo da imagem que por um instante quase foi. É muito assim que vejo a ficção nos filmes de Godard; como se o movimento fosse de tal forma irradiante que fosse ele a queimar o diafragma que a narrativa é.
6. Dizia Deleuze num já esquecido número dos Cahiers: "Creio que a força de Godard é a de viver e pensar, de mostrar o e de uma maneira nova, e de o fazer operar activamente. O e não é um nem outro, é o entre duas coisas, é a fronteira, há sempre uma fronteira, uma linha de fuga ou de fluxo, só que não a vemos, porque é pouco perceptível. E é nessa linha de fuga que as coisas passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam".
Como falar do movimento?
Romanceando.
E Godard não pára de romancear. De, como eu nas mesas das esplanadas, inventar sobre as coisas históricas verosímeis mas improváveis. Que se vão juntando e aniquilando. Há uma máquina imparável de romanesco nos filmes de Godard como só em Espinosa conheço idêntica máquina de raciocínio. Em ambos este desejo imperioso de não parar. De inventar histórias, de repensar o pensado. Em nome, diria, do movimento.
7. Num espectáculo que representei no ano passado intitulado Vermeer et Spinoza eu, que fazia de Spinoza, tinha que dizer isto:
"São as coisas singulares que fazem o tecido da vida, elas para quem o pensamento é rígido demais, muito pouco dúctil na sua linguagem. Mas, ao fim e ao cabo, a linguagem não é o pensamento... Porque a matéria da linguagem é de um tecido extremamente grosseiro. E é nessa matéria que se forma uma imitação do pensamento que muitas vezes só evoca de longe o próprio pensamento. Por isso é que eu penso que não é tão mau passar de uma língua a outra quando nos queremos explicar. Todas as línguas são más. Só o seu uso permite extrair-lhes qualquer coisa. Tudo depende da arte com que delas nos servimos. Tal é a origem da necessidade da poesia. E a da música é a mesma, e a da pintura também. Como traduzir de outra maneira que não pelas inflexões dos sons a maneira como nós acariciamos as coisas, ou seja, como somos acariciados por elas?".
Houve pessoas que me disseram - e eu fiquei tão contente - que lhes tinha feito pensar em Godard. Era esta maneira teimosa de ir batendo com a cabeça na parede das coisas e das palavras: ou dos romances inocentes.
8. Terá dito o escritor japonês Terayama Shuji: "Na fotografia, as luzes vão-se, a ficção fica". Mas no cinema?
in JEAN-LUC GODARD - CINEMATECA PORTUGUESA, 1985
segunda-feira, 2 de dezembro de 2013
A PERFECT WORLD (1993)
por João Bénard da Costa
A excepção e a regra. Uma reconciliação com o mundo e com os homens. "Voltei a acreditar que um e outros podem ser perfeitos."
Quando fui ver A Perfect World estava num daqueles dias em que se tende a exagerar a natural imperfeição do mundo e dos seus habitantes. Um daqueles dias em que se toma a parte pelo todo ou uma dor de cabeça por um cancro no cérebro. Um daqueles dias, por exemplo, em que, quando presenciamos tristes figuras, de quem as esperávamos e de quem as não esperávamos, generalizamos que só há figurações tristes nestes tristes tempos deste triste espaço. Que "faz frio pensar na vida". O que a vida faz às pessoas. O que as pessoas fazem da vida. De associação em associação, de recorrência em recorrência, tudo ou muito (mas um muito que é demais) nos começa a parecer sinistro. "Há qualquer coisa de sinistro no olhar daquele carneiro", dizia Nuno Bragança quando não gostava ou desconfiava de uma pessoa. Em dias, como o dia em que vi A Perfect World, descobri "qualquer coisa de sinistro" no olhar de quase todos os carneiros, mesmo daqueles que têm lã quentinha e a quem gostamos de passar a mão pelo pêlo ou que nos passem a mão pelo pêlo. Os amigos não são para essas ocasiões.
Antigamente, um bom filme de Capra, um bom filme de Ford, eram o antidepressivo ideal para essas ocasiões, que provavelmente têm mais que ver com coisas nossas de que com coisas vossas. Hoje - Capra morreu, Ford morreu e não há ninguém com muita saúde - é mais raro achar filmes com essas virtudes. Mas, no ser humano, a capacidade de bem é tão espantosa como a capacidade de mal e, mesmo que a moral vigente não seja mais a moral edificante, há sempre excepções à regra. A Perfect World (título que não deve ser lido ironicamente) é uma dessas excepções. De resto, num diálogo do filme (e dos mais importantes) é de regras e excepções que se fala.
T.J. Lother, o miúdo que Clint Eastwood descobriu (decalcado a papel químico de 4700 miúdos análogos do cinema americano) confessa a Kevin Costner que roubou o fato do fantasminha e a máscara do "halloween". Pergunta-lhe se está zangado com ele, pergunta aliás recorrente na boca de uma criança educada por Testemunhas de Jeová e por muitas proibições. Costner responde-lhe que não se deve roubar, mas que quando uma coisa apetece muito e não há dinheiro... E acrescenta, à laia de moral, "todas as regras têm excepção". É quase no fim do segundo grande "travelling" de acompanhamento, no caso em questão de acompanhamento do carro em que o adulto e a criança por duas vezes permutam estatutos: o adulto faz-se criança (para o bem e para o mal, nunca tinha deixado de o ser) e a criança torna-se adulto. Nesses dois "travellings" (muito longos e admiravelmente filmados) Kevin Costner e T.J. Lother ligam-se um ao outro e ligam-se a nós.
No cinema americano, abundam exemplos de histórias de crianças que foram parar às mãos de bandidos. Ou se divertiram muito, ou ficaram, para sempre, vacinadas contra o maniqueísmo dos "bons" e dos "maus". A Perfect World, a esse nível, é só mais um filme desses e não destrona o arquétipo de todos, Moonfleet, de Fritz Lang. Como não destrona, em termos de imagem emblemática, a oposição corpo grande - corpo pequeno, ou pai-filho, que explicou a adesão das gerações do pós-guerra a uma parábola como Ladrões de Bicicletas. Por alguma razão, a imagem publicitária do filme (Kostner, enorme, e T.J. Lother, pequenino, de mãos dadas) reenvia imediatamente ao filme de De Sica.
Mas, em A Perfect World, dão-se passos muito consideráveis para questões morais bastante mais complexas. Centro-me numa sequência e num adereço: a sequência em casa da família negra e a utilização do fato e da máscara do "halloween".
Se, algum dia, o mundo pareceu perfeito ao miúdo chamado Philip foi na manhã que passou em casa dos velhos negros e do neto. A amizade com Costner selara-se quando este interrompeu o que estava a fazer com a dona do restaurante e seguiu viagem com o miúdo, sem - novamente - se zangar com ele. Depois de terem sido acordados na floresta (pelo negro) tudo pareceu a Philip (e digo a Philip, porque a sequência é subjectiva) a perfeita celebração dessa amizade: o velho disco, a velha música, Costner a dançar com a velha, ele a dançar com o miúdo. Neste momento, o bem pareceu estar do lado mau, definitiva e pacificamente. Se a polícia tivesse entrado naquela casa, naquele momento, o miúdo ficaria a odiar polícias e a adorar ladrões pela vida fora.
Mas o que aprendeu, e o que aprendeu de repente, foi que não há simplicidades dessas. Determinado por um valor ("adultos não devem tratar mal as crianças") Kevin Costner estraga a festa e, como todos os fundamentalistas, assume por razões éticas um comportamento monstruoso (a tortura e a ameaça de morte à família negra). E o que o miúdo descobre naquele momento é que o amigo é também um monstro e que nenhuma amizade justifica o pacto com a monstruosidade ou com a ignomínia. Por isso dispara e mata o amigo. Esse tiro é, por isso mesmo, um dos tiros mais belos da história do cinema.
Mas Clint Eastwood ainda foi mais longe. Costner diz ao miúdo, depois, que se calhar não ia matar ninguém (é irrelevante, a tortura fora mais grave) e, em campo aberto (na sequência final), dá muito mais dados para ser compreendido e amado. E quando manda Philip embora, pede-lhe que ponha a caraça e vista o fato do fantasma. É nessa altura que essa caraça e esse fato adquirem a dimensão mais obscura e sacral. Porque com elas, o miúdo não é miúdo mas uma aparência construída para meter medo. Passa de criança a homúnculo e dissolve-se-lhe, sob a máscara, a infantilidade. Como máscara, pode enfrentar as outras máscaras (os polícias) num mundo por igual mascarado, num mundo em que sem máscara ou se é criança ou se está perdido.
Num filme de 1932 - Blonde Venus -, Sternberg fez aproximável uso de uma caraça e de uma criança para dar a Marlene um terceiro homem mais forte do que o marido e do que o amante. Em A Perfect World, desde a sequência do armazém e sempre que o miúdo tira ou põe a máscara, são dadas as pistas para a transformação daquela criança no adulto que um dia será, e, eventualmente, no monstro que um dia pode vir a ser. Quando foi ele que deu o tiro tinha a cara e os olhos transparentemente nus. Quando a polícia deu o segundo tiro - o tiro da abjecção - o contracampo é a máscara.
No fim, já o miúdo vai ser levado para a sua "nave espacial", Clint Eastwood dá o soco no agente federal e Laura Dern atira-lhe um pontapé aos tomates. Esses dois actos violentos são o equivalente (adulto e "legal") do tiro que a criança dera. A criança não a vemos nem a ouvimos mais. Clint Eastwood ouvimo-lo dizer (e são as últimas palavras do filme): "Já não sei nada de nada". Alguma vez, alguém, pensou ouvir semelhante confissão da boca de Clint Eastwood?
Mas foi por causa dessas palavras, do tiro do miúdo, do soco de Clint Eastwood e do pontapé de Laura Dern que me reconciliei com o mundo e com os homens e que voltei a acreditar que um e outros, às vezes, podem ser perfeitos. As estrelas do céu por cima de nós e a lei moral dentro de nós? Professor Immanuel, é mais ou menos isso.
in As Imagens Recorrentes, crónica no Suplemento "Vida" do semanário "Independente", 23 de Dezembro de 1993
A excepção e a regra. Uma reconciliação com o mundo e com os homens. "Voltei a acreditar que um e outros podem ser perfeitos."
Quando fui ver A Perfect World estava num daqueles dias em que se tende a exagerar a natural imperfeição do mundo e dos seus habitantes. Um daqueles dias em que se toma a parte pelo todo ou uma dor de cabeça por um cancro no cérebro. Um daqueles dias, por exemplo, em que, quando presenciamos tristes figuras, de quem as esperávamos e de quem as não esperávamos, generalizamos que só há figurações tristes nestes tristes tempos deste triste espaço. Que "faz frio pensar na vida". O que a vida faz às pessoas. O que as pessoas fazem da vida. De associação em associação, de recorrência em recorrência, tudo ou muito (mas um muito que é demais) nos começa a parecer sinistro. "Há qualquer coisa de sinistro no olhar daquele carneiro", dizia Nuno Bragança quando não gostava ou desconfiava de uma pessoa. Em dias, como o dia em que vi A Perfect World, descobri "qualquer coisa de sinistro" no olhar de quase todos os carneiros, mesmo daqueles que têm lã quentinha e a quem gostamos de passar a mão pelo pêlo ou que nos passem a mão pelo pêlo. Os amigos não são para essas ocasiões.
Antigamente, um bom filme de Capra, um bom filme de Ford, eram o antidepressivo ideal para essas ocasiões, que provavelmente têm mais que ver com coisas nossas de que com coisas vossas. Hoje - Capra morreu, Ford morreu e não há ninguém com muita saúde - é mais raro achar filmes com essas virtudes. Mas, no ser humano, a capacidade de bem é tão espantosa como a capacidade de mal e, mesmo que a moral vigente não seja mais a moral edificante, há sempre excepções à regra. A Perfect World (título que não deve ser lido ironicamente) é uma dessas excepções. De resto, num diálogo do filme (e dos mais importantes) é de regras e excepções que se fala.
T.J. Lother, o miúdo que Clint Eastwood descobriu (decalcado a papel químico de 4700 miúdos análogos do cinema americano) confessa a Kevin Costner que roubou o fato do fantasminha e a máscara do "halloween". Pergunta-lhe se está zangado com ele, pergunta aliás recorrente na boca de uma criança educada por Testemunhas de Jeová e por muitas proibições. Costner responde-lhe que não se deve roubar, mas que quando uma coisa apetece muito e não há dinheiro... E acrescenta, à laia de moral, "todas as regras têm excepção". É quase no fim do segundo grande "travelling" de acompanhamento, no caso em questão de acompanhamento do carro em que o adulto e a criança por duas vezes permutam estatutos: o adulto faz-se criança (para o bem e para o mal, nunca tinha deixado de o ser) e a criança torna-se adulto. Nesses dois "travellings" (muito longos e admiravelmente filmados) Kevin Costner e T.J. Lother ligam-se um ao outro e ligam-se a nós.
No cinema americano, abundam exemplos de histórias de crianças que foram parar às mãos de bandidos. Ou se divertiram muito, ou ficaram, para sempre, vacinadas contra o maniqueísmo dos "bons" e dos "maus". A Perfect World, a esse nível, é só mais um filme desses e não destrona o arquétipo de todos, Moonfleet, de Fritz Lang. Como não destrona, em termos de imagem emblemática, a oposição corpo grande - corpo pequeno, ou pai-filho, que explicou a adesão das gerações do pós-guerra a uma parábola como Ladrões de Bicicletas. Por alguma razão, a imagem publicitária do filme (Kostner, enorme, e T.J. Lother, pequenino, de mãos dadas) reenvia imediatamente ao filme de De Sica.
Mas, em A Perfect World, dão-se passos muito consideráveis para questões morais bastante mais complexas. Centro-me numa sequência e num adereço: a sequência em casa da família negra e a utilização do fato e da máscara do "halloween".
Se, algum dia, o mundo pareceu perfeito ao miúdo chamado Philip foi na manhã que passou em casa dos velhos negros e do neto. A amizade com Costner selara-se quando este interrompeu o que estava a fazer com a dona do restaurante e seguiu viagem com o miúdo, sem - novamente - se zangar com ele. Depois de terem sido acordados na floresta (pelo negro) tudo pareceu a Philip (e digo a Philip, porque a sequência é subjectiva) a perfeita celebração dessa amizade: o velho disco, a velha música, Costner a dançar com a velha, ele a dançar com o miúdo. Neste momento, o bem pareceu estar do lado mau, definitiva e pacificamente. Se a polícia tivesse entrado naquela casa, naquele momento, o miúdo ficaria a odiar polícias e a adorar ladrões pela vida fora.
Mas o que aprendeu, e o que aprendeu de repente, foi que não há simplicidades dessas. Determinado por um valor ("adultos não devem tratar mal as crianças") Kevin Costner estraga a festa e, como todos os fundamentalistas, assume por razões éticas um comportamento monstruoso (a tortura e a ameaça de morte à família negra). E o que o miúdo descobre naquele momento é que o amigo é também um monstro e que nenhuma amizade justifica o pacto com a monstruosidade ou com a ignomínia. Por isso dispara e mata o amigo. Esse tiro é, por isso mesmo, um dos tiros mais belos da história do cinema.
Mas Clint Eastwood ainda foi mais longe. Costner diz ao miúdo, depois, que se calhar não ia matar ninguém (é irrelevante, a tortura fora mais grave) e, em campo aberto (na sequência final), dá muito mais dados para ser compreendido e amado. E quando manda Philip embora, pede-lhe que ponha a caraça e vista o fato do fantasma. É nessa altura que essa caraça e esse fato adquirem a dimensão mais obscura e sacral. Porque com elas, o miúdo não é miúdo mas uma aparência construída para meter medo. Passa de criança a homúnculo e dissolve-se-lhe, sob a máscara, a infantilidade. Como máscara, pode enfrentar as outras máscaras (os polícias) num mundo por igual mascarado, num mundo em que sem máscara ou se é criança ou se está perdido.
Num filme de 1932 - Blonde Venus -, Sternberg fez aproximável uso de uma caraça e de uma criança para dar a Marlene um terceiro homem mais forte do que o marido e do que o amante. Em A Perfect World, desde a sequência do armazém e sempre que o miúdo tira ou põe a máscara, são dadas as pistas para a transformação daquela criança no adulto que um dia será, e, eventualmente, no monstro que um dia pode vir a ser. Quando foi ele que deu o tiro tinha a cara e os olhos transparentemente nus. Quando a polícia deu o segundo tiro - o tiro da abjecção - o contracampo é a máscara.
No fim, já o miúdo vai ser levado para a sua "nave espacial", Clint Eastwood dá o soco no agente federal e Laura Dern atira-lhe um pontapé aos tomates. Esses dois actos violentos são o equivalente (adulto e "legal") do tiro que a criança dera. A criança não a vemos nem a ouvimos mais. Clint Eastwood ouvimo-lo dizer (e são as últimas palavras do filme): "Já não sei nada de nada". Alguma vez, alguém, pensou ouvir semelhante confissão da boca de Clint Eastwood?
Mas foi por causa dessas palavras, do tiro do miúdo, do soco de Clint Eastwood e do pontapé de Laura Dern que me reconciliei com o mundo e com os homens e que voltei a acreditar que um e outros, às vezes, podem ser perfeitos. As estrelas do céu por cima de nós e a lei moral dentro de nós? Professor Immanuel, é mais ou menos isso.
in As Imagens Recorrentes, crónica no Suplemento "Vida" do semanário "Independente", 23 de Dezembro de 1993
domingo, 1 de dezembro de 2013
THE VISITORS (1972)
"The whole point of brutality in war is that the nicest people do it. The sweetest, the most lovable. The most affectionate people do it"
Elia Kazan
Com The Visitors - um dos seus filmes menos vistos e mais amados - Elia Kazan abordou o problema do Vietname. Do Vietname só temos neste filme um fugitivo plano, "flash-back" rapidíssimo, que, nem por isso ou por isso mesmo, deixa de ser das coisas mais espantosas que há nele. Tudo o resto se passa em Connecticut, na própria casa de Kazan "in location". E de Connecticut nunca saímos. Quem lá mora e quem lá vai é que não esquece que esteve no Vietname.
Mas tudo o que passa na hora e meia deste filme insólito, realizado "em família" por Kazan, com argumento do seu próprio filho, actores quase estreantes, rodado em Super 16mm e pelo preço inacreditável de 135.000 dólares, tudo o que se passa dizia eu, tem a ver com o Vietname? Esse é um dos grandes mistérios deste filme fascinante e intrigante. Aparentemente tem, porque foi lá que se conheceram Harry, Bill e Tony* e porque foi lá que se passou a história da violação que tanto medo causa a Harry. Mas realmente não tem, porque o que se vai passar não foi premeditado pelos "visitantes" mas resulta do medo de Harry, da memória de Harry. É a vítima (vítima da guerra, vítima da visita) quem desencadeia, com o seu misterioso pavor, a repetição do que se passou no Vietname, quem traz o Vietname para Connecticut.
Muita gente escreveu ou disse que o medo era a principal razão de todos os nossos males. Este filme faz-me vir à memória (outro tema central dele) um texto admirável publicado em 1968 por Nuno Bragança em que tal hipótese era exposta. E Nuno Bragança recordava (cito de memória) que o medo foi a primeira palavra que ocorreu a Adão depois do pecado ("tivemos medo e escondemo-nos) e que, de cada vez que Deus ou os seus anjos nos visitaram, começaram por dizer, invariavelmente, "não temais". Semelhante insistência dizia ele (Nuno Bragança) talvez nos obrigue a pensar duas vezes.
Se há filme que me parece ilustrar essa moral é The Visitors. Tudo é tão calmo no início, naquelas neves de Connecticut, não tão bela luz daquele Inverno, e na simpática casa daquele casal com um bébé (só depois saberemos que não são casados e que talvez haja alguma razão para isso). Tudo é tão silencioso (neste filme, até se ouvir Bach, não há música e toda a música que depois se ouve é música "in"). Tudo é tão calmo também na casa do pai de Martha, de quem ela toma tanta conta como do "marido" ou do filho. Mas há qualquer coisa e logo o "sentimos": os cães que ladram (ao longe) o vento que sopra (de leve). Se nos dissessem que era um filme de terror (estou a voltar ao medo) pensávamos que o realizador nos estava a manipular, género espera um bocadinho e já vais ver o susto que apanhas. Mas não é - nesse sentido - um filme de terror. E quando chegam os "Kansas Dealers" (um porto riquenho e um americano de origem alemã) parece não haver razão para qualquer sobressalto. São "Visitors, friends of the army", que não tiveram tanta sorte na vida como Harry e andam por aqui e por ali à busca de emprego. Martha recebe-os com a maior naturalidade e o pai dela gosta muito deles, tanto que lhes pede que fiquem mais tempo, já que por ali a companhia é pouca e ele gosta dela. Quem tem medo (ou se quiserem mal-estar) é Harry. Porquê? Tony explica-lhe e explica-nos que não há "hard feelings". E quando Harry conta à mulher a história da vietnamita, esta não se escandaliza nem se indigna. Guerra é guerra e tanta gente fez coisas dessas. Porque demorou ele tanto tempo a contar essa história "insignificante"? E a história só deixa de ser "insignificante" quando é repetida e repetida na pessoa dela. Porquê? Repito-o: nada leva a supor que Bill tenha voltado para se vingar ou para violar a mulher do amigo. Aquele "nice guy" que vimos a dormir junto ao velho Harry (no plano de que Kazan mais gosta) que ouvimos referir-se a Martha tão ternamente como "a good - looking girl" não é um violador compulsivo ou um tarado sexual. Mas cada olhar que Harry lhe lança tem contida essa recordação comum, algo nela faz muito medo a Harry. E esse algo é bastante mais complexo do que a violação da rapariga vietnamita. E não é só medo dos "visitantes". É medo do pai de Martha (a sequência do dedo cortado e do sangue, a sequência da morte do cão) é medo da própria Martha que talvez por causa desse medo nunca se tenha querido casar com ele. E esse medo é contagiante e vai provocar tudo quanto Harry talvez fantasiasse e que certamente o seu comportamento precipita. "Há algo de masoquista nele" - escreveu Kazan - "não tenham dúvidas quanto a isso. Tenta lutar contra esse masoquismo e para isso continua a ler no mesmo jornal ou a tomar conta da casa durante todo o tempo do filme - mas não faz nada nunca e, no fim, fica ainda em casa. Já devia ter saído dali, há tanto tempo". E eu acrescento a Kazan a última frase que ele diz, aquele assombroso "are you all right?" Depois de tudo o que se passou e como se alguma coisa entre ele e a mulher pudesse voltar a estar all right. E até talvez o acredite, como acreditou que estava all right depois do Vietname. E o seu medo dos "visitantes" talvez não fosse sequer o de que a mesma cena se passasse duas vezes, mas que a primeira lhe fosse lembrada pelas meras presenças deles.
Mas se o medo de Harry tudo contagia, ecoa-o em surdina - como tudo neste filme - o desejo de Martha. Também não é ostensivo, mas há uma sequência fabulosa que o insinua mais do que qualquer ostentação: a sequência na casa de banho, quando, depois da chegada dos "visitantes", ela tira os óculos e põe as lentes de contacto. Vêmo-la (só a cara) num espelho. A câmara recua e a seguir mostra-a, em calcinhas, semi-nua, para essa oferenda secreta e aparentemente inocente. Mas, depois da violação, voltamo-la a ver de óculos, esses que já nos esquecêramos que usara no início do filme. E há a relação dela com o pai e há o plano em que toca no casaco de Bill. Dou de novo a palavra a Kazan: "She feels almost motherly towards him, as though he needs someone. She's touched by him (...) It's a fascinating character. She sometimes looks very cruel, and very harsh: and other times she looks like a baby. The actresses I like (...) are able to look both plain and lovely, good-looking and brutish, to be both cruel and sweet. This girl is just a beginner, but she has some of that quality".
Nesse sentido - ou em todos deste filme tão densa e belamente elíptico - o casal e os visitantes estão, naquele paraíso, a leste dele (talvez por isso a luta entre Harry e Bill tanto lembra a luta dos irmãos em East of Eden, com o automóvel a surgir como figura de ocultação). Todos estão marcados por esse medo (sobretudo medo de si próprio). Por isso vem o "flash" do Vietname, de que ninguém quer falar e em que todos pensam. Porque, ao contrário do pai que fala ainda da II Guerra como de coisa épica, da "necessary war", todos estão divididos pelas dúvidas de terem sido portadores do mal e jamais salvadores de coisa ou causa nenhuma.
Quanto maior é essa dúvida - ou esse medo - mais perto se está de coisas terríveis. Talvez fosse a coisa mais necessária para dizer aos americanos em 1972, quando ainda havia guerra no Vietname. Talvez por isso ninguém (ou raros) tenham querido entender o filme e tenham falado dele como de obscura história (favores de pais a filhos, neste caso de Elia Kazan a Chris Kazan, argumentista e produtor de The Visitors) sem qualquer nexo.
Mas tudo lá está e mesmo para quem achar que deliro e persistir em considerar The Visitors um Kazan menor, terá que concordar (se souber ver) que há nele três das mais fabulosas sequências da obra de Kazan. Já falei do velho e de Bill deitados; já falei de Martha na casa de banho. Resta-me falar do plano da mão de Bill a convidá-la a dançar, nesse gesto repetido com que se inicia a repetição do que ninguém queria que se repetisse e acabou por se repetir. O Vietname em Connecticut e o "flash-back". Depois, "the visitors" podem-se ir embora. Já tudo ficou mais dentro.
in AS FOLHAS DA CINEMATECA - Elia Kazan
* Nós, que temos a sorte de ter nomes de personagens e actores muito à mão nem por isso conseguimos escrever textos que mereçam coçar as côdeas desta (e doutras frases): "nesse gesto repetido com que se inicia a repetição do que ninguém queria que se repetisse e acabou por se repetir". Certo, o "Harry" de que Bénard da Costa tanto fala nesta folha deve-se ler "Bill" (o nome da personagem de James Woods) e "Bill" deve-se ler "Mike". Harry é o nome do pai de Martha. Enfim, ninharias.
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