quarta-feira, 31 de março de 2021
ME AND MY GAL (1932)
Na senda e dentro do espírito de filmes como Parada do Amor e The Smiling Lieutenant de Ernst Lubitsch, Street Scene de King Vidor, Over the Hill de Henry King, ou Scarface e Tiger Shark de Howard Hawks, todos realizados entre 1929 e 1932, na transição do mudo para o sonoro e com o comboio da vida a bater nos microfones e nas lentes sem um freio ou um filtro que fosse, também Albert Edward (depois re-baptizado "Raoul") Walsh se atirou sem medo às falas e aos sons, como já tinha feito dois anos antes com The Big Trail, e deu-nos este maravilhoso Me and My Gal.
Talvez não haja nada de muito específico a aproximar esses filmes a não ser essa sensação de urgência provocada pela adaptação a uma nova técnica: vozes a picar, rádios enormes a estatelarem-se no chão, carros a passar a toda a brida pela estrada, corpos aos tropeções e aos pinotes para fora dos enquadramentos, sem aros nem marcações. Uma confusão de todo o tamanho, uma beleza sem fim. Era como se o amor e o crime nunca tivessem sido filmados, como se nunca tivessem sido vistos, contados ou sequer inventados. Atravessava-se um carro ou movia-se um barril e de repente estava tudo em jogo, uma mulher e um homem piscavam o olho um ao outro e fazia-se luz de novo, num cantinho entre as trevas. O sorriso enérgico e o convite para os copos de J. Farrell MacDonald, com uma vontade demasiado pronunciada, com uma gargalhada demasiado histérica, situa-nos sem sombra para dúvidas nesses anos da crise de todas as crises, onde uma das opções possíveis era beber copos cravados ou fiados durante a manhã, a tarde e a noite e chamar a polícia porque os peixes nos tinham roubado o isco ("Whaaa... What're you gonna do about it?"), como faz o bêbado de Will Stanton, num overacting assumidamente irritante, entre o ridículo e o sublime, verdadeiro como os dias.
Nova Iorque, 1932. Pescadores, arruaceiros, cuspidores de curta e longa distância, polícias e ladrões, empregadas de café, empregadas de bancos, veteranos de guerra paralíticos, gangsters com e sem charme, bebedores de cerveja profissionais, bêbados ingleses de fala arrastada, bêbados irlandeses com discurso de maratona, bons meninos e maus rapazes, meninas que hesitam entre uns e outros, uma câmara inventiva e galopante que se aventura pelos cais, balcões, escadarias, sofás, prisões, sótãos, caves, mesas e cofres por que todos circulam sem fazer quaisquer juízos de valor, irreversivelmente apaixonada pelas suas vidas e pelas suas contradições ("Whatever you do, lay off the coffee."; "All right, Captain... Hey, Al! Get me a cup of coffee."). Cortes bruscos e revelações repentinas. Cai um pedaço do tecto, surgem cinco homens em contra-picado, dois com óculos protectores escuros, recortados e enquadrados por um quadrado dentro do quadrado do cinema. A imagem treme, o assalto continua. Pragmatismo dos pioneiros, se lhes chamam imagens em movimento, que se movam, na acepção mais pura do termo: há dezanove dias, temos bons actores e imensas peripécias, vamos tirar o máximo proveito disso tudo.
E então a lição esculpida a pedra, assumida como certeza absoluta se nos lembrarmos dos beijos de Joan Bennett e Spencer Tracy em cima do balcão do café, deitando abaixo as chávenas e as travessas que por acaso lá estavam, o pé levantado dela, a perna oscilante dele, o peixe na cara do inglês, a atitude sempre defensiva do pescador sem peixes mas que bebe como um peixe, Joan Bennett de braços cruzados atrás da janela, Joan Bennett a endireitar-se com a anca no corrimão, Spencer Tracy e os chapéus, as centenas de acenos que atravessam os espelhos da alma, a alegria como sistema de reacção e defesa contra a adversidade: para fazer cinema é preciso estar apaixonado pela vida, sobretudo quando é difícil.
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sábado, 27 de março de 2021
Entrevista com Raoul Walsh
por Oliver Eyquem, Michael Henry e Jacques Saada
Quando começou a escrever The Wrath of the Just Ones[1]?
O ano passado. Levou-me cinco ou seis meses a escrever. Primeiro era para ser um guião mas as personagens começaram-se a desenvolver e eu segui-as. Levou-me uma quantidade de tempo enorme, muito mais do que estava à espera. Houve alturas em que acordava às duas da manhã para apontar uma ideia ou para preparar um novo episódio. Tem sido muito bem recebido e a única crítica veio de uma senhora que não gostou do final. Deparei-me com o mesmo problema nos Estados Unidos onde o meu editor queria um final feliz. Mas recusei-me a fazer quaisquer mudanças que fosse.
Há um lado extremamente agradável de Três Mosqueteiros no seu romance e a combinação de ficção e história é muito original. Apresenta muitas personagens históricas como Mark Twain, Tim McClusky, Pinkerton, Jack London.
Eu conheci Jack London quando era rapaz. Quanto a Mark Twain, conheci-o numa entrevista que ele tinha concedido a um jornalista meu amigo no New York World. Mark Twain era bastante velho nessa altura e ficou ali deitado na cama com os cabelos longos até aos ombros e o seu grande charuto. Falou durante um bocado com esse jornalista enquanto eu simplesmente me sentei e ouvi.
Alguma vez pensou em adaptar um dos seus romances?
Claro, muitas vezes. Mas a maior parte deles passa-se em rios e teriam precisado de orçamentos muito grandes.
Conheceu algum veterano da guerra civil?
Sim, quando era miúdo. Eram homens que tinham imenso em comum com as personagens que eu descrevo em The Wrath of the Just Ones, embora fossem muito mais velhos. Tinham levado vidas muito aventurosas e tinham tomado parte em todas as batalhas famosas. Contaram-me muitas histórias e anedotas.
Vieram de Inglaterra, muitos deles?
Sim. Achavam que era mais romântico combater pelo Sul. Não se preocupavam muito com possíveis ganhos materiais.
O seu romance ia ser muito caro de adaptar para o cinema, não ia?
Contém um grande número de episódios, e seria necessário cortar pelo menos o episódio da Barbary Coast. Na verdade, o filme ia precisar de uma tela gigante, o que infelizmente não é possível devido à grosseria ou crueza de certos diálogos. Estes filmes grandes e espectaculares têm um público quase exclusivamente familiar.
Há uma passagem muito marcante no seu livro: em que Pretty Boy recita o discurso de Lincoln em Gettysburg. McCarey utilizou uma cena semelhante em Ruggles of Red Gap, com Charles Laughton como um mordomo inglês. No seu livro Pretty Boy é um lorde, a combater pelo lado da Confederação...
Aqui entre nós, vou-lhe dizer o que é que me fez pôr lá essa cena, e também alguns discursos shakespearianos: é muito fácil conseguir um actor britânico de primeira classe se o permitirmos recitar de Shakespeare ou de algum texto clássico como o Discurso de Gettysburg. Pode-se sempre abandonar a cena na fase da montagem. É um isco infalível. Da mesma forma, no início da minha carreira, punha sempre 5 ou 6 cenas ousadas para que pudesse ter pelo menos duas ou três delas na montagem final.
Teve muitos problemas de censura a esse respeito?
No início eles cortavam regularmente de meia bobine a uma bobine de cada filme. Era extremamente difícil mostrar alguma coisa de todo durante uma cena de amor. Por exemplo, não podíamos pôr uma cama numa cena, nem sequer no pano de fundo de um plano. Não era permitido a um rapaz e a uma rapariga beijarem-se durante mais que três segundos.
Teve alguma dificuldade no que diz respeito à violência?
Isso aconteceu. Lembro-me de um exemplo quando a Fox tinha comprado os directos de um romance chamado Me Gangster que continha uma descrição muito detalhada de um assalto a um banco! via-se os gangsters a bloquear certas ruas, etc. Isso foi tudo cortado porque eles alegavam que o filme podia ensinar miúdos pequenos a praticar um assalto! Em Colorado Territory, houve uma cena que mostrava como rebentar um cofre com dinamite que também foi cortada na fase da montagem.
White Heat deve ter colocado enormes problemas.
Não, não tantos assim, na verdade. Claro, os censores tiveram um bom choque, mas a Warner assumiu uma posição muito firme e enviou um dos seus executivos para exercer alguma pressão. Ele disse que a indústria de cinema estava a passar por uma fase dramática e que ele próprio se arriscava a ficar arruinado e desta forma conseguiu que o filme fosse aprovado. Sem essa intervenção, o filme provavelmente era cortado aos pedaços. Esse tipo de discussão pode durar três ou quatro dias. Nos velhos tempos a nossa posição era muito mais difícil porque cada estado tinha a sua própria censura particular. Normalmente era uma senhora de idade muito simpática que decidia tudo e estava sempre a dizer: 'Que coisa horrível! Até que ponto é que irão em Hollywood? Não podemos permitir que o público veja coisas destas! Aquele rapaz e aquela rapariga simplesmente não param de se beijar!'
Quando White Heat foi reposto em França, a cópia, que muito provavelmente foi extraída de um negativo inglês, tinha sido alterada consideravelmente. Não só vários planos tinham sido abreviados, mas ainda por cima, tinham-se introduzido uma quantidade de fusões, especialmente a meio da crise de Cagney no refeitório[2].
Vou-lhe contar o que é que aconteceu em Inglaterra. A personagem interpretada por Cagney no filme chamava-se Jarrett. Acontecia que o superior hierárquico do Conselho de Censores também se chamava Jarrett! Só descobri quando a rodagem estava quase no fim e, claro, era tarde demais para mudar o que quer que fosse. Defendi-me a mim mesmo dizendo que o Jarrett do filme era apenas um primo distante dele...
Como é que se deu com Cagney?
Muito bem. Conhecíamos as mesmas pessoas, falávamos a mesma língua e gostávamos das mesmas coisas. Quando ele me vinha visitar, falávamos de todo o tipo de coisas e sobre os tempos do mudo em particular. Éramos para ter um almoço com Frank McHugh, Pat O'Brien e toda a trupe de 'lutadores irlandeses'...
Também via muito Errol Flynn e sempre que saíamos para algum lado, era certo entrar em sarilhos. Assim que púnhamos os pés num bar qualquer, as pessoas começavam-se a meter com ele. Com Flynn, embarcava-se sempre numa aventura e nunca se sabia o que ia acontecer a seguir. Sempre que jantávamos em algum restaurante grande, os empregados traziam-lhe invariavelmente mensagens de amor das mulheres que por acaso lá estavam. Um dia estávamos no El Morocco, Flynn recebeu uma mensagem de uma das suas admiradoras femininas, e o dono avisou-me: 'Não se pode em circunstância alguma permitir Flynn de se aproximar dela; ela está a ter alguns problemas com o marido e podia haver complicações.' Eu tentei dissuadir Flynn, claro, mas ele respondeu: 'Complicações? Mas eu adoro-as!'
Disse-se que Flynn queria começar uma companhia de produção consigo.
Está correcto. Até contratou um advogado e tinha um contrato redigido. O meu próprio advogado deu-lhe uma vista de olhos e aconselhou-me contra entrar naquilo com eles. Eu tentei dizer a Flynn, mas não valeu de nada. Um ano mais tarde, devia 750,000 dólares ao governo e teve de sair do país.
Conhecia Gary Cooper muito bem. Gostávamos ambos muito de ir à caça de patos nos campos de arroz do norte da Califórnia. Ia regularmente com Gable em expedições de caça no Arizona ou no Novo México. Gable adorava caçar e tinha algum equipamento muito caro. Costumávamos acampar a céu aberto, dormindo por baixo das caravanas.
Bogart só se sentia em casa na cidade. Cruzava-me muitas vezes com ele em restaurantes. Ele tinha uma inclinação grave para o álcool e estava sempre em pé de guerra contra os produtores, a protestar contra os papéis que lhe eram oferecidos. Dizia-me com frequência: 'Porque é que não esqueces o estúdio e vens para uma viagem no meu barco?'
O que aconteceu ao seu irmão George[3]?
Ele nunca se adaptou aos filmes falados e reformou-se quando ainda era relativamente novo. Faz criação de cavalos na Califórnia.
Eu cruzei-me com um corte transversal amplo de homens na minha carreira, mais que de mulheres, na verdade. Porque não fiz muitos filmes sobre mulheres.
Mas há representações maravilhosas de mulheres nos seus filmes e algumas estão entre os mais precisos retratos que conhecemos a nível psicológico e os mais fascinantes a nível físico.
Vocês elogiam-me muito. Claro, adorei dirigir Olivia de Havilland e Virginia Mayo porque eram raparigas muito simpáticas. Marlene Dietrich e Yvonne de Carlo também. A maior parte das actrizes com quem trabalhei foram fáceis de dirigir. Algumas, cujos nomes não vou mencionar, eram bastante agressivas depois de um copo ou dois de conhaque.
Disse-se que queria Natalie Wood para Band of Angels.
É verdade, mas ela não estava disponível para a altura da rodagem.
Não era um bocado nova para o papel?
Sem dúvida. Os traços e a expressividade do rosto de Yvonne de Carlo, a longo prazo, foram mais adequados para o papel.
Teve dificuldades com Mae West?
Nós falávamos a mesma língua. Começámos por ter uma discussão mas quando ficou tudo dito, a rodagem correu de forma tranquila.
Ela não tentava mudar os guiões dela?
Muito frequentemente, mas o estúdio mantinha-a sob controlo.
Fez trabalhos notáveis com Ida Lupino.
Fiquei muito feliz por trabalhar com ela. É uma rapariga muito inteligente e consegue atravessar a mais ampla variedade de emoções. Tem todos os ingredientes de uma grande intérprete. Também adoro Jane Russell: é uma rapariga muito saudável com imenso coração.
Lembramo-nos dela quando lemos o seu livro: a personagem de Barbara, por exemplo.
Ela seria demasiado rude para essa personagem; vejo-a mais como uma loira. Barbara é uma pessoa que parece delicada e doce, mas no interior é dura como uma pedra. É uma verdadeira cabra. Na verdade, é típica daquele meio do nouveau rich que eu costumava frequentar quando era jovem. Conhecia bem aquelas pessoas. Tinham começado do nada e de repente começavam-nos a desprezar. Toda a secção do meio do livro é um bocado uma sátira àquele mundo bem como um ataque aos políticos. Eu odeio políticos.
Em Silver River, bem como em They Died with their Boots on, há uma análise muito penetrante do pano de fundo político. Perto do final de Battle Cry, James Whitmore expressa uma aversão relativamente forte por políticos e Distant Trumpet, claro, é uma crítica muito severa da intervenção índia dos Estados Unidos. Parece muito ligado aos índios. Viveu entre eles?
Vivi sobretudo com os Sioux e os Crows.
Fala a língua deles?
Eu aprendi o dialecto sioux e algum do dialecto dos Navajos. É muito fácil: só há 300 palavras e eu consigo-me orientar bastante bem com aquilo. Quando se encontra um índio, uma só palavra, Hayatateh, é quanto basta para dizer ao mesmo tempo: Olá; como está a tua família; para onde vais; que horas são.'
Os locais que utilizou para Pursued e Colorado Territory parecem nunca ter sido utilizados por outros realizadores. Como é que os descobriu?
Tinha-os conhecido quando era miúdo. Conduzi gado por essa área a caminho do Novo México. Esses sítios são difíceis de aceder e frequentemente são muito perigosos. Na verdade, tínhamos que atravessar um rio seco para alcançar esses desfiladeiros e quando chovia, a água subia de forma tão rápida que o caminho de volta ficava vedado. Podia-se ficar lá encalhado durante uma semana sem comida. Actores ou actrizes que não fossem muito fortes podiam lá ter morrido.
Essa paisagem tem uma atmosfera sobrenatural e bárbara que evoca A Sagração da Primavera.
Eu conhecia cada montanha, cada rio, cada fonte de água e cada índio...
Parece que não foi feliz a rodar Sea Devils.
Tive uma quantidade enorme de problemas com os produtores. O director de produção que me tinha sido atribuído e que teve que encontrar alguns locais em Jersey voltou um dia a dizer que tinha descoberto uma frota maravilhosa de velhos barcos de pesca. Eu acreditei na palavra dele e quando cheguei ao sítio, descobri que eram barcos a motor.
Tirando num caso, os seus filmes nunca mencionam um crédito para um realizador de segunda unidade.
Isso é porque sou eu próprio a realizar tudo. O único filme em que tive um co-realizador foi The World in His Arms, porque a sequência com a corrida entre os barcos teve de ser rodada enquanto eu estava a realizar algumas cenas de interior. Uns anos antes, tive um realizador de segunda unidade para um western. Era suposto ele rodar uma cena em que uns bandidos atacam uma diligência e depois são mortos pelo condutor. O tipo que o estúdio tinha escolhido embebedou-se e rodou a cena de forma a que fossem mortos os passageiros todos.
Utilizou planos de reserva de Cheyenne para o ataque à diligência em Colorado Territory.
Eu tinha rodado uma quantidade grande de material bem espectacular para Cheyenne e foi por isso que usei outra vez esses planos em Colorado Territory em vez de voltar a filmar aquilo tudo.
Em Os Nus e Os Mortos também utiliza dois ou três dos planos de batalha de Battle Cry. Isto parece indicar que tem controlo total sobre os seus negativos.
Exactamente. A razão porque usei esses planos aí foi puramente económica. A massa do público não repara nessas coisas e é só gente jovem esperta como vocês que têm consciência disso.
Rodou a cena em que Dorothy Malone arranja o cabelo à frente do espelho em Battle Cry de modo a sugerir que estava nua.
Sim, e depois dessa cena ela conseguiu um contrato de sete anos e eu aconselhei-a: 'Despe-te tantas vezes quanto possível.'
Utilizou muitas câmaras para as cenas de acção?
Isso depende do tipo de cena que é. Para as acrobacias uso normalmente três câmaras.
Quantas câmaras tinha para as cenas de pugilismo em Gentleman Jim?
Só tinha duas câmaras.
E escolheu os planos na fase da montagem?
A segunda câmara funciona como protecção. Se houver algo de errado com a primeira, pode-se sempre recorrer ao plano que se filmou com a segunda.
Mudava algumas vezes a estrutura de uma cena na montagem?
Ao princípio, sim, mas quando tínhamos um bom guião, como regra respeitávamo-lo.
Tem-se dito que quando começou a fazer filmes, nunca olhava para o guião no plateau.
Correcto. Fazia tudo de memória.
Mais para a frente, até que ponto é que preparava os seus guiões?
A indústria do cinema tinha-se desenvolvido e as somas de dinheiro envolvidas aumentaram de forma gradual. Costumávamos ter mais tempo para desenvolver os nossos guiões. Tirando isso, têm de ter em mente que a maior parte dos meus filmes foram feitos em três semanas. Tínhamos de trabalhar rápido como o diabo e isso é mesmo uma pena. Reparei muitas vezes que este ou aquele detalhe não estavam muito perfeitos e dizia a mim próprio: 'Oh! Meu Deus! Se ao menos tivesse mais tempo era capaz de melhorar aquilo.' Quando se está a dirigir uma peça para o teatro, tem-se sempre a oportunidade para tentar coisas e mudar a abordagem. Fazer um filme é particularmente difícil: temos o nosso plateau, os nossos actores, os nossos técnicos e tem que se finalizar a coisa toda dentro do tempo que nos foi estipulado. Nessa altura, não podíamos filmar repetições de takes. Quando tínhamos um mês inteiro para rodar um filme estávamos no sétimo céu. Hoje em dia, os jovens realizadores têm dois, três ou cinco meses para rodar um filme.
Tinha de ter praticamente o filme todo delineado antes de rodar.
Eu trabalhava à noite e começava a organização muito cedo de manhã.
Alguma vez improvisou?
Às vezes. Especialmente quando estava à procura de um efeito cómico qualquer.
Podia dar um exemplo específico.
Não consigo pensar em nenhum neste preciso momento. Acontecia especialmente quando utilizava Alan Hale. Concedia-lhe imensa liberdade.
Era um amigo próximo seu?
Sim, era um amigo próximo de longa data. Tinha começado na indústria um ou dois anos depois de mim. Era um dos verdadeiros veteranos.
Até que ponto faz os seus actores ensaiar?
Não tenho muitos ensaios e raramente filmo mais do que duas ou três takes. Quando está tudo pronto, faço um último ensaio à frente das câmaras e depois filmo-o.
Gostávamos de mais algumas informações em relação às peças que escreveu com Paul Armstrong.
As minhas contribuições nelas foram limitadas. Estritamente falando, não as escrevi mesmo. Ele estava a avançar em anos pela altura em que o conheci e pedia-me opiniões, ou então sugeria-lhe coisas.
Os seus primeiros filmes eram frequentemente escritos por si. Mais tarde, trabalhou com argumentistas como Niven Busch, Jules Furthman, Borden Chase ou John Twist. Adorávamos saber mais qualquer coisa sobre as suas personalidades.
John Twist escreveu imenso para mim. Gostava muito dele. Costumávamos sentar-nos juntos numa mesa e começávamos a discutir coisas e o guião tomava forma gradualmente e começava-se a desenvolver. Borden Chase era um tipo duro, muito enérgico. Quando arranjava uma ideia agarrava-se a ela. Era muito difícil fazê-lo mudar de opinião. Niven Busch era uma espécie de excêntrico que se apaixonava literalmente pelos guiões dele. Tinha sempre que lhe dizer: 'Por amor de Deus! Pára, já chega!'
Alguma vez mudava uma cena no plateau?
Às vezes, mas respeitava sempre a ideia básica. Podia acontecer quando um actor provocava algumas dificuldades. Bogart, quando bebia uns copos a mais, costumava aparecer e queixar-se das falas dele: 'Que monte de lixo, esse texto!' – 'Mas tu aprovaste-o', respondia eu – 'Devia estar bêbado. Vais-me mudar isto, não vais?' Então eu mudava um par de falas e ele ficava contente e podíamos voltar a trabalhar outra vez. George Raft, que não tinha memória nenhuma de todo, nunca se conseguia lembrar de mais que duas falas de cada vez. Costumava aparecer para me encontrar, em segredo, de manhã e dizia 'Jesus; tens que admitir que este diálogo é uma treta pegada!' E eu respondia: 'Está bem, o que é que queres que elimine?'
Como fez a transição de High Sierra para Colorado Territory?
A Warner precisava de lançar um filme para o Verão de '49 e havia um grande número de outros projectos que já tinham sido recusados pelos realizadores contratados deles. Um produtor perguntou-me se concordaria em refazer High Sierra como um western. Eu respondi que achava que era possível e começámos a trabalhar no guião imediatamente. Acho que devemos ter feito esse filme em três semanas.
O guião original foi consideravelmente modificado.
Envolvi-me de muito perto na elaboração do guião de Colorado Territory e estive presente na maior parte das sessões de trabalho. Os locais que íamos precisar eram-me muito familiares. O filme é muito popular no Japão. Os japoneses adoram filmes que acabam em tragédia e em que o herói e a heroína são mortos.
O filme de The Wrath of the Just Ones teria muito sucesso no Japão...
Passava um ano inteiro numa sala de estreias.
Hoje em dia não é mais fácil introduzir um 'final infeliz'?
Sem dúvida. As pessoas estão a começar a aceitá-los (Butch Cassidy, por exemplo, tem um final trágico), mas até há uns anos atrás, a palavra de ordem era: 'o exibidor vai recusar qualquer filme que não termine de forma feliz e o público vai-se recusar a admitir que o herói e a heroína possam encontrar algo que não seja a felicidade perfeita.
Não vimos A Lion is in the Streets, que continua a ser um dos seus filmes mais elusivos e misteriosos.
É um filme horrível! Por volta de 1947, William Cagney tinha comprado os direitos de um romance sobre Huey Long[4]. Enquanto escreviam o guião, Cagney, que ia interpretar o papel principal, telefonou-me para Londres e perguntou-me se concordava em realizar o filme. Duas semanas mais tarde, eu estava de volta, e o guião estava pronto e estávamos prestes a começar a rodar quando apareceram dois advogados em representação da família de Huey Long e nos disseram que íamos ter sérios problemas se utilizássemos o mais pequeno trecho daquele romance. Então eu disse a Jimmy Cagney e ao irmão, 'Se cortarmos aqui e ali, em pouco tempo não vai sobrar nada do livro dele, o nervo vai sair todo. Ouçam o meu conselho e desistam do projecto.' Infelizmente, o Bill era um tipo bastante obstinado e respondeu que 'conseguíamos superar aquilo, de uma forma ou de outra.' Por mais que tentassem não adiantou nada. Tinha sido investido muito dinheiro na preparação do filme e em vez de o perderem todo, eles decidiram avançar, provavelmente sem dizer uma palavra que fosse às pessoas que tinham investido o dinheiro. Foi um grande erro e o filme não funcionou de todo nas bilheteiras.
Conheceu Huey Long?
Não, só conheci o irmão: é maluco. Eram os dois malucos.
Também não vimos Glory Alley.
Bom, não o vão ver! Deixem-me contar-vos a rodagem desse filme: Leslie Caron tinha o papel de uma rapariga pobre a viver em Nova Orleães numa casa degradada que partilhava com o pai. Um dia, a figurinista da MGM veio ao meu escritório e trouxe-me uns esboços. Havia mais de uma dúzia de vestidos, cada um mais extravagante que o outro. 'Espere um minuto', disse eu, 'Olhe, é suposto a Leslie ser uma rapariga sem muito dinheiro, e se quer que o público sinta alguma empatia por ela, ela tem que estar vestida de forma um pouco esfarrapada.' Ela respondeu: 'O Senhor Schary disse que tínhamos de respeitar o estilo tradicional da casa.' E foi assim que se gastaram vinte mil dólares para vestir a rapariga desafortunada. Toda a gente se riu daquilo, acima de tudo a Leslie. Estou-vos a dizer, não vão ver esse filme.
Fez muito poucos filmes na MGM.
É um estúdio em que as condições de trabalho são muito difíceis. A regra fundamental deles era vestir as estrelas da forma mais rica possível, independentemente dos papéis que interpretassem.
Tinha mais liberdade na Universal?
Oh sim! A MGM consistia num grupo extremamente coeso. Não gostavam de ver realizadores 'estranhos' chegar. Os orçamentos eram enormes e os custos de produção eram muito altos.
Ofereceram-lhe trabalho na televisão nestes últimos anos?
Frequentemente, mas não me interessa. Começa-se a trabalhar às 8 da manhã e continua-se sem interrupções até às 2 da tarde, e se nos atrasarmos no plano de rodagens, chega alguém a gritar que se tem de acabar tudo em 48 horas. É uma verdadeira maratona.
Durante a rodagem, vivia no estúdio?
Quando estava com a Warner vivia perto de Toluca Lake. Mais tarde, na Fox, ficava em Beverly Hills.
Que diferença havia entre a Fox e a Warner?
A Warner tinha uma organização superior, era concebida com o intuito de produzir e de produzir sem parar. Conheço Jack Warner há anos e nós entendíamo-nos muito bem um ao outro. Também me dava bem com Zanuck. Quando a Fox e a Twentieth Century se fundiram, fui eu que realizei o primeiro filme deles, The Bowery.
Tinha o direito de determinar a montagem?
Não é suposto o realizador ter direito à montagem final, mas eu organizava-me para rodar as minhas cenas de tal forma que seria impossível cortar o filme de qualquer outra maneira a não ser a que eu queria. Montava 'na câmara'. Muitos realizadores tinham desavenças com os produtores. Houve um período em que Zanuck tinha a reputação de ser um montador implacável. Quando estava de mau humor, ordenava: 'Corta isto, corta aquilo.' Nunca tocou nos meus filmes porque não havia nada para cortar.
E Jack Warner?
Nunca tive problemas nenhuns com ele. Ele não gostava que as cenas se arrastassem. Se por exemplo se visse um homem a ir pela rua abaixo e se o plano lhe parecesse longo demais, podíamos ouvi-lo balbuciar: 'Matem o filho da puta e acabem lá com o assunto!' Jack queria ritmo e sabia que eu tinha um sentido de tempo. Não permitia que se desenvolvesse nenhum momento aborrecido nos meus filmes. Tinha sempre medo que o público se pudesse antecipar a mim e dizer para si próprio: 'Aquele tipo vai ser morto daqui a um minuto.' Portanto, tinha de ir mais rápido do que eles e tinha que despertar o interesse deles.
Como era a sua relação com Mark Hellinger?
Excelente. Ele era um homem excepcional, muito inteligente. Quando o conheci, só tinha uma experiência muito limitada da indústria. Tinha trabalhado em jornalismo e era um dos melhores amigos de Damon Runyon. Como Runyon, Hellinger tinha um dom para contar histórias e tinha um grande sentido de drama. Morreu demasiado novo.
As bandas-sonoras dos seus filmes são excepcionalmente ricas e interessantes de um ponto de vista atmosférico. Como é que trabalha com os seus compositores?
Com Max Steiner, por exemplo.
Max era um óptimo amigo. Mostrava-lhe o guião antes de começarmos a rodar e ele vinha frequentemente ao plateau assistir à rodagem. Depois disso, quando a primeira montagem estava pronta, começávamos a discutir a música.
The Big Trail foi filmado em muitas versões ao mesmo tempo, não foi?
Tivemos problemas tremendos com esse filme. Tinha-o começado em 35mm, e então um tipo qualquer que tinha a licença para o processo de 70mm entrou na Fox. Isso queria dizer que eu tinha de filmar cada cena duas vezes, a primeira em formato padrão e a segunda em 70mm com uma composição diferente no enquadramento e com figurantes adicionais, índios, etc. para preencher a tela. Aquilo não funcionava sem dificuldades consideráveis. Além disso, tinha acabado de descobrir John Wayne e ele ainda só era um principiante e não tinha grande memória. A maior parte dos papéis foram interpretados por actores da Broadway que nunca tinham rodado em exteriores. Nunca tinham visto um nascer do sol ou um pôr-do-sol e não conseguiam manter os olhos abertos. Depois de alguns dias, começaram a beber: um contrabandista forneceu-os de álcool e durante metade do tempo estavam bêbados.
Onde filmou a última cena?
Num sítio chamado Sequoia, que é numa região a que chamam High Sequoias.
Foi dito que Anatole Litvak iniciou a rodagem de Roaring Twenties.
Não, não. Ele não filmou nada. O guião foi enviado directamente para mim.
E o que é que aconteceu ao certo em In Old Arizona?
Inicialmente o filme foi concebido como uma média-metragem de duas bobines. A Fox tinha o equipamento necessário para fazer filmes sonoros em exteriores graças aos camiões sonoros das suas unidades de jornais de actualidades da Movietone, mas nunca tinham sido usados para filmes sonoros. A Warner, por outro lado, tinha o equipamento de som necessário para filmar em interiores. Eu disse a mim próprio: 'Vamos levar um daqueles camiões e vamos rodar em exteriores.' A gente da Fox disse-me: 'Grande ideia; vamos lá e rodamos uns testes.' Portanto eu fui, mas descobri que nenhum dos actores sabia andar a cavalo. Decidi representar eu mesmo o papel principal e filmei várias cenas no Utah. Depois de terem visto as primeiras rushes, os patrões do estúdio chamaram-me e disseram-me: 'Fantástico. Continue e faça-nos uma longa.' Pensei que ia desmaiar. Tendo decidido continuar, fui cada vez mais alto para as montanhas até ao dia em que o camião avariou sem qualquer hipótese de reparação. Então pus-me a caminho do estúdio e foi no caminho de volta que tive o meu acidente. Um cowboy bêbado qualquer, a guiar a cem milhas por hora, estava-se a divertir a disparar para animais à queima-roupa, e uma lebre enorme saltou pela estrada e estilhaçou o pára-brisas. Há pouco tempo, no Japão, aconteceu uma coisa bem engraçada no que se refere a esse acidente. A televisão estava a mostrar alguns dos meus filmes num programa especial e o anunciante explicou por essa altura quem era Raoul Walsh, o que é que tinha feito, etc. De repente, o amigo com quem estava a ficar desmanchou-se a rir. 'O que é que se passa?' perguntei eu. – 'Bom, ele aparecer á frente da câmara e dizer que estás na Austrália a fazer filme e um canguru enorme saltar para cima de ti e arrancar-te o olho!' Eu continuei: '… e partiu-me metade dos ossos no processo.'
É bastante apegado ao oriente e ao Japão em particular, não é?
Sim, tenho lá muitos amigos. Um deles veio a Hollywood há um ano e pediu-me: 'Por favor vem para o Japão fazer um filme para a Toho. Reservei mil camelos, dois mil cavalos e vários milhares de soldados.' – 'E o guião?' – 'Não há guião'. Há dois meses estive com ele outra vez e fez exactamente a mesma oferta, e acrescentou: 'Ainda não há guião. Tens que o escrever.' Mas como é que se escreve alguma coisa sobre camelos, soldados e cavalos?
Entre as suas personagens mais interessantes, muitas são do Sul.
Sim. As pessoas do Sul eram personagens verdadeiramente extraordinárias. Particularmente os jogadores profissionais e os dândis que vinham de barco a vapor de Nova Orleães. As pessoas iam pelo Mississippi acima até St. Louis. Uma vez o meu pai levou-me numa viagem num desses barcos a vapor. Demorou quatro dias inteiros. Era muito novo mas ainda consigo ver claramente, na minha memória, aquelas mulheres soberbas com os seus vestidos glamorosos, os jogadores que apostavam quantias de dinheiro enormes... Toda aquela gente exalava uma atmosfera incrivelmente romântica.
E a Barbary Coast, que tem um papel central em The Wrath of the Just Ones?
Percorri-a junto a Jack London, e algumas das coisas que lá aconteceram estão no meu livro. A luta entre os dois homens em que um arranca a orelha do outro teve lugar diante dos meus próprios olhos em Bute, no Montana. Sabem, estes homens eram personagens mesmo duras! Quando os cowboys entravam numa luta, não usavam os punhos, agarravam no adversário e arrastavam-no até o fulano perder a consciência. Tinham esporas nas botas e às vezes laceravam a cara da vítima com elas ou arrancavam-lhes as orelhas e levavam-nas para casa como troféu. No rancho onde eu vivia quando era miúdo, havia pelo menos vinte orelhas, que tinham ficado pretas à medida que o tempo passava, pregadas à parede.
Fez três filmes com Victor McLaglen e Edmund Lowe nos mesmos papéis: What Price Glory?, The Cockeyed World e Women of All Nations.
Tive algumas discussões sérias com a Fox à conta disso. Depois de Cockeyed World, disse-lhes para me deixarem em paz, mas eles estavam convencidos que tinham encontrado uma mina de ouro e queriam explorá-la até ao fim.
Tinha uma equipa mais ou menos estável de técnicos para o assistir?
Sim, especialmente os carpinteiros e os electricistas. Houve um número de directores de fotografia que trabalharam comigo ocasionalmente, como Sid Hickox e Jimmy Howe. No tempo dos filmes mudos, trabalhava frequentemente com dois franceses, Lucien Andriot e George Benoit.
Qual é a sua atitude em relação à utilização do preto e branco ou da cor?
É uma escolha que depende principalmente do orçamento, e eu arrependi-me muitas vezes de não ter feito certos filmes a cores.
Mesmo assim, não se consegue imaginar Pursued a cores ou Band of Angels a preto e branco. Em cada caso, adoptou o processo que melhor se adequava ao filme.
Pursued precisava daquele contraste muito alto do preto e branco e a Nova Orleães de Band of Angels pedia naturalmente a cor.
Há algo de oriental em Band of Angels. Os perfumes, as cores e os tons quentes fazem-nos lembrar o Oriente de um Delacroix. Também pinta, não pinta?
Muito mal! Comecei em miúdo mas depois parei. Retomei há uns anos. Faço uma data de cópias de Remington e de Charles Russell, por exemplo, e pinturas em aguarela de cowboys e índios.
The Wrath of the Just Ones tem uma referência a Goya...
Conheço toda a sua obra muito bem.
Alguns dos seus retratos de mulheres lembram-nos Goya e Velasquez. Não é de ascendência espanhola?
Do lado da minha mãe, mas de forma muito distante.
Estávamos a falar de alguns dos seus actores. Entre os realizadores da sua geração, quais é que conheceu melhor em particular?
Howard Hawks, John Ford, Bill Wellman, com quem costumava trocar insultos como piada: “Bom, velho bandalho, outro filme para pagar as despesas?' Agora, Wellman sofre de artrite, Ford está muito cansado...
Conheceu Borzage?
Conhecia o Frank muito bem. Era um homem extremamente tranquilo, e gentil. Nunca havia o mais pequeno vestígio de violência nos filmes dele. O que me lembra uma anedota: um dia estava a tomar pequeno-almoço com um produtor da Warner e ele diz-me: 'Raoul, tenho uma bela história de amor para ti. Ia marcar uma mudança para ti. Que dizes?' Eu disse-lhe que a ia ler e que depois íamos ver Jack Warner para lhe perguntar o que achava sobre o assunto. Portanto, pouco depois, fomos ver Warner. Jack Warner olhou para ele durante um momento e disse: 'Vou-lhe dizer o que constitui uma cena terna e gentil para Raoul Walsh: é uma cena em que pode incendiar um bordel.' Nunca fiz o filme.
Paris, Junho de 1972.
[1] Este romance foi publicado em tradução francesa sob o título La Colère des Justes, Eds. Pierre Belfond.
[2] Esta cópia foi restaurada pouco depois dessa reposição por Jacques Saada e todos os planos mencionados foram colocados de volta na sua forma original.
[3] No respeitante a George Walsh, ver Silent Picture, nº 11-12 (Verão-Outono de 1971), contém um estudo detalhado da sua carreira. O nº 9 (Inverno de 1970-71) da mesma revista é quase inteiramente dedicado aos filmes mudos de Raoul Walsh.
[4] Político americano, nascido em 1893; Governador do Luisiana em 1928, onde colocou as suas criaturas em todos os lugares de topo do estado, e, como Senador em 1930, só assumiu o seu cargo depois de ter instalado um dos seus apoiantes como Governador. Transformou o Luisiana numa fortaleza e praticou uma demagogia anti-pauperista do tipo fascista, até que ao candidatar-se a Presidente foi assassinado em 1935 à entrada do Capitólio de Baton Rouge, a capital do Luisiana. A sua personalidade inspirou (numa direcção ligeiramente diferente e mais complexa em termos ideológicos) a da personagem central de All The King's Men de Robert Penn Warren (algo diluída na versão para cinema de Robert Rossen).
in «Raoul Walsh», Edinburgh Film Festival, Colchester, 1974 [organização literária: Phil Hardy].
sábado, 20 de março de 2021
Ele Inveja os Actores - E Perante a Mais Pequena Provocação Raoul Walsh Pára de Dirigir e Junta-se a Eles
Ele rabiscava diligentemente num pedaço de papel do tamanho de uma mão, não importando quão pequena essa mão pudesse ser. Quando um dos lados ficava coberto de hieróglifos ininteligíveis, ele fazia-se ao outro, passando a mão pelo cabelo como fazia tantas vezes, e humedecendo a ponta do lápis como um miúdo de escola sem grandes certezas sobre o que escrever a seguir. Em breve também este lado estava arruinado para posterior utilização. E o realizador Raoul Walsh fez sinal a June Collyer, outra villager de Nova Iorque que se deu bem na Cidade do Cinema.
"Olha, June," disse Raoul, "gostava que tomasses conta disto por mim, podes?" Ele atirou-lhe o borrão amarrotado. "E por amor de Mike, não o percas!"
June examinou o papel. Mas os seus segredos mantiveram-se enterrados numa mixórdia de arabescos. "O que é" perguntou ela. "Diz onde está enterrado o tesouro, ou onde se pode encontrar o corpo?"
"Não," murmurou Raoul impressionantemente. "É o guião de 'Me, Gangster.'"
E era mesmo.
E enquanto rodaram o filme, não houve outro.
É assim que Walsh trabalha. Em todo o caso às vezes.
Além do mais, era tanta a certeza sobre aquilo que estava a fazer, e sobre aquilo que tinha conseguido, que nunca via nenhuma das dailies. As dailies, sabem, são as sequências feitas durante o dia e mostradas assim que possam ser reveladas.
Raoul impressiona-nos como não sendo nem tão alto nem tão largo como o seu irmão George. Nem tão elegante, também. Ainda assim, é reconhecido como um lutador férreo perfeitamente capaz de deitar abaixo três ou quatro rufias de seguida sem esforço aparente. E parece haver qualquer coisa na masculinidade robusta das suas feições, a amplitude de sorriso melancólico, a atracção inquietante dos seus olhos irlandeses, que o torna um leão entre as senhoras. Porque diz-se em Hollywood que mais do que uma estrela cintilante terá descido do seu lugar nos céus do cinema para espelhar a sua beleza nesses mesmos olhos.
Sobre e Sob Água Guente
Mas se ele as adora, abandona-as. Consegue evitar alianças comprometedoras, e manteve-se casado durante muito tempo com a mesma senhora. Há pouco tempo fez um segundo casamento em sua casa, voando até Agua Caliente, no velho México, para a cerimónia. Agua Caliente quer dizer água quente. Pessoalmente, devia considerá-lo um local um tanto sinistro para dar um mergulho matrimonial. Mas essas coisas não incomodam Raoul. Na verdade, até se diz que depois do evento, fez uma pausa longa o suficiente nas mesas de jogo para arrecadar uns dezoito mil desses grandes dólares de prata com que os vizinhos sulistas recompensam os poucos gringos felizardos que escolhem o número da sorte. Tal fortuna num dia de casamento é suficiente para fazer um mórmon de um homem.
Mas essa é a sorte dos irlandeses. E este macho das calçadas de Nova Iorque teve a sua quota-parte. Assegura-se ele próprio disso.
Walsh está nos filmes há muito tempo. Interpretou o papel de John Wilkes Booth, o carrasco de Lincoln, em O Nascimento de Uma Nação. Aí era um actor. Ainda é. Ou acredita que é. Nunca recuperou totalmente. Claro, foi ideia de Gloria que ele interpretasse o papel de Handsome[1] em Sadie Thompson. Mas não consta que tivesse hesitado demasiado. Talvez o nome da personagem o tenha atraído. Ouvi afirmar que neste papel ele fez tudo, ou quase tudo, que, como realizador, desaprovaria. Mas deixou-o lá na mesma. Dêem crédito ao rapaz. É esperto.
Dêem-lhe crédito, também, por algumas longas-metragens que tiveram mesmo algum significado no ramo dos surdos e mudos. Que é o que os mastigadores de pipocas chamavam aos filmes antes de se tornarem barulhentos e eloquentes. E ele fez mais do que a sua quota-parte de bons filmes. Houve muitas reputações que se construíram a partir de uma base menos sólida.
Re-Glorificar Gloria
Há The Wanderer, por exemplo. E O Ladrão de Bagdad. Ambos estes filmes comprovam a sua aptidão para o espectacular, o seu apreço pela beleza, e a sua habilidade para exprimir esse apreço no ecrã. Ele fez What Price Glory? e demonstrou a sua habilidade como realista, o seu engenho, e uma certa virilidade mental que não era aparente nos seus filmes bonitos. Perdoamos-lhe Carmen. Quanto mais não seja por traduzir a história antiga em termos cinematográficos, ele revelou uma independência de espírito, uma disposição para talhar novos caminhos e uma indiferença por anteriores, o que é tão necessário e raramente encontrado na indústria de celulóide.
Eles não achavam que Rain pudesse ser adaptado a longa-metragem. Tinham medo de tentar. Mas Walsh resolveu o problema. E lembrem-se que foi tão encurralado com restrições que nem sequer pôde utilizar o nome da peça como título. No final das contas, ele deu-nos um filme dramático admiravelmente fiel, perfeitamente memorável. Um filme que resgatou a grande Gloria do lamaçal de Sunya, e a voltou a colocar no pináculo alto de popularidade que outrora fora seu.
Ora Walsh dirigiu cerca de cento e vinte e cinco filmes durante a sua carreira. Destes todos, os quatro que foram mencionados são algo da natureza do épico, tal como essa palavra muito abusada é entendida na terra do cinema. Uma percentagem pequena, dizem vocês? Bom, quem fez melhor? Quem é que fez quatro longas-metragens verdadeiramente excepcionais durante um período dedicado a moê-las às centenas? Von Stroheim ou Griffith ou DeMille ou Lubitsch ou Brenon? Digam-no vocês, eu balbuciava. Acrescentem o nome de Walsh a esses cinco, e têm-se os seis realizadores que dizem alguma coisa ao público. Que atraem apoios pelos seus filmes. E dos seis, Walsh não é de forma alguma o último.
Um Actor Incurável
Walsh é um nova-iorquino, nascido e criado. Quando vai à Grande Cidade, há luz na janela para ele na velha casa dos West Nineties. É aí que mora o irmão George. E a irmã, antiga mulher de Hoppe, o campeão de bilhar. E o pai, um tipo pequeno para gerar dois filhos tão robustos, e um dos poucos irlandeses com bom senso o suficiente para ter seleccionado um sócio judeu. Fizeram tanto dinheiro juntos, que agora o Pai Walsh está reformado, e tem prazer e capacidade para desfrutar de um companheirismo orgulhoso e caloroso com os rapazes.
Raoul andou na escola na margem de Jersey do Hudson, em Seton Hall. Quando se formou, o velho desafiou-o para uma viagem à volta do mundo. E depois de dois anos de excursões, o maldito imbecil foi para os filmes. A culpa foi de Paul Armstrong. Foi o dramaturgo que o apresentou a D.W. Griffith. E foi D.W. que tentou fazer dele um actor. Se o Velho Mestre tivesse sabido da séria concorrência que estava a induzir na indústria, teria-o mantido um actor. Nas actuais circunstâncias, as pintas do leopardo são visíveis pela coloração projectada do realizador.
Por exemplo, Raoul trabalha para a Fox. O dispositivo sonoro da Fox é o Movietone. Vão haver muitos filmes sincronizados com ele. Portanto aqueles que mais sabem sobre as suas várias ramificações vão ser os rapazes de cabelo branco. Para se familiarizar a si próprio com a técnica do cinema sonoro, Raoul determinou fazer um filme rápido de duas bobinas. Para a história, seleccionou uma daquelas tramas enganosas escritas por O. Henry. Depois de começar a rodar, ficou-lhe impresso na consciência que estava a desperdiçar material narrativo. Não com muita expansão, tinha um enredo para uma longa. Nunca lhe ocorreu ser picuinhas, de todo, ou incerto em relação à sua habilidade para fazer um filme falado.
Portanto foi ter com Sheehan, o árbitro dos destinos na Fox, e vendeu a ideia de fazer um filme de longa-metragem. Antes de acabar pode-se transformar num especial, ou num super-especial, ou num super-super-especial.
Só houve uma pergunta que Sheehan fez.
"Quem vai interpretar o bandido?"
"Quem acha?" piou Raoul, "Vou interpretá-lo eu!"
Para os Nascidos com Maneiras das Cavernas
E assim fez. Deixou crescer um bigode para o papel, para se parecer mais com Pancho Villa. E a parte engraçada é que nas sequências com diálogo ele fala inglês com um sotaque espanhol decidido, tal como fazem por baixo da fronteira. Anda-se a sussurrar sobre o filme, agora. A dizer que é um espanto. Que vai transformar a pequena señorita Maria Alba, uma estrela munto grande. Julguem por vocês próprios quando virem A Caballero's Way.
Alguém disse que a humanidade devia ser o estudo do homem. No entanto, a maior parte dos homens acham o estudo da mulher muito mais fascinante. Portanto talvez seja interessante registar as filosofias puramente impessoais de um que apoiou uma variedade de beldades (na tela, claro; não sejam parvos!) e foi habilitado a impor a lei com perfeita impunidade a uma galáxia de feminilidade temperamental. Além disso, sabem, Walsh mostrou ter uma grande claridade de visão em dotar os seus filmes com um romantismo que proporciona um estalo à prova de censura, uma emoção vicariante, às Judy O'Gradys e às mulheres do coronel[2] que pagam o custo da bilheteira na indústria do cinema.
Sam Goldwin é conhecido por ter respondido a um pedido em duas palavras, "Im-possível." Walsh resolve o problema feminino em três, "Mantém-nas na dúvida." Ele declara que não há lugar no coração de uma donzela para o macho amansado cujas reacções todas possam ser sistematizadas de antemão. As nossas senhoras gostam do homem que a pode beijar, ou que pode deitar abaixo.
Estas são as ideias de Walsh em relação ao tema. Pergunto-me se as porá em prática no seu novo empreendimento.
[1] Pode-se traduzir por qualquer coisa como Bonitão.
[2] "Judy O'Gradys and the Colonel's ladies" no original. referência ao poema "The Ladies" de Rudyard Kypling.
in «Motion Picture Classic», Janeiro de 1929, p. 33 e 78.
domingo, 14 de março de 2021
"Cinéastes de notre temps": Raoul Walsh - Terça-Feira, 4 de Outubro de 1966, 21 horas, 2º Canal.
Não foi por interesse na originalidade que André S. Labarthe, produtor da série "Cinéastes de notre temps", decidiu inicialmente dar como subtítulo ao seu episódio sobre Raoul Walsh «ou le bon vieux temps»[1], e em seguida integrar na montagem do episódio imagens de arquivo dos motins raciais de Los Angeles. Rodado em Agosto de 1965, no dia 19 para ser exacto, este retrato de Walsh foi realizado mesmo no momento em que uma das cidades a priori menos racistas, Los Angeles, era por sua vez vítima dos dramas da segregação. O contraste entre a América de hoje, de Dallas, de Houston e do Vietname, e a de ontem, a de Raoul Walsh ou John Ford, é ainda mais vincado.
Criador essencialmente instintivo, Raoul Walsh fala mal dos seus filmes - as suas muito e demasiado raras entrevistas tinham-nos convencido disso. A Hollywood de ontem permite-o expressar-se: a de hoje redu-lo a um silêncio que ele próprio, de resto, procurou. E apesar do vigor manifesto do homem, que confessa, como antigamente, continuar a fazer longas excursões a cavalo, o cineasta retirou-se de forma mais ou menos definitiva. Rejeita os guiões que lhe são propostos (um western para rodar na Checoslováquia ou na Jugoslávia...) e, no rancho, entre os seus cavalos e a sua esposa loira, evoca com muito mais vontade o passado do que os projectos futuros: o encontro com os irmãos Pathé, com Griffith de quem se tornará assistente e actor, o seu começo na Warner, o trabalho com todos os grandes actores hollywoodianos, Gable, Flynn, Bogart, Cooper.
Citando ele próprio várias vezes a expressão «it was the good old days», é acima de tudo a nostalgia de toda uma época passada que Raoul Walsh evoca, e foi em função dessa reminiscência que André Labarthe montou o seu episódio. Os excertos de filmes que, segundo o próprio princípio da série, servem tanto para ilustrar os temas de um autor como para quebrar a eventual monotonia de uma entrevista, são aqui trazidos a pouco e pouco pela música, primeiro, e depois, finalmente, pela imagem. The King and Four Queens, High Sierra, Colorado Territory, Silver River, White Heat: tantas obras-primas de que Walsh não fala com agrado (ou de todo) mas que a montagem introduz quase de forma imperceptível, como recordações.
Mas o episódio convida a uma verdadeira descoberta de Walsh enquanto homem, muito mais do que um testemunho sobre o artista. O simples facto de poder ver durante perto de cinquenta minutos o realizador de Gentleman Jim, de o ouvir evocar ao sabor de uma frase, e com a voz ligeiramente cansada, a lebre que o privou do olho, a sua forma de enrolar cigarros ou de dirigir McLaglen em Carmen, basta para dar uma visão não apenas nova mas sobretudo fascinante de um dos cineastas americanos mais importantes e nem sempre dos melhores conhecidos. Inseparável da sua obra, Raoul Walsh aparece-nos tão vivo como ela, e poder descobrir durante alguns minutos o homem por trás do cineasta é pelo menos tão exaltante como uma revisão de Battle Cry.
Segundo episódio do «Domínio Americano» de "Cinéastes de notre temps", este retrato um tanto nostálgico de Raoul Walsh faz parte da série que começou com o de John Ford programado em Julho e que deve continuar com uma dezena de retratos entre os quais os de Fuller, Mamoulian, Capra, Cassavetes, Daves, Hitchcock, Hawks, King Vidor. De resto, o problema da escolha dos excertos está longe de estar resolvido no que diz respeito aos cineastas americanos uma vez que, infelizmente, a maior parte das companhias americanas se recusam a conceder o mais pequeno excerto de filme. É assim que, paradoxalmente, Walsh, que foi um dos alicerces da Warner e que além do mais fala com tanta admiração como prazer dos famosos irmãos, não é representado por nenhum dos filmes actualmente distribuídos por essa companhia. Felizmente, alguns destes (Colorado Territory, High Sierra, Gentleman Jim) foram adquiridos, mas temos direito a lamentar que a Warner se tenha oposto à passagem de excertos de Battle Cry e sobretudo Band of Angels.
Apesar de tudo, e se há alguns excertos a faltar à chamada (embora o objectivo de "Cinéastes de notre temps" seja tudo menos a antologia filmada), Walsh a evocar cinquenta anos de cinema americana só pode obrigar o amador a não faltar a este flashback único sobre um dos criadores mais indiscutíveis da tela americana.
[1] «Ou os bons velhos tempos».
in «Cahiers du Cinéma» nº 182, Setembro de 1966.
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