terça-feira, 3 de janeiro de 2012

2ª série dos planos (XXIX) - último


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De vez em quando, convido bloggers a escolher um plano e a falar, também, sobre ele. O vigésimo nono convidado é o Francisco Noronha do Bósforo e do Cineclube FDUP, que escolheu o plano da maçã do belíssimo Primavera Tardia, de Yasujiro Ozu.



Em primeiríssimo lugar, quero agradecer ao João Palhares o gentil convite para participar nesta rubrica, que há muito acompanho.

O plano que escolhi pertence a um dos filmes icónicos de Yasujiro Ozu: Primavera Tardia (1949). Diz ele respeito ao momento, já quase a fechar o filme, em que Shukichi Somiya, o pai de Noriko, se encontra em casa, sozinho (mais do que isso: solitário, o que é tudo neste filme), a descascar uma maçã. Este plano, mais do que valer isoladamente, vale por todo o filme: ele é um momento-chave em Primavera Tardia, e isso por ser também, em grande parte, um momento-chave na própria personagem de Shukichi.

Ao longo do filme, Shukichi é-nos apresentado como o pai que, a partir do momento em que se apercebe de que a filha entrou, como mandam a tradição e a honra locais, em idade de casar, não poupa nos esforços em conduzi-la para esse destino. Fá-lo, todavia, de um modo cândido, nunca agressivo ou impositivo. Aliás, essa é uma nota dominante em todo o ambiente que circunda Noriko: ninguém lhe impõe, autoritariamente, o casamento (do qual nunca conheceremos a outra parte, o noivo), pese embora a persistência com que a interpelam a propósito desse assunto, sejam familiares (especialmente a sua tia) ou amigos, a sufoque. Shukichi demonstra ser, portanto, um homem tolerante, plácido e, até, condescendente ou compreensivo para com os receios e as hesitações da filha (para quem a felicidade maior está em ficar junto do seu pai) – aquando do passeio a Kyoto (o último passeio a dois, como melancolicamente a ele se referem pai e filha), Shukichi diz a Noriko que também o seu casamento passou por muitas dificuldades e que só a perseverança sustém uma relação e consolida a felicidade (ensinamento com uma ressonância impressionante em tempos como os nossos). Crente do caminho marital que a filha deve tomar, Shukichi, quase num acto de fé, sacrificando a sua própria felicidade e bem-estar (proporcionados pela companhia da filha), criará, aos olhos de Noriko, a falsa aparência de apoiar de bom grado o seu casamento, inclusivamente mentindo-lhe ao dizer que ele próprio deseja voltar a casar. Esta duplicidade forçada faz com que Shukichi se comporte sempre de forma perfeitamente contida e determinada perante a filha, ocultando as suas verdadeiras emoções e angústias.


Ora, é justamente neste ponto que o plano que escolhi assume uma importância capital. Pois é no momento que ele capta que vemos a primeira – e única – explosão de Shukichi: é depois da tempestade (leia-se o casamento), feito o sacrifício supremo, que Shukichi se irá abrir e revelar o seu verdadeiro interior, desfazendo a imagem do homem em paz consigo mesmo. Na casa que até então havia sido partilhada por pai e filha, só resta o primeiro: Noriko não mais está presente, embora Shukichi (como nós) pressinta a sua presença em cada espaço. Shukichi dirige-se à sala e senta-se na cadeira descascando uma maçã (tarefa de que, outrora, Noriko se ocuparia gentilmente).

Disse “explosão” e não é à toa: vencido pela tristeza, pára de descascar a maçã e chora (ainda que naquele jeito sempre contido dos japoneses – bem diferente dos norte-coreanos, ao que parece), de cabeça baixo, consigo mesmo. O choro é silencioso, deixando que a música (cordas) apure a atmosfera de separação reinante. Ele sabe que um tempo, um ciclo terminou, embora tenha a consciência, simultaneamente, de dever cumprido, já que o casamento de Noriko se mostra uma inevitabilidade da vida e da ordem natural das coisas (ele mesmo o diz, muito determinado, a Noriko, na última noite passada em Kyoto). E é talvez por isso que Primavera Tardia termine, imediatamente a seguir, com um plano sobre o mar, como sinalizador, roubado à mãe-natureza, da inevitabilidade da passagem do tempo e do carácter cíclico da vida.

Do ponto de visto técnico, e tal como em muitos outros filmes de Ozu, sobretudo a partir de Primavera Tardia (fase de aprimoração da técnica depurada do japonês), o plano é absolutamente fixo, sem lugar para quaisquer movimentos de câmara ou panorâmicas. O enquadramento, esse, é perfeito: primeiro, vemos Shukichi sentado descascando a maçã, com a profundidade do plano a sugerir o vazio provocado pela ausência de Noriko; depois, e semi iluminadas, apenas a faca, a maçã e as mãos – as mãos, imóveis, de um homem abatido por um destino que ele próprio, sacrificando-se em nome de um bem maior, ajudou a desenhar.

A força deste plano é extraordinária: apesar de todo o pesar que ele respira, não contempla nenhum momento, ainda que breve, de compunção. A vida seguirá o seu curso, dir-nos-ão, então, as ondas do mar. (Francisco Noronha)

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