quarta-feira, 20 de julho de 2011

2ª série dos planos (XVII)


I / II / III / IV / V / VI / VII / VIII / IX / X / XI / XII / XIII / XIV / XV / XVI

Uma vez por semana, convido bloggers a escolher um plano e a falar, também, sobre ele. O décimo séptimo convidado é o Carlos Natálio, do Ordet., que escolheu o primeiro plano de Sátántángo, de Béla Tarr:


"Numa rubrica sobre a importância do plano, acaba por ser tão «desleal» quanto óbvio escolher um filme de Béla Tarr, que, a par de Tarkovsky, tem nessa unidade mínima visível da gramática cinematográfica, a sua imagem de marca. Genericamente, o cinema do cineasta húngaro vê no plano sequência a possibilidade de percorrer lugares que passam a integrar o seu léxico geográfico, mas sobretudo vê neles, ou melhor, busca neles, a capacidade de acompanhar as suas personagens numa continuidade que é tão dramática, quanto da ordem da pura e simples amizade.

A primeira razão pela qual escolho o plano introdutório de Sátátangó, (para quem não sabe, o título significa «o tango de Satã»), é o facto de, na aparente singeleza de uma panorâmica e um travelling sobre uma manada de vacas, se encerrar a responsabilidade de representação do «início de uma dança». Numa obra que vive como poucas da fluência do travelling para explicar os ritmos do dinheiro, das desconfianças e sobretudo da vida muitas vezes incompreensível de uma aldeia comunista dos anos 80 na Húngria, trata-se de um plano com a capacidade de nos introduzir a um espaço e a um universo, de nos fazer sentir à vontade na casa, neste caso, aldeia de um outro.

A segunda razão da minha escolha é bem mais prosaica. O filme de Béla Tarr foi provavelmente o primeiro filme com duração superior a quatro horas que vi. Ora, é inegável a existência de uma barreira psicológica que se prende com o facto do formato das duas / três horas ser algo de forte enraizamento na expectativa de leitura do espectador. Este plano, lembro-me, funcionou há uns anos como uma espécie de introdução à longa duração em que me recordo após o ver de pensar que ainda bem que o filme não ia só ter essas ditas duas/três horas, mas ia afinal durar perto de oito.

No plano, a presença das vacas não possui aqui, como por exemplo na carga dramática de um filme como Au Hasard Balthazar, de Robert Bresson (refiro-me aos planos finais da morte do burro e na sua subida ao «promontório»), um valor sentimental. As vacas, os seus mugidos, as galinhas, o vento, os pássaros, são todos elementos que concorrem em igual medida para colocar o espectador num universo de natureza sem filtro, enquanto desafiam a presença sentida da câmara. Se no início algumas vacas parecem «observar» essa câmara presente, opressiva, esta decide depois deslocar-se pela aldeia, (a fazer lembrar algum cinema de Chantal Akerman, D’est, por exemplo) percorrendo texturas, muros, portões, insígnias nas paredes, oscilando sem pudor entre o animal e o inerte. É um plano de brutalidade, como tudo aquilo que dá que pensar, e que apresenta um espaço. Um plano que «dá as boas vindas» mas oprime, que reúne mas divide.

Um grande plano inexplicável, inexplicado, da História do Cinema, a anteceder uma manhã de Outubro em pleno Outono, a anteceder uma obra fascinante e inesgotável." (Carlos Natálio)

O próximo convidado é o Loot.

2 comentários:

O Narrador Subjectivo disse...

Muito bom, Tarr é um mestre realmente :) Abraço

João Palhares disse...

Ainda só vi o Man of London e dizem-me que os outros são ainda melhores, por isso tendo a concordar.. :)